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Enquanto Agonizo (William Faulkner)

[align=justify]É como o Tataran disse anteriormente, cada um tem suas razões, pois todas os atos tem uma lógica, só que essa lógica pode ser tão individual e calcada em razões tão subjetiva e inconscientemente construídas, que ela chega a ser ilógica.

O acesso às mentes dos personagens (que também são narradores) classifiquei como uma experimentação de técnicas narrativas modernas, complexas e intrincadas, que por sua limitação natural (cada um vê e narra os eventos a sua maneira), desafia o leitor a criar seu próprio fio condutor, sabendo entrelaçar os vários fios que vão sendo fornecidos.

Reconheço que não consegui acompanhar os vôos do Faulkner, mas olhando posteriormente e analisando de um novo ponto de vista, creio que esse 'método' (essa palavra me dá uma idéia de mecanicidade que me incomoda) consegue trazer um fôlego diferente para a história, uma nova maneira de contar, uma nova forma de relatar, de transpor a realidade reelaborada para o domínio da linguagem escrita. Talvez a palavra certa seja recurso, esse é um recurso do qual Faulkner se valeu para inclusive explorar novas maneiras de se fazer Literatura. Alguém se habilita a comentar isso aqui?

Mesmo o enredo é meio difícil de compreender. O texto deixa vários espaços vazios, falta uma continuidade. Isso é proposital no Faulkner. Aliás, parei pra pensar sobre isso e cheguei à conclusão que isso retrata em grande parte a nossa vida: só podemos conhecer o mundo em parte, de forma fragmentada, etc., não existe narrador onisciente na vida real. Lá vou eu com minhas viagens filosóficas de novo, melhor parar por aqui, rss.

Não vejo isso necessariamente como viagem filosófica, embora tenham argumentos vários para sustentar essa tua hipótese, aliás, ela é bem plausível, independente do Faulkner querer ou não dar a entender isso. Enfim, leituras e leituras.

Fico feliz de não ser coisa da minha leitura deficitária essa desconexão. Achei que era fruto de interpretações mal digeridas mesmo. A descontinuidade, a fragmentação narrativa é característica da literatura moderna, creio eu, herança do Joyce, da Woolf e assim por diante. Pelo menos é a relação que tenho visto em qualquer lugar a que recorro para me inteirar sobre o Faulkner. E creio que isso é algo inusitado e curioso de se pensar, já que ele lança um olhar munido de técnicas e experimentações modernas para construir histórias acerca de um lugar tido como arcaico, atrasado, embora as coisas não sejam tão dicotômicas assim com a velha Dixieland.

Não posso falar com tanta propriedade (por enquanto), mas creio que um dos grandes méritos "extra-literários" do Faulkner foi colocar o Sul dos Estados Unidos de novo no mapa, de mostrar que lá não era uma terra esquecida por Deus, desabitada (ou habitada por botocudos sem lei nem cultura) ou abandonada etc., como poderia se supor depois da vitória nortista na Guerra de Secessão. O Sul é visto com preconceito por uma porção de grupos sociais, e as oposições campo x cidade, progresso x atraso, industrial x agrícola, só contribuíram para criar uma imagem negativizada e empobrecida dessa região.

A prosa do Faulkner conseguiu desvanecer essa bruma ou pelo menos jogar uma luz diferencial para enxergar mais do que certas visões simplistas.

Vamos que vamos![/align]
 
Onde foi que eu me meti? XD Bem, vamos lá.

Lucas_Deschain disse:
Opa, vamos lá que eu finalmente acabei de ler e entendi pouquíssima coisa #prontofalei

A mudança de narrador constantemente me enbananou. Senti dificuldades de acompanhar os nuances mais subjetivos do pensamento de cada personagem, sinceramente, depois de um tempo procurei compreender mais o enredo do que as peculiaridades de cada narrador. Esse livro me desafiou, espero poder compreender melhor as coisas discutindo aqui e depois relendo

Lucas, você não está sozinho nisso, não. Agora, acredito que minha compreensão da obra melhorou muito, porque, para as minhas últimas postagens, embora não tenha lido o livro de novo, abri em alguns capítulos e trechos e dei uma "passada de olho". Fazendo isso, fiquei abismado com o tanto de detalhes que deixei passar.

Por exemplo, ontem mesmo eu notei que, na narrativa de Cash, quando os Bundren param, pela primeira vez, em frente à casa daquela que será a nova esposa do Anse, ele diz literalmente: "Ficou assim durante todo o tempo em que estivemos na frente da casa da Mrs. Bundren (...)". O narrador efetivamente antecipa o fato de que aquela será a nova Mrs. Bundren e eu não percebi quando li pela primeira vez. :timido:

Lucas_Deschain disse:
Enfim, sobre o Darl estar ficando louco ao longo do livro (não percebi essa mudança de pessoa no discurso dele, #shameonme)

Eu percebi porque, da primeira vez que ele se referiu a si mesmo na terceira pessoa, eu achei que havia algum erro tipográfico da tradução. Quando o problema foi se repetindo, eu comecei a pensar "o que diabos está acontecendo aqui?", mas só juntei os dois fatos quando os familiares dele o classificaram definitivamente de louco.

Lucas_Deschain disse:
Se o Darl ficou louco não foi a toa, a meu ver. Tanto sofrimento, tantas provações se lhe impuseram, que dilaceraram qualquer traço de sanidade que ele tinha, conduzir o caixão da mãe (o que deve ser uma experiência traumáticas nas 'melhores' circunstâncias) tendo que atravessar pontes quebrando, chuvas torrenciais, gente opinando de tudo que é lado, família em cacos, brigando e se xingando; a demora que já denunciava a decomposição do corpo, putz, ninguém pode condená-lo por perder a razão.

