Temos de usar a moldura correta para tratar a personalidade de Eru, que para todos os efeitos É o Deus da teologia judaico-cristã. Não é o irmão gêmeo dele. Não é nem uma reformulação dele. É ELE. Palavras do próprio Tolkien.
Entendo sua posição, mas acho que você talvez esteja levando a sério demais essa posição do Tolkien, que sequer foi colocada nas obras - posição que ele nunca chegou a desenvolver com clareza. Estamos discutindo Eru, e para discutir Eru é preciso analisá-lo dentro das obras, não apenas fora dela. Se não passa a ser uma discussão bíblica. O que eu quero dizer é que a análise individual de O Silmarillion é mais importante que a análise bíblica baseada em uma posição de Tolkien, que mais me parece uma posição pessoal dele do que uma posição dele como autor, afinal, como autor, esse quesito foi pouco desenvolvido.
Em As Crônicas de Nárnia, por exemplo, Aslam é notadamente Jesus Cristo, mas nem por isso eu posso pegar qualquer parte da Bíblia onde participa Jesus e dizer que Aslam faria o mesmo. O Aslam dos livros, por exemplo, aceita que povos adorem outros deuses (isso é representado em A Última Batalha), desde que façam em nomes desses deuses coisas boas. Para a Bíblia esse tipo de coisa não é possível, e Jesus está de acordo com ela.
Sem falar que, de novo, o termo "Deus judaico-cristão" é muito vago, diversificado e também contraditório, especialmente na questão a respeito do livre-arbítrio e destino. Teólogos cristãos tiveram diferentes posições a respeito disso. A própria Bíblia é cheia de contradições a respeito disso. Etc. Por isso para mim a informação "Eru é o Deus cristão" é de pouca clareza.
Sobre genocídio: a justificativa é simples. Todo mundo em Númenor, fora Elendil e seus homens, compactuava com a política insana de Ar-Pharazôn. Portanto, era culpado. Se a rainha Tar-Míriel realmente queria resistir ao rei, deveria ter dado um jeito de fugir com os homens de Elendil, mas não o fez. É meio como a mulher de Lot transformada em sal no Gênesis.
Isso pode ser válido sob a ótica cristã, mas para mim não faz nenhum sentido. A rainha não fez mal algum para ninguém, não merecia ser condenada a morte. E fugindo de Númenor não estaria resistindo de nenhuma forma ao rei, e ficando não estaria colaborando. Também não tem culpa as crianças que morreram, especialmente aquelas que não tinham noção do que estava ocorrendo. Ou os cidadãos de regimes militares que não tomaram parte de alugma resistência, mas também não apoiaram o regime. Etc.
Uma coisa que eu nunca entendi, foi a necessidade de criação. Se Deus/Eru é perfeito, ou seja, completo, pra quê criar? Pra quê criar o mundo em 7 dias ou Ainur para cantar? Pra mim entra em contradição com a premissa de que Deus/Eru é perfeito.
Para mim também isso é contraditório no Deus cristão. Num deus panteísta isso é amenizado, afinal ele não cria o Universo, e sim é uno com o Universo. Isso não significa que o universo físico não tenha um início no tempo, mas o Universo, o Todo, é eterno e além do tempo.
Quanto ao trecho que vc citou, acho que poderia ser explicado mais ou menos da seguinte forma: Eru não aprovou o mal de Melkor, ele apenas aproveitou que o mal já estava feito e fez algo bom daquilo, o que mostra uma característica do Bem perfeito. Eru é a suprema fonte do pensamento de Melkor, não porque a maldade de Melkor, que surgiu através de Eru, tem sua suprema fonte em Eru, mas porque a existência do livre-arbítrio tem suprema fonte em Eru. Mas sei lá, ainda me parece meio contraditório. Tipo, se encararmos Deus/Eru como uma entidade perfeita e onipotente, isso gera algumas contradições, ou pelo menos, aparentes contradições. Tipo, se Deus/Eru é tudo, então o mal também está contido nele? Se não está contido, então Ele não é tudo?
Mas repare que Eru afirma que tudo que é tocado tem Nele a sua "suprema fonte". Isto não me parece algo como ele simplesmente ter aprovado o livre-arbítrio de Melkor. Ele é a causa de tudo isso.
E sim, o mal tem que surgir de algum lugar. Mesmo se aceitarmos que o mal é simples "ausência de bem", esta ausência deve ter surgida de alguma forma, do contrário o bem estaria homogêneo entre os ainur, e não ausente em uns e concentrado em outros.
E pelo que me pareceu Melkor nunca escolhera ser mal, e sim fora invadido por sentimentos maldosos, quase como se fosse algo inerente nele pronto para ser despertado. Eru, como onisciente, sabe que Melkor não seria forte para lidar com esses sentimentos. Essas forças vêm da criação de Melkor e do que ele viveu antes da canção - não me parece que ele teve vivências significativamente diferentes para causar isso, então creio que esse mal veio sobretudo de sua natureza inerente desde sua criação.
E concordo com o Caranthir a respeito do que foi dito. Creio que pode até existir uma Justiça ideal, tal qual defendia Platão, mas dificilmente a nossa visão dessa Justiça não seria interferida por nossas vivências pessoais, regionais, etc.