num dos capítulos de um livro que escrevi sobre poesia, falo rapidinho do cavalgamento:
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5.1.18. Cavalgamento.
Idealmente, todo verso deveria encerrar uma unidade de ritmo e de sentido. Assim que a gente terminasse a leitura de um verso, teríamos entendido mais ou menos a ideia antes de passar para o próximo. O problema é que já na poesia antiga encontramos poetas elaborando frases e ideias inteiras que percorrem mais de um único verso. Em casos extremos, o final do verso termina de maneira tão abrupta que temos que saltar para o próximo a fim de completar o sentido. O nome desse efeito é cavalgamento, mas também é possível encontrar quem o chame de embebimento, cavalgamento ou enjambement, este último um termo francês muito recorrente que significa atravessar esticando a perna (jambe).
Para Dioniso de Halicarnasso, o cavalgamento, ao cortar os períodos fazendo com que eles não correspondam ao tamanho do verso, é um dos fatores responsáveis por destruir a regularidade métrica e, com isso, aproximar aquele poema da prosa. É um comentário muito curioso, mas que não deve levar a crer que o cavalgamento seja um recurso apenas a serviço do prosaísmo. Em textos metrificados e rimados, por exemplo, o cavalgamento pode ser apenas uma necessidade poética: o autor precisou parar ali, daquele jeito, para caber na métrica e rimar direitinho. Mas há muitos outros exemplos de cavalgamentos criativos, a exemplo do que Wagner Schadeck faz no soneto “Édipo”: “Os paralelepípedos aos poucos / Podres deixam banguelas as estradas.” Quando chegamos ao fim do primeiro verso, “aos poucos”, precisamos correr para o próximo a fim de completar o sentido com “podres”. Isso acelera ao mesmo tempo que atravanca a leitura, sugerindo uma ideia de tropeço. Note que, no soneto como um todo, é a única situação em que um cavalgamento ocorre, já que todos os outros versos terminam demarcados pela pontuação.
Nesta cidade de almas enlameadas,
Como dentes que saltam dos cavoucos,
Os paralelepípedos aos poucos
Podres deixam banguelas as estradas.
Os seus sonhos são lâmpadas queimadas
Num corredor de hospício cujos loucos,
Com colchas no pescoço e gritos roucos,
Em fuga se enforcaram nas sacadas.
Em sua entrada, à luz de olhos alertas,
Que piscam pela madrugada adentro,
Por praças e avenidas mais desertas,
Nos muros e edificações do Centro,
Meu olhar nos hieróglifos constringe:
Como decifro esta voraz esfinge?
O cavalgamento, segundo Paolo Dainotti, faz com que dois níveis de construção textual se sobreponham: “o sintático, que atende à necessidade de clareza na comunicação, e o métrico, que, graças às suas limitações, indica as marcas pelas quais a poesia deve ser reconhecida.” Se a natureza do cavalgamento é dupla, isso quer dizer que não há uma única maneira de ler: é possível dar mais atenção à informação sintática, passando de um verso a outro como se nada tivesse acontecido, ou, ainda, acrescentar uma pausa qualquer ao fim do verso, respeitando a métrica do texto. Mas muitas outras estratégias são possíveis, por exemplo ler no ritmo de todos os dias mas inserindo pausas sempre que o cavalgamento for de algum modo significativo, como é o caso do tropeço no soneto de Wagner.
Isso nos leva a uma última questão sobre os cavalgamentos. Rogério Chociay certa vez comentou que os efeitos do cavalgamento não ocorrem do verso e sim da estrofe. Enquanto a passagem de uma estrofe para outra envolve uma pausa longa, a passagem de um verso para outro envolve uma pausa apenas semilonga. Ou seja, o cavalgamento é um recurso de ênfase que reduz a pausa entre os versos, mas que nem por isso prejudica o ritmo total da estrofe, pois explora outros caminhos possíveis. O exemplo de Chociay é esclarecedor: “cem quadras, por exemplo, totalmente idênticas pelo esquema intensivo dos versos, poderão representar, por virtude do jogo de pausas e outros efeitos trazidos pelo encadeamento, cem realizações diversamente ricas e diversamente legítimas sobre uma base comum”.