Realmente, foi uma saga épica e uma grande catarse coletiva. A família chega ao final do livro em pedaços: Cash com a perna arrebentada, Darl internado, Dewey Dell irremediavelmente grávida e prestes a enfrentar uma barra pesadíssima, Vardaman (aparentemente) também não está bem da cabeça e não sei o que esperar de Jewel, embora se ele desaparecer no mundo não seria surpresa.

Lucas_Deschain disse:
E o próprio Faulkner acabou condoendo-se de seu personagem, evidenciando a justificabilidade de interná-lo ou não (depois encontro o trechinho, fiz questão de marcar no celular a página, XD )

Acho que você está falando de um trecho de Cash. Realmente ele procura justificar a si mesmo que o irmão dele "está melhor lá", mas a genialidade de Faulkner está em que: (1) não creio que essa seja a opinião do próprio Faulkner; (2) não é a opinião que o leitor geralmente retira dos fatos; e (3) por paradoxal que seja, embora estejamos "dentro" da mente de Cash, pode nem mesmo expressar a opinião verdadeira do próprio Cash! Bizarro. XD

Lucas_Deschain disse:
Pode ser que Dewey Dell e Jewel tivessem esse interesse (aliás, essa questão da gravidez ficou obscura para mim, não lembro de tâ-la visto confirmada com todas as letras)

Bom, naquela época acho que não havia métodos razoavelmente seguros para identificar uma gravidez, mas o que me parece aí é que Dewey Dell acredita estar grávida (acho que tem um trecho em que ela até fala quanto tempo sua menstruação está atrasada). Talvez seja mais um daqueles momentos em que Faulkner nos dá uma verdade meramente parcial ou subjetiva, porque é sempre possível que ela esteja enganada.

Lucas_Deschain disse:
mas por outro lado há de se considerar que naquela altura, com a chance de Darl ser associado ao incêndio no celeiro, interná-lo pode ser até uma forma de tirá-lo de cena para evitar a prisão dele bem como também de qualquer um deles ser tido como cúmplice da coisa toda.

Relendo os trechos em questão, acho que o pensamento que motivou a família foi o seguinte (embora não possa ter certeza). Aparentemente, havia um temor de que o fazendeiro dono do celeiro (esqueci o nome dele) processasse a família civilmente (ou seja buscando uma reparação por dinheiro) pelos danos causados na sua propriedade. Esse tipo de medida judicial poderia retirar da família o pouco de bens que eles ainda possuíam. Parece-me que, ao internar Darl como louco, de certa forma, eles se isentariam da responsabilidade de ter que indenizar os danos. Essa medida teria muito pouca eficácia no sistema jurídico brasileiro, mas é possível que, na legislação americana do princípio do Séc. XX, isso possa fazer mais sentido. Em resumo, teriam trocado o filho/irmão pelo pouco de propriedade que ainda detinham

Kelvin disse:
Isso é proposital no Faulkner. Aliás, parei pra pensar sobre isso e cheguei à conclusão que isso retrata em grande parte a nossa vida: só podemos conhecer o mundo em parte, de forma fragmentada, etc., não existe narrador onisciente na vida real. Lá vou eu com minhas viagens filosóficas de novo, melhor parar por aqui, rss.

Não há viagem nenhuma nessa sua assertiva. Você foi extremamente preciso quando diz que há um certo espelho à vida real com suas incertezas. :sim: Gostaria de acrescentar um outro detalhe. Essa narrativa fragmentária me trouxe uma impressão também de extrema solidão. Ali, pude ver como cada pessoa é realmente uma ilha com seus pensamentos, suas motivações e seus desejos, e, embora possa estar cercada de familiares, está sempre sozinha em certo sentido, enclausurada dentro de si mesma. (Pronto, acho que lhe ultrapassei em viagem. :timido: )

Lucas_Deschain disse:
O acesso às mentes dos personagens (que também são narradores) classifiquei como uma experimentação de técnicas narrativas modernas, complexas e intrincadas, que por sua limitação natural (cada um vê e narra os eventos a sua maneira), desafia o leitor a criar seu próprio fio condutor, sabendo entrelaçar os vários fios que vão sendo fornecidos.

Excelente assertiva! Aliás, se você fosse fazer uma resenha, essa descrição teria que constar dela, porque define e resume muito bem a experiência com esse livro.

Lucas_Deschain disse:
Não posso falar com tanta propriedade (por enquanto), mas creio que um dos grandes méritos "extra-literários" do Faulkner foi colocar o Sul dos Estados Unidos de novo no mapa, de mostrar que lá não era uma terra esquecida por Deus, desabitada (ou habitada por botocudos sem lei nem cultura) ou abandonada etc., como poderia se supor depois da vitória nortista na Guerra de Secessão.

É verdade, Lucas. Por outro lado, só li esse livro dele, mas dá para ver que o retrato que ele pinta do sul não é propriamente muito favorável (embora possa não ser totalmente desfavorável).

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Continuando com minhas dúvidas interpretativas, uma coisa não entendi totalmente. O Anse (pai) já conhecia aquela mulher que vira sua nova esposa anteriormente ou se entendeu com ela apenas naqueles dois dias em que ficou na cidade? E, se por acaso ele conhecia essa mulher há mais tempo, isso significa que todo o seu esforço para enterrar a esposa em sua terra natal, atendendo-lhe o desejo, era pura hipocrisia e o que ele queria mesmo era levar de volta sua nova esposa (e, de quebra, colocar uma dentadura)?
 
Ahhhhh,

Agora sei que a culpa disso tudo é do Tataran e do Lucas :hahano:

A ultima compra que fiz no submarino eu ia levar esse livro mas desisti de ultima hora, apesar de ser só 10$ ¬¬

Agora eu acho ótimo, pq seria mais uma discussão que eu ia querer participar e não ia conseguir fazer tudo ao mesmo tempo :calado:

Lucas, pare de fazer comercial de livros legais que nao posso ler no momento...
Tataran, pare de iniciar discussões boas...

