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Dublinenses (James Joyce)

Terminei de ler o livro hoje. Acho que foi bom ter lido assim, de uma vez e relativamente rápido mas refletido porque pude reter certas impressões muito fortes e ainda absorver o todo da obra.

O que mais chama a atenção é a unidade em torno do homem em sua relação com o tempo, não só com o tempo nem apenas com a idade, mas com o todo que liga tempo, idade, homem, pathos ou falta de pathos. Em outras palavras, a unidade dos contos está nos efeitos do tempo universal e do tempo particular (as condições sociais, culturais, políticas e religiosas da Dublin de fins do século XIX e começos do XX) e como esses efeitos vão se orquestrando e se organizando em um quadro melancólico de pessoas que ao mesmo tempo que assumem sua identidade irlandesa (registrada em vícios e virtudes características), se identificam ao todo da humanidade. São as mesmas virtudes e vícios, principalmente vícios, de todos os homens mas encarnados em almas se deslocando pela bela e suja Dublin. Dublin é a corporeidade. Não é só um corpo, é o que dá corpo, forma, a consciências atormentadas por si mesmas, pelas próprias hipocrisias, paixões, divisões na alma. Os dublinenses são tão reais como eu e você, e nossas consciências não são menos atormentadas que as de Little Chandler ou do narrador de Arábia.

Falando dos contos, acho meio complicado falar de cada um. Basta dizer minhas impressões sobre os que mais me chamaram a atenção, exceto por um ou outro menos importante onde se podia ver esse retrato da alma mais ou menos cru, mas de forma superficial, mas é totalmente culpa minha não ter captado isso, creio eu. Outros rasgaram meu coração, me feriram mesmo, provavelmente por eu me ter identificado com algumas situações e com os sentimentos ali descritos. Um exemplo foi Arábia: o amor do narrador criança por aquela moça é descrito de forma tão cruelmente exata, um sentimento puro, doce, cândido, angelical de adoração silenciosa, de suspirar tímido e isolado, praticamente uma paixão religiosa, e toda essa volúpia que se entrega inocentemente a um simples pedido da amada, um pedido por algo banal, até inútil. E essa inutilidade não impede de o coração estabelecer uma relação de devoção, de missão que vai se afinando pelo martírio constante da ansiedade que vai corroendo a alma até a realidade do banal, do simples, que bate de frente com toda essa idealidade sonhadora, fantasista, doce... e a pobre criança chora. De ódio? De quem? Provavelmente, de si mesma...? Interessante notar que os contos envolvendo a infância não me chamaram a atenção como esse; sim, eles se ligaram a mim de uma forma melancólica e doce também, mas era mais nostalgia que outra coisa, enquanto esse me trouxe memórias antigas e, com elas, dores antigas, uma comunhão no sofrimento mesmo.

Entre os contos da adolescência, 'Eveline' e 'Após a corrida' me tocaram mais. O primeiro pela razão que todo conto romântico-realista toca: a disparidade entre o desejo do coração e a realidade, e aqui acompanhada de um senso de banalidade que chega a ser ofensivo. Ofende tanto que foi um lampejo mais forte, mais um, da genialidade do Joyce. Já o segundo me remeteu a situações reais e mais que a elas, a estados de espírito, a uma euforia muito característica da adolescência, da juventude, a fuga de responsabilidade, e em tudo uma visão jovem, viciada, perdida, desagregada que permeia todas as Dublins do mundo. Mas que aspira a algo diferente, a algo mais sublime, hermético talvez?