Sorry, não consegui não floodar dessa vez =X
 
[align=justify]O trecho acerca dos questionamentos sobre internar ou não o Darl (na visão do Cash):[/align]

Faulkner disse:
[align=justify]"'Eu acho que ele tem que estar lá' o pai disse. 'Deus sabe, é uma provação para mim. Parece que não tem fim para o azar quando ele começa.'
Às vezes não tenho tanta certeza de quem tem o direito de dizer quando uma pessoa está louca e quando não. Às vezes penso que nenhum de nós é totalmente louco e que nenhum de nós é totalmente são até que nosso equilíbrio diga ele é desse jeito. E como se não importasse o que o sujeito faz, mas a forma como a maioria das pesoas o vê quando ele faz." (p. 194)[/align]

[align=justify]Acho esse trecho de arrepiar, me lembra até aquele medo incomensurável que me vem quando leio O Alienista, do Machado de Assis. A loucura ou insanidade, como preferirem, não é algo intrínseco e nitidamente definido, mas é um limite social e historicamente construído que é tão cediço quanto a profusão de visões e subjetividades que existem. Não é necessariamente você que é louco, é a sociedade (esteja ela personificada em quem quer quer seja) que te classifica dessa forma. Levando em conta que existem os indícios biológicos e psicológicos que corroboram as visões. Não quero dizer que esses métodos sejam tão arbitrários.

Por isso é que vejo o Darl como um desses casos que, sim, há necessidade de observação próxima, acompanhamento (não necessariamente médico) que o oriente a redefinir as premissas que o norteavam antes da sucessão catastrófica de eventos que lhe sobreveio. Poxa, quem é que pode dizer com certeza que depois de ter que lutar para transportar o caixão da mãe que já começa a exalar mal cheiro e passar por tamanhas provações não sairia abalado de maneira profunda?

Sobre suas afirmações sobre o internamento do Darl ser um mecanismo de proteção dos meios de subsistência da família, concordo, embora não tenhamos como comprovar, entraria na área da especulação e das visões subjetivas mesmo. Enfim, de qualquer modo é interessante e prolífico debater, pois estende nosso entendimento para a obra como um todo. Comprovarei isso posteriormente quando construir umas outras impressões que tenho aqui guardadas na cachola para um momento posterior.

Sobre o Anse Bundren, essa figura enigmática, também fiquei pensando a mesma coisa que você. Será que ele é um aproveitador de oportunidas fortuito ou uma mente calculista que planejava o encontro desde os momentos de agonia da mulher? Sinceramente, a forma repentina como aquela mulher surgiu na história do Anse é realmente suspeita, embora não acredite que ele tenha premeditado a coisa toda. Não sei, tenho minhas dúvidas ainda, hein? Acho que entraria aqui uma consideração similar a do Darl, mas deixo para a próxima ainda, posso estar sendo muito leniente ou ingênuo com o Anse.

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Propondo um novo tópico a ser pensado:

Tenho obsessões particulares com a obra de Steinbeck como pode ser percebido na quantidade de livros dele que leio, o fato de estar pesquisando obras dele na minha pesquisa de mestrado etc. e tal. Por isso proponho analisarmos um pouco que tipo de correlações existem entre os Joad (As Vinhas da Ira) e os Bundren (Enquanto Agonizo). Ambas são famílias sofrendo com miséria e restrições de toda a sorte, empreendendo jornadas pelos Estados Unidos buscando resolver dramas e problemas. As similitudes não param por aí: ambas passam por infaustas odisséias para alcançar seus objetivos, e os dois livros procuram marcadamente acentuar a dramaticidade da busca permeada constantemente de sofrimento, abnegação, obstáculos, tragédias etc. E, para coroar tudo isso, ambas podem ser entendidas como 'brotadas' de uma situação histórica similar (apesar de serem duas regiões diferentes dos EUA e haver entre elas 9 anos de diferença na publicação): o caudal de desdobramentos fatídicos que sobreveio a Grande Depressão. E aí, o que me dizem, caros debatedores?[/align]
 
Um dos nomes mais conhecidos (senão o mais conhecido) da Literatura Norte-Americana é sem dúvida William Faulkner. Ele é famoso, entre outras razões, por valer-se das inovações da literatura joyceana e das técnicas de “fluxo de consciência”, introduzindo-as, a seu modo, no cenário da literatura norte-americana, difundindo as técnicas de narração e complexificando sua produção literária.

Enquanto Agonizo foi publicado em 1930 e é um dos livros onde é nítido as experimentações de Faulkner nesse sentido. O livro conta a história da agonia e da morte de Adie Bundren, uma senhora idosa, desde os seus momentos terminais até os ritos fúnebres e a odisséia póstuma que se constituiu para que seus desejos de sepultamento fossem satisfeitos.

A narração do livro é feita através das reminiscências e visões dos diversos personagens que participam da trama (Darl, Jewel, Cash, Dewey, Anse, Vardaman etc.), logo, a fragmentação do processo de contar a história torna a leitura de Enquanto Agonizo um verdadeiro desafio ao leitor, que tem a hercúlea tarefa de unir os diferentes prismas narrativos para formar um fio condutor mais nítido.

[Continue a ler o artigo ...]
 
Estava indo tão bem a discussão...

Bem, terminei de ler o livro, vim logo para cá e já fiquei cheio daquela vontade de sair comentando os pontos que vocês levantaram! Mas ainda sinto que tem muito mais para falar, vamos ver se dá para ir incrementando aos poucos... Só alguns comentários com que já estou me coçando:

Kelvin disse:
Pelo que li ele tirou o trecho de uma fala de Agamenon (personagem da Odisséia e da Orestéia), que foi morto à traição numa banheira por sua esposa Clytmenestra pra ficar com o amante Egisto, após o retorno da guerra de Tróia no qual sacrificou a filha Iphigenia.

A tal frase é mencionada no Wikipedia:

"As I lay dying, the woman with the dog's eyes would not close my eyes as I descended into Hades."

É do livro XI, acho que lá pela linha 490 (mas na minha tradução está bem diferente).

Lucas_Deschain disse:
[align=justify]
Por isso é que vejo o Darl como um desses casos que, sim, há necessidade de observação próxima, acompanhamento (não necessariamente médico) que o oriente a redefinir as premissas que o norteavam antes da sucessão catastrófica de eventos que lhe sobreveio. Poxa, quem é que pode dizer com certeza que depois de ter que lutar para transportar o caixão da mãe que já começa a exalar mal cheiro e passar por tamanhas provações não sairia abalado de maneira profunda?
[/align]

Com certeza! E talvez por ser mais sensível, o Darl tenha sido mais profundamente transformado pela morte da mãe. Mas na verdade tenho a impressão de que todos eles estão passando por um momento de perturbação durante a maior parte do livro, se comportando de forma não usual. E imagino que tenha sido algo construído pelo Faulkner nesse sentido. Já foi falado sobre o Darl e o Vardaman, mas o Cash, por exemplo, parece que havia sido tomado por uma obsessão com o trabalho durante a maior parte da história, que se destaca em contraste com a última fala do livro.

E uma outra coisa sobre a loucura do Darl: senti uma certa semelhança entre as divagações dele e da Addie. Para mim isso serve para evidenciar a ideia de que a loucura corre na mesma família...

Lucas disse:
[align=justify]
Sobre suas afirmações sobre o internamento do Darl ser um mecanismo de proteção dos meios de subsistência da família, concordo, embora não tenhamos como comprovar, entraria na área da especulação e das visões subjetivas mesmo.
[/align]

Mas existe sim, Lucas, uma parte em que alguém pensa algo como "ou deixaríamos que Gillespie nos processasse ou Darl iria para Jackson". Acho que a ideia do Tataran faz sentido.

Lucas disse:
[align=justify]
Sobre o Anse Bundren, essa figura enigmática, também fiquei pensando a mesma coisa que você. Será que ele é um aproveitador de oportunidas fortuito ou uma mente calculista que planejava o encontro desde os momentos de agonia da mulher? Sinceramente, a forma repentina como aquela mulher surgiu na história do Anse é realmente suspeita, embora não acredite que ele tenha premeditado a coisa toda. Não sei, tenho minhas dúvidas ainda, hein? Acho que entraria aqui uma consideração similar a do Darl, mas deixo para a próxima ainda, posso estar sendo muito leniente ou ingênuo com o Anse.
[/align]

Muito enigmático! Todos os personagens o culpam várias vezes por uma série de defeitos (enquanto ele só culpa o destino), mas em nenhum momento fica claro exatamente de que vícios ele seria afligido. Imaginei, a princípio, uma resposta simples, como o alcoolismo. Mas não parece ser o caso...

Lucas disse:
[align=justify]
Por isso proponho analisarmos um pouco que tipo de correlações existem entre os Joad (As Vinhas da Ira) e os Bundren (Enquanto Agonizo). Ambas são famílias sofrendo com miséria e restrições de toda a sorte, empreendendo jornadas pelos Estados Unidos buscando resolver dramas e problemas. As similitudes não param por aí: ambas passam por infaustas odisséias para alcançar seus objetivos, e os dois livros procuram marcadamente acentuar a dramaticidade da busca permeada constantemente de sofrimento, abnegação, obstáculos, tragédias etc. E, para coroar tudo isso, ambas podem ser entendidas como 'brotadas' de uma situação histórica similar (apesar de serem duas regiões diferentes dos EUA e haver entre elas 9 anos de diferença na publicação): o caudal de desdobramentos fatídicos que sobreveio a Grande Depressão. E aí, o que me dizem, caros debatedores?[/align]

Verdade, dá para estabelecer muitas semelhanças... Mas antes de mais nada, será que dá mesmo para colocá-las no mesmo momento histórico? Procurei um pouco, mas não consegui encontrar nenhuma referência certa para o período em que se passa o romance... E se a inspiração para essas histórias do Mississippi vieram da infância do Faulkner, então a tendência seria de que fossem mais para o início do século...
 
[align=justify]As diferenças de temporalidades podem ser sensíveis, mas se pegarmos em um escopo mais amplo, veremos que há uma sucessão de eventos de duração mais longa que estão acontecendo, como a questão do campo entrando para o âmbito do capitalismo, como a destruição de um modo de vida ou a própria diferenciação entre um modo de vida e outro que se instalava de maneira cada vez mais intensa. Mas sabemos que as comparações e analogias são sempre problemáticas e suscitadoras de polêmicas de toda a sorte. As diferenças existem e devem ser consideradas, mas as semelhanças não podem ser ignoradas também.

Antes de nos aprofundarmos por essas veredas então, vamos perscrutar mais longamente a obra de Faulkner: quais são as componentes históricas (termo genérico para influências políticas, filosóficas, artísticas, culturais, materiais, econômicas, sociais, intenções das mais diversas etc.) que se instilaram na obra? Acho que essa análise mais histórica da obra nos permite perceber em quais dimensões a obra se manifesta e que 'singularidades' ou 'peculiaridades' a caracterizam, de modo que possamos conhecê-la melhor. Proponho essa pois são as mais usuais no meu caso, as que gosto de levar em conta ao ler, analisar, discutir um livro.

Vejo os esforços de Faulkner, para início de conversa, como iniciativas louváveis de trazer para a alçada literária (esse campo magnífico de discussões e possibilidades infinitas) a situação de uma terra que tinha sido parcialmente esquecida ou relegada a interpretações estereotipadas e preconceituosas, como terra de botocudos ou ignorantes, já que eram território derrotado da Guerra de Secessão. Posso estar aqui exagerando, mas, mais ou menos matizada, essa questão permeia a visão que se tem sobre o Sul.

A situação que Faulkner narra no livro tem que ter uma motivação histórica que vale a pena especular sobre. A pergunta que sempre gosto de me fazer ao pensar nisso é pensar sobre o sentido e o significado desse autor específico (esse sujeito histórico, produtor e produto de sua situação social mais ampla) escrever uma obra com tal forma e conteúdo nesse específico momento histórico?