Entre os contos da vida adulta existe só Argila que não me chamou muito a atenção. Os outros foram angustiantes, pungentes mesmo, dolorosos. 'Uma pequena nuvem' é o conflito entre estilos de vida, entre estilos de viver a vida, entre almas e seus destinos, os caminhos que percorreram e mais que isso, a sua relação consigo e com os próximos e como isso afeta, aliás, até funda e forma seus destinos. Nada idealizado aqui, nada mais que enfrentamento de egos, a irritação do banal elevada a um paroxismo de dor e de ira, onde o vício (ira) é a bílis que escorre de um organismo corrompido pela rotina incessante e miserável, pela insuportabilidade do mundo, de si mesmo, da Dublin particular. Esse foi tenso demais. Aí temos 'Contrapartida' e seu 'heroi': aqui é muito claro, muito evidente, a predileção instintiva (é o instinto que impera aqui) de Farrington pelo... instinto, ou melhor, por si mesmo. Tudo à sua volta é desimportante, tudo é relativo, inútil, até odioso, tudo que exista no mundo que não seja para satisfazer seus vícios pessoais, seu apetite descontrolado pelo niilismo alcoólico, tudo, é inútil, quando não é a satisfação do vício em si ou meios de conseguir mais uma dose. Não existe aquela sanha em conseguir uma garrafa ao custo de qualquer coisa, isso seria baratear demais a Dublin de Farrington, não, ele se satisfaz sim mas em tudo a satisfação do vício aliada a outros eventos igualmente viciados, outras instâncias de vício, de satisfações egoístas, de valorações egoístas. E o final, o da surra, é pungente exatamente por isso, além da violência, é o de saber que isso só vem fechar a incessante e dolorosa busca de se satisfazer nunca ficando satisfeito não apenas no vício, mas na contemplação do vício, na transformação degradante de tudo, de toda sua Dublin, em vício. Encerrando, temos 'Um caso doloroso'. Duffy é o típico misantropo, mas que diferente de outros seres recolhidos, isolados, niilistas, se vê às voltas com um envolvimento que ele julga ser incapaz de manter e mesmo de desejar. Isso gera um afastamento e pela própria intelectualidade desse afastamento, já sentimos algo de triste aí. E só piora: as notícias que ele recebe em seguida são ainda mais crueis porque não dá nem mesmo pra evocarmos remorsos, sofrimento que redime o homem de si mesmo e do mundo e o restitui à liberdade e comunhão com o gênero humano, não, aqui o remorso não vem, só há raiva e uma tentativa de esquecer. Isso choca, é doloroso demais. Mas... parece que Joyce não é um total descrente da metanoia: Duffy é uma pequena centelha de esperança, mesmo ele tem arrependimento, sofre ao contemplar a vida, se sente responsável por ela, lamenta não ter cuidado dessa flor. Ela morre, ele morre com ela, morre dentro de si. Só resta imaginar se o caminho que ele vai percorrer será o de um auto-aniquilamento de um Ivan Fiodórovitch ou de um renascimento como o de Raskolnikov.

Aí vem os contos da velhice. Não me identifiquei tanto, talvez só por Graça e a questão religiosa, a ambiguidade do ódio pelas velas e a fé que ainda existe, resiste, subsiste. E as pequenas hipocrisiazinhas de existências mirradas que não se vão do mundo sem deixar veneno inoculado aqui e ali, embora com certa dignidade.

Finalizando, temos 'Os mortos'. O que me impressionou aqui foi só o final mesmo, parece apenas mais uma situação banal, cheia de ocasiões banais mas que, sem que percebamos, vai nos conduzindo a uma tragédia do orgulho, a um sentido filosófico da morte, sentido poético até, um rememorar cheio de reflexão mas nada moralista, é como a superação de todos os vícios dessa Dublin, dessa Dublin chamada Gretta, superação operada pelo amor de Gabriel. A resposta é o amor, a compaixão pela dor que abre certa esperança, como em Duffy, esperança de cura das feridas. Nada metafísico, romântico, idealista. Só cirúrgico.

Li em três dias, um livro curto mas denso, cheio de uma melancolia, uma nostalgia, nada muito claro nem muito revolucionário no estilo ou na escrita, só algo mais cru mas que vai apresentando e abrindo situações e sentimentos onde se vai desvelando não só Dublin, mas todas as Dublins do mundo, todos os particularismos pelos quais se manifesta o homem em seu destino, sua busca. Foi uma leitura pouco menos que angustiante, foi reveladora, de certa forma um aperitivo do que vou encontrar (ansioso) em Ulysses, creio. Veremos.
 