Ufa! Vamos lá, há muito o que ser feito.[/align]
 
Nossa, Lucas, seus planos são muito megalomaníacos, acho que nem o Faulkner conseguiria responder a essas questões... XD

Mas vamos lá! Como você já lembrou, um marco essencial na delimitação das condições em que se situam as histórias do Faulkner foi a Guerra Civil. Me parece que a partir dela é que o sul foi assumindo essa imagem de atraso social e cultural. Imagino que anteriormente a riqueza dos grandes senhores de escravo devia ser respeitada, assim como no Brasil houve uma visão diferente do interior, quando ainda se falava em coroneis ou em barões... Mas a Guerra trouxe, um tanto subitamente, uma realidade diferente para o sul. Por exemplo, estava agora lendo "Amada" ("Beloved"), da Toni Morrison, onde se faz o seguinte relato:

[align=justify]A Guerra já havia então terminado há mais de quatro anos, mas ninguém, branco ou negro, parecia ter se dado conta disso. Estranhos bandos e negros desgarrados vagavam por trilhas e estradas do interior, de Schenectady a Jackson. Atordoados mas insistentes, eles buscavam uns aos outros por uma palavra sobre um primo, uma tia ou amigo que uma vez dissera: "Me ligue. A qualquer momento que estiver próximo a Chicago, me ligue." Alguns deles fugiam de uma família que não podia sustentá-los, alguns para uma família; alguns fugiam de colheitas mortas, parentes mortos, ameaças de morte e terras tomadas. Garotos mais jovens que Buglar e Howard; associações e misturas de famílias de mulheres e crianças, enquanto em algum outro lugar, solitários, caçados e em caça, estavam homens, homens, homens. Banidos do transporte público, perseguidos por débitos e "lençois falantes"**, eles seguiam por rotas secundárias, esquadrinhavam o horizonte por sinais e dependiam profundamente uns dos outros. Silenciosos, exceto pelas cortesias sociais, quando se encontravam nem descreviam nem perguntavam sobre as aflições que os levavam de um lugar a outro. Os brancos não suportavam que lhes dirigissem a palavra. Todos sabiam disso.[/align]
** Os membros da Ku Klux Klan (no original, "talking sheets")
(tradução feita agora, qualidade garantida ou seu dinheiro de volta :dente: )

Sinistro o quadro, não?

Acabei não respondendo nada né, mas já estourei muito meu tempo, depois eu volto...
 
[align=justify]Legal você ter citado a Toni Morrison, e isso o que ela fala teve eco profundo em toda uma geração de escritores, entre os quais estão tanto o Faulkner quanto o Steinbeck.

Ano passado co-apresentei uma oficina que tratava do filme e do livro As Vinhas da Ira com minha orientadora, e lembro que ela resgatou alguns dos autores e suas respectivas obras, que justamente retratavam essa situação de miséria e de pauperização que sobreveio a crise de 29, sendo que grande parte dele toca profundamente nessa questão acerca do sul, da segregação racial e demais estereótipos que vinhamos comentando a respeito do Faulkner.

Outros nomes dessa época e estilo (que alguns chamam de neorrealismo ou realismo norte-americano dos anos 30): Erskine Caldwell (Cidade do Ódio [1949], Chão Trágico [1944] e Tobacco Road [1932]); James T. Farrell (Studs Lonigan Trilogy [1932-1935]); Paul Green (The Body the Earth [1935]); Richard Wright (Native Son [1940]) e o próprio Faulkner (Enquanto Agonizo [1930] e Luz em Agosto [1932]).

O que dá para perceber é que nem o Faulkner nem a literatura sobre o Sul dos Estados Unidos foram casos isolados, havia outros autores pensando sobre essa questão e escrevendo livros para trazer a um público mais amplo os problemas pelos quais o Sul passava, sejam eles decorrentes da situação econômica, da pauperização, do preconceito e discriminação racial etc.

Meu tempo estourou também, mas vamos lá.[/align]
 
Bacana essa lista! Desses só havia ouvido falar do "Native Son"...

Mas uma coisa que estava tentando esclarecer era justamente essa relação entre fatores "pós-Guerra Civil" e fatores "pós-Crise de 29". Ao que me parece, os primeiros é que foram a marca mais profunda para essas circunstâncias do Sul. O próprio "Enquanto Agonizo", pelo que se sabe, começou a ser escrito em 25 de outubro de 1929 e foi terminado em 6 semanas, isto é, não estaria em tempo de serem absorvidas as consequências do Crash...

Sobre a situação geral do Sul, há uma descrição interessante no Wikipedia:

[align=justify]
O Sul permaneceu profundamente rural até a Segunda Guerra Mundial. Havia apenas umas poucas cidades espalhadas. Pequenos municípios com fóruns locais supriam a população rural, e a política dos distritos girava em torno dos políticos e advogados desses fóruns. Vilas industriais, com foco na produção têxtil ou manufatura de cigarros, começaram a operar na região de Piedmont, especialmente nas Carolinas. Segregação racial e sinais abertos de desigualdade estavam por toda parte e raramente eram questionados. Negros que violassem a linha divisória de cor estavam sujeitos à expulsão ou ao linchamento. O algodão se tornou ainda mais importante que antes, mesmo que os preços estivessem então bem mais baixos. Sulistas brancos demonstravam relutância em mudarem-se para o norte, ou a se mudarem para cidades, de forma que o número de pequenas fazendas proliferava, tornando-se cada vez menores à medida que a população crescia. Muitos fazendeiros brancos, e a maioria dos negros, eram arrendatários que possuiam animais de carga e ferramentas, alugando a terra. Outros eram trabalhadores pagos por dia ou meeiros muito pobres, que trabalhavam sob a supervisão do dono das terras. Havia pouco dinheiro em circulação, uma vez que a maioria dos agricultores comprava com crédito nos mercados locais, cobrindo seus débitos no tempo da colheita, no outono. Embora houvesse pequenas igrejas locais por toda parte, havia apenas umas poucas escolas deterioradas. O ensino médio estava fora do alcance da grande maioria da juventude do Sul rural. As condições eram marginalmente melhores em regiões mais novas, especialmente no Texas e no centro da Flórida, com a pobreza sendo mais grave na Carolina do Sul, Mississippi [onde se passam as histórias do Faulkner] e Arkansas. O amarelão e outras doenças afetavam a saúde de grande parte dos sulistas.[/align]