Última edição:
aproveitando para colocar aqui o ctrl c ctrl v do post que eu tinha escrito para o blog do meia. li a edição da hedra, tradução do o'shea.

Alguns escritores infelizmente carregam uma fama de “difíceis” por conta de uma ou outra obra. Digo infelizmente porque é a tal fama que afasta possíveis novos leitores não só da obra que seria a razão desse “estigma”, mas também de outras que ele possa ter vindo a publicar que nada apresentam de hermético ou, digamos, até complicado. O caso mais representativo disso é o de James Joyce, evidentemente. Você, leitor comum, que lê por prazer e não por qualquer obrigação “ego-acadêmica”, provavelmente leu o título deste texto e já torceu o nariz. Ih, Dublinenses do James Joyce. Lá vai mais uma pessoa falando desse cara que eu nunca vou ler porque todo mundo sabe que ele “escreve difícil”. Vamos então para a boa notícia: se o Luciano já afirmou que James Joyce não é tão difícil, tenha certeza que Dublinenses é nada difícil. E pode inclusive convencê-lo a tomar fôlego para as outras obras do irlandês. Mas estou me apressando, vamos por partes.

Primeiro que já tinha lido Dublinenses há alguns anos, em inglês. O fato de eu ter “conseguido” ler sem qualquer dificuldade no idioma original serve para atestar que você não terá nenhum bicho de sete cabeças em mãos caso decida conhecer esta coletânea de contos de James Joyce. Segundo que este mês surgiu uma ótima oportunidade de conhecer o livro, já que a editora Hedra acabou de lançar Dublinenses com tradução de José Roberto O’Shea, um dos grandes nomes da tradução literária no Brasil. A tradução foi publicada anteriormente 20 anos atrás, mas O’Shea teve a oportunidade de revisá-la de tal modo que o próprio tradutor na introdução diz “o texto aqui publicado configura uma nova tradução”. Saiba portanto que se esse será seu primeiro contato com James Joyce, você estará em boas mãos.


Uma história para um livro

A história já é famosa, mas vale a pena contar (especialmente para os que desejam ser autores publicados). James Joyce começou a enviar os manuscritos de seu Dublinenses em 1905, quando tinha então 23 anos. Se pensa que o fato de ser ainda relativamente jovem faria com que ele aceitasse qualquer imposição do editor, vale dizer que ele defendeu sua coletânea com unhas e dentes, arrumando briga até com tipógrafos para que ela fosse publicada tal como Joyce imaginava que deveria ser. Resultado? Nove anos aguardando publicação.

As dificuldades eram variadas. Alguns contos eram considerados obscenos e deveriam ser “mutilados”, outros deveriam ficar de fora. Mas Dublinenses não é mera coletânea de contos agrupados sem qualquer elemento que os una além do fato de se passar em Dublin. Há mais por trás da ordem em que eles se apresentam, como se apresentam (e óbvio, quais se apresentam). Por isso mesmo gastando com advogados e com muita luta, Joyce insistiu que o livro deveria ser daquela maneira. E então foi publicado apenas em junho de 1914, e em uma carta citada na introdução, Joyce diz que foi rejeitado por 40 editoras!

Então fica a lição: não desanime. Até James Joyce foi rejeitado.

Dublinenses, a estrutura

Como dito antes, o elemento de coesão dos contos da coletânea não é Dublin. Dublin é fundamental, sim, quase uma personagem. É palpável, e não à toa muitos apaixonados pela cultura irlandesa adotam o livro como uma Bíblia, suspirando ao reconhecer nomes de ruas, imaginando os cheiros e cores tais como descritos por Joyce. Há de se considerar a importância do que Joyce fez (e aí não só com Dublinenses, é evidente) considerando o histórico daquela nação, a relação com a Inglaterra, a luta para criar uma identidade dissociada do país que os explorava. Retratando a cidade, suas pessoas e seus hábitos, Joyce cria um sentimento de reconhecimento e, mais importante, de orgulho, mesmo que a imagem que mostre não seja necessariamente bela e perfeita. É o que é, e por isso a identificação é imediata.