Então, minha impressão quanto à obra do Faulkner é que não foi tanto uma reação contra o esquecimento a que o Sul fora relegado ou contra os preconceitos com que eram vistos os sulistas, e sim mais uma expressão do vazio que se instalara na região, tanto de condições materiais quanto de expectativas e valores. Se para as "Vinhas da Ira" se fala de "Okies", caipiras ignorantes, o contexto do Faulkner se associa mais facilmente a "white trash", o branco inescrupuloso e sem valores. O que no Steinbeck traz um grito de revolta, no Faulkner se manifesta como um lamento contra a condição a que o homem pode se ver reduzido.

***

Esses dias tive a grande sorte de encontrar na Livraria Cultura o volume da "Norton Critical Editions" do "Enquanto Agonizo", muito interessante, com bastante material extra. Uma das coisas que ele esclareceu definitivamente foi a origem do título do livro, que teria sido extraído de uma tradução da Odisseia feita por Sir William Sinclair Marris, publicada em 1925 pela editora Oxford.

Há também uma longa entrevista com o Faulkner, em que ele responde a várias questões polêmicas sobre a história, inclusive algumas que já foram levantadas aqui no tópico:

- Darl já estava louco desde o princípio, mas sendo o menos capaz de suportar o peso dos acontecimentos, termina se perdendo completamente.
- Darl chega a narrar um acontecimento em que não estava presente, o que seria uma espécie de "percepção superior", contraponto de sua loucura.
- Vardaman pensa que sua mãe era um peixe por ser uma criança em idade muito susceptível e que não recebe orientação de nenhum alduto.
- Dewey Dell pode ou não ter ainda conseguido realizar o aborto.
- Jewel não sabia que era um filho ilegítimo de Anse.
- Darl tenta por fogo no caixão da mãe por efeito da loucura. Não é uma reação de ciúme quanto aos sucessos de Jewel.
- Anse não conhecia ainda a nova Sra. Bundren. Ele se virou rápido mesmo.


De qualquer maneira, o Faulkner parece ter sido uns daqueles escritores que põe um livro no mundo e lhe dá liberadade. Visões diferentes sobre esses acontecimentos não o teriam incomodado nem um pouco...
 
[align=justify]Grande Gigio! \o/

Anse não conhecia a mulher então :think:

Minhas impressões acerca do Sul estavam certas então, legal. Isso ajuda a explicar muita coisa que está lá no livro. Quando você diz:

O que no Steinbeck traz um grito de revolta, no Faulkner se manifesta como um lamento contra a condição a que o homem pode se ver reduzido.

não sei se concordo. A literatura do Steinbeck é mais crua e está mais preocupada em denunciar, quiçá funcionar como uma arma de tomada de consciência e de atitude, um grito de revolta sim. Até aí concordo. Mas a de Faulkner (e digo tendo como base somente Enquanto Agonizo) é mais do que um lamento (conquanto o seja), é uma complexa dramatização de um universo de sentidos que permeiam de forma ora latente ora pujante os estereótipos e preconceitos que existem sobre o Sul.

O próprio reconhecimento que ele alcançou junto a diversas instâncias de público e de crítica, tendo imortalizado-se na literatura mundial é evidência dessa arte narrativa intrincada. Sendo o Sul a terra plena de contradições que era, Faulkner conseguiu unir sua arte narrativa a uma perspectiva social fortíssima que "reabilitou" (entre aspas porque reduzir a reabilitação das sociabilidades do Sul somente a literatura de Faulkner é fechar os olhos para lutas históricas importantíssimas) o Sul, quebrando com estereótipos que preconizavam sua realidade arcaica e atrasado, no limiar da barbárie.

Descortinar outras dimensões da vida sulista é um dos grandes motes da literatura do Faulkner, creio eu. Tu, Gigio, que leste mais obras dele, pode falar com mais propriedade a esse respeito.

(estamos avançando bem, desatando alguns nós e conseguindo ampliar o escopo de abordagem para depois incidirmos sobre a obra mais especificamente)[/align]
 
Apesar da grande demora, Lucas, pode saber que estive refletindo durante todo esse tempo sobre o que você disse! XD

Lucas_Deschain disse:
Mas a de Faulkner (e digo tendo como base somente Enquanto Agonizo) é mais do que um lamento (conquanto o seja), é uma complexa dramatização de um universo de sentidos que permeiam de forma ora latente ora pujante os estereótipos e preconceitos que existem sobre o Sul.

Com certeza, o modo como você caracterizou aí a escrita do Faulkner faz muito mais justiça ao papel dele na literatura. :sim: Ele realmente soube descortinar muitas dimensões da vida sulista, como você disse, elevando o universo cotidiano do Sul, com todas as suas contradições, ao espaço literário.

Só uma parte ainda me estranha nas suas palavras: essa ligação com uma perspectiva social que pudesse retificar a imagem que se fazia do Sul. Não sei se entendi corretamente, mas me parece que embora os personagens de "Enquanto Agonizo" sejam representantes de uma classe rural branca empobrecida, não vejo na obra uma proposta de que um olhar diferenciado seja lançado sobre eles. A impressão que tenho com o Faulkner é algo diferente da que me passa o Steinbeck em "Vinhas da Ira" ou a Toni Morrison, os quais parecem investir boa parte dos seus esforços na recuperação, aos menos parcial, de uma classe, sejam os "okies" ou os negros. O Faulkner, por outro lado, me parece tomar esses personagens de forma imediata, não por qualquer papel social que possam ter, mas pelo espaço que ocupam dentro da memória do escritor. A preocupação do Faulkner estaria muito mais na esfera do indivíduo, que apenas indiretamente viria a refletir sua situação histórica. Como se o próprio Faulkner não chegasse a conceber seus personagens dentro de uma perspectiva história.
 
[align=justify]Desculpe a demora Gigio, os últimos dias tem sido atribulados (e tendem a continuar a sê-los por um bom tempo ainda :dente: ), mas vamos lá:

acho que compreendi o que tu falaste, Faulkner não está preocupado em fomentar as bases para uma transformação societária mais ampla, como parece ser o mote do Steinbeck, por exemplo. Posso estar falando aqui uma grande besteira, mas a própria forma de arte intrincada e complexificada, cuja acessibilidade não é garantida a todos os leitores, não expressa uma hermeticidade (nem sei se essa palavra existe) que está mais pautada, como você mesmo disse, na memória do autor, do que propriamente 'próxima' (no sentido de 'poder ser lida e usada para tomada de consciência') desses indivíduos? (note bem que estou colocando interrogação, justamente porque não quero afirmar sem antes podermos depurar essa questão).

A impressão (ou seja, nada confirmado) que me fica é que a nível de literatura, Faulkner dialoga muito mais com as 'novas tendências' e a complexidade da narrativa moderna, produzindo, por conseguinte, uma narrativa que, embora tenha conteúdo e percepção 'social' (digamos assim); tem valor artístico mais desenvolvido que o Steinbeck. Por conta de o Steinbeck ter produzido obras muito mais cruas e sem grandes complexificações artísticas dignas da narrativa moderna, fez com que, por esse motivo, ele pudesse aproxima-se mais do cotidiano dos 'okies' ou 'ciganos da colheita' (harvest gypsies, termo que ele usa em outros momentos por falta de algum melhor). O que acha?

Longe de mim querer dizer que o Faulkner é um elitista pernóstico e afetado, o que ele definitivamente não é, mas não se pode negar que a hermeticidade de seu texto (e não estou querendo dizer que isso é um problema, aliás, longe disso) veta sua inteligibilidade a muitos leitores. Posso estar exagerando aqui, mas acho que essa complexificação é que fez o Faulkner se tornar clássico, porque o interessante dele é usar de recursos 'modernos' para falar de uma realidade tida como 'arcaica' (por mais que esses termos sejam inadequadíssimos).

O que tu apontaste quanto a perspectiva social ser mais voltado ao indivíduo e não a grupos sociais mais amplos (o conceito de classe pode ser útil aqui, mas não sei dizer ao certo), tenho que concordar contigo. Faulkner quer trazer o drama ao nível do indivíduo e, conquanto o livro narre a história de uma família, a narrativa é pautada nas experiências individuais. Isso é o que há de mais genial no livro, pois é uma experimentação tanto do autor quanto do leitor. A junção e contraposição de dramas individuais que forma, por mosaico, digamos assim, a história como um todo.

(um post bastante hesitante, mas é que não afirmar coisas sem pensá-las e discuti-las, e não quero imputar a imagem errada do Faulkner a quem ler isso aqui)[/align]
 
Tranquilo, Lucas, não precisa ter pressa, vamos na velocidade do Sul no século XIX... :dente:

Acho que as ligações que você estabeleceu nesse último post fazem sim bastante sentido. Afinal, é verdade, se a preocupação do Faulkner estivesse mais em se aproximar dos indivíduos, ou das classes, que ele retrata, não faria sentido que utilizasse formas mais complexas... O compromisso dele parece ir muito mais no sentido de expressar da maneira mais completa possível a dimensão da experiência de diferentes personagens, utlizando-se para isso de quaisquer ferramentas que a literatura moderna deixasse à sua mão. Tanto é que existe uma relação direta entre os personagens e a forma utilizada no discurso deles. Os mais incompreensíveis para o leitor costumam vir dos loucos, dos mentalmente perturbados de qualquer espécie, como é o caso do Darl. Nesses casos, a propósito, o Faulkner faz até um inversão da relevância deles, já que não recebem praticamente nenhuma atenção da sociedade. Se existe alguma classe que se beneficia com o Faulkner deve ser essa, a dos mentalmente instáveis... :hihihi:

Concordo também que, uma vez reconhecido, o Faulkner acabou atraindo mais atenção por essas complexidades de estilo. É aquela coisa, todo mundo quer mostrar que entende... Mas nem acho que esse seja o ponto crucial, acho que o mais importante no trabalho dele é essa proposta de explorar, como ele mesmo disse: the problems of the human heart in conflict with itself. Já para a proposta do Steinbeck em "As Vinhas da Ira" é bem diferente, e para ela o seu estilo caiu perfeitamente. Tanto é que o livro foi imediatamente contestado e combatido, enquanto os primeiros livros do Faulkner nem receberam atenção. Imagino o Faulkner escrevendo sobre os "okies", acho que ninguém nem se daria conta do problema... Tem gente que torce o nariz para o Steinbeck, mas isso me parece mais elitismo. "Vinhas" é um livro muito bonito, à sua maneira. O Steinbeck demonstra uma sensibilidade "social", quer dizer, quanto à posição das pessoas na sociedade, que não vejo muito no Faulkner, que poderia também, nesse sentido, ser chamado de bruto.

Uma outra coisa que estava pensando sobre o Faulkner é quanto à construção de Yoknapatawpha. Foram 17 livros nesse condado fictício! Ele desenhou até mapinha do lugar, onde consta, por exemplo, onde seria a terra dos Bundren. Parece algo mais próprio de escritores de fantasia, né... Mas acho que isso mostra um pouco mais dessa relação entre os indivíduos e a sociedade na obra dele: se o foco das histórias está na dimensão individual de cada personagem, eles não deixam de estar sustentados por um mesmo contexto, que acaba emergindo na totalidade da obra, desde o escravo até o latifundiário (e como falam do Cel. Sartoris...). De um certo modo, é mesmo como uma fantasia, é como uma recriação do Sul. O que acha disso?
 
[align=justify]Sobe sua última pergunta:

Gigio disse:
De um certo modo, é mesmo como uma fantasia, é como uma recriação do Sul. O que acha disso?

Toda a literatura, por mais verossimilhante que possa querer ser, será, em alguma medida, uma recriação da realidade. Direta ou indiretamente, consciente ou inconscientemente. Isso é muito interessante e deveras essencial no meu caso, que estudo História e Literatura, que, a grosso modo (quase grosseiro mesmo), lida com factual e ficcional.

Basta tentar recriar uma cena, um ambiente ou um objeto que vê na sua frente e ver como a escolha das palavras, a colocação dos verbos, a organização das idéias, enfim, todo o processo epistemológico de traduzir em palavras uma experiências sensível acaba imprimindo a individualidade, por mais ínfima que ela possa parecer. Creio que colocando o mesmo objeto na frente de 10000 pessoas e mandando-as descrevê-lo, dificilmente se chegará a um resultado 100% igual, embora a similitude permeie todas as descrições.

Enfim, para terminar com esse imbóglio professoral: o detalhe que cabe notar em relação ao que tu disse sobre a recriação do Sul é que ela não é feita a revelia do autor, se ele escolheu essa forma de estruturar suas histórias, isso significa que a intencionalidade dele nesse sentido existe e que, por esse motivo, existem razões para tal, as quais, por sua vez, cabe a nós desvendarmos. Porque ele usou desse "método" e não de outros?

Minha hipótese: ao usar desse recurso (ao qual, discordando de você, não vejo como fantasia) ele buscou criar uma nova "imagem" sobre o Sul. OK, isso é basicamente o que vínhamos falando até então, mas o "condado fictício" só vem a corroborar essa hipótese, já que a criação de um espaço ficcional ajudava a desvincular a imagem cristalizada que se tinha sobre essa região.

E isso é engraçado, pois, se quiséssemos birrar com o Faulkner, podíamos dizer que ele não teve "colhões" para denunciar abertamente ou que ao separar-se da realidade nomeada como tal, ele estivesse mais próximo da alienação do que propriamente de um repensar consciente sobre uma situação histórica. Deixo claro que esses pensamentos passaram pela cabeça, mas acho-os descabidos, embora sejam profícuos para pensarmos seus contrários (meio que aquela história de saber o que é, mas também o que não é, sabe?)

Tens alguma outra hipótese? Achas a minha descabida também?[/align]
 
Não sei, Lucas... Acho que a pergunta é bem importante sim, "Por que criar um cenário paralelo ao Lafayette County e chamá-lo Yoknapatawpha?", gostaria de saber se o Faulkner respondeu a isso alguma vez em uma entrevista, certamente devem ter proposto a questão... Mas entrando para o campo da especulação, me parece que temos visões um pouco diferentes do que poderia ser uma boa resposta, e nisso repetimos a mesma discordância de outros pontos anteriores, como você já bem percebeu.

Concordo com você que a criação de um espaço ficcional desvincula a narrativa dele da imagem que se tinha da região. Só que isso vale em outros sentidos que não apenas o de afastamento para crítica. Valeria também, por exemplo, para uma desvinculação que favorecesse a liberdade criativa. E é muito mais nesse sentido que vejo. Acredito que quando o Faulkner se propôs a escrever seu primeiro romance, ele tenha sentido a necessidade de se libertar das restrições de um cenário estritamente real. Acho que, ao contrário daqueles escritores que se apoiam na realidade a tal ponto que é possível dizer "esta é a casa onde tais personagens teriam vivido", o Faulkner preferia se sentir livre para fazer as modificações que lhe inspirassem mais, para dizer que a fazenda dos Bundren ficava lá onde ele imaginava, sem nem pensar em parar para olhar um mapa.

Por isso continuo mantendo minha hipótese de que se há alguma crítica social no Faulkner, ela ocorre apenas indiretamente. E que ele tem lá o seu quê de Tolkien... XD

E o que mais você tem descoberto sobre esses anos 20 e 30 do Sul??
 
natalia disse:
Não entendi o final desse livro... a Mulher que morreu não era a mãe das pessoas? A verdadeira Addie estava viva?

Ao que tudo indica, Natália, a mulher que morreu era sim a mãe de todos os filhos. A outra Sra. Bundren que aparece no final é a senhora para quem o Anse foi pedir as pás emprestadas (pás mesmo? :think: ). É que a fila andou rapidamente...
 
É estranho porque em uma das ultimas falas de Cash ele fala que Darl "ficou assim todo o tempo em que estivemos na frente da casa de Mrs. Bundren, ouvindo música..."
Cash sabia que ela era a nova esposa do pai?
 
Verdade, Natália, fui conferir aqui e acontece isso mesmo... Estranho, né... :think:

Mas não é a única vez em que o Faulkner faz seus personagens se adiantarem à narrativa, aconteceu antes com o Darl, então só posso supor que o Cash, sendo tão metódico, já utilize o nome correto mesmo antes de que pudesse sabê-lo, ou algo assim. Assumir que aquela mulher é a verdadeira Addie, por outro lado, traria inconsistências para todo o resto do livro: quem estava no caixão? Qual o sentido do capítulo dedicado a Addie? Se ela não é mãe dos outros personagens, por que eles ficam tão abalados com a sua morte? Além disso, em uma entrevista que citei mais no início do tópico, o próprio Faulkner explicou que Anse não havia tido contato antes com aquela nova Sra. Bundren. É a ironia do final do livro: depois de tanto trabalho para enterrar Addie, Anse encontra uma substituta em tempo mínimo.
 

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