De qualquer forma, retornando à linha de raciocínio, a questão é que apesar da importância da cidade, ela não é o “cimento” de Dublinenses. A coesão se dá por uma ordem que representa os estágios da vida de um homem, da infância à vida adulta. Ao longo dos quinze contos gradualmente as personagens vão envelhecendo, e envelhecem também os conflitos que elas enfrentarão. Por isso a ordem é tão importante, e esse é um dos motivos que levaram Joyce a bater o pé sobre alterações. Ele fala da cidade, sim. Mas ele fala do homem. Faz de Dublinenses um espelho para que seus leitores se reconheçam naqueles pequenos retratos de momentos simples, mas tão carregados de significados. E ao retratar o ser humano, muito embora sua mira esteja apontada para um grupo específico de pessoas de uma época específica, ainda assim ele consegue falar com leitores mesmo quase cem anos após a publicação do livro.

Cabe relembrar que não, não é difícil ler Dublinenses. Mas Joyce quer que você assuma um compromisso. Não basta simplesmente decodificar o texto. A prosa de Joyce é sutil, e muito do que se tira dos contos não está necessariamente escrito lá. As histórias parecem absurdamente simples se lidas apenas em seu sentido óbvio – são realmente recortes das vidas de dublinenses, momentos em alguns casos até bastante banais. Mas carregados de tantos outros sentidos que Joyce nos convida a refletir um pouco assim que terminamos cada conto. O exercício é viciante, e a brevidade de alguns contos faz com que você acabe emendando uma leitura à outra sem nem perceber o tempo passar. Para quem tem aquela imagem de autor só para iniciados, quem diria que James Joyce poderia ser tão gostoso?

Estágios da vida

Os contos que representam a infância são “As irmãs”, “Um encontro” e “Araby”. Já no primeiro conto temos uma boa amostra do que será a leitura de Dublinenses. O garoto é avisado que um padre com quem mantinha amizade falecera e vai até seu velório. Sim, o conto é basicamente isso. E é aí que entra o que comentei sobre ler o que não está no texto. Confesso que passei algum tempo pensando sobre a conclusão, a fala das irmãs. Mais ainda, de por que Joyce escolhera esse título se a figura central é na realidade o padre. São reflexões como essa que surgirão nas outras páginas, como nas brincadeiras dos meninos de “Um encontro” ou na desilusão do garoto em “Araby”.

Seguimos então para a juventude (o conceito de adolescência é relativamente novo, então vamos usar “juventude” aqui), com “Eveline”, “Depois da corrida”, “Dois galãs” e “A pensão”. É interessante observar com esse conjunto como com o aumento da idade dos protagonistas, parece que vai ampliando também a densidade dos contos, os sentimentos explorados começam a ficar mais complexos. Desse estágio o meu favorito é “Dois galãs”, especialmente por causa da força das imagens como descritas por Joyce – acredito que é o que melhor me “transportou” para aquele momento da vida de Corley e Lenehan.

Chegamos então na fase adulta. O’Shea em sua introdução ainda divide em mais uma fase, a vida pública, mas acredito que uma está contida em outra, de certa forma. Nesse estágio temos “Uma pequena nuvem”, “Duplicatas”, “Barro”, “Um caso triste”, “Dia de hera na sede do comitê”, “Mãe”, “Graça” e “Os mortos”. O último – o mais longo da coletânea – é também considerado por muitos como o mais representativo da obra de Joyce, justamente por trazer alguns elementos que se repetem bastante nos 15 contos. A morte, a paralisia e a epifania, além, é óbvio, do retrato dos costumes da época. O marido se dando conta de que nunca poderá competir com alguém que já morreu pelo espaço no coração da esposa. Os pensamentos de Gabriel no desfecho do conto são belíssimos, e não à toa o texto costuma ser a referência número um ao falar dos Dublinenses de Joyce. ((A saber, existe um filme baseado neste conto, de 1987, lançado no Brasil como Os vivos e os mortos)).

Insisto na questão de que Dublin é sim uma figura importante, mas que o modo como Joyce retrata suas personagens faz com que essas histórias pudessem acontecer em qualquer lugar, alterando-se nomes de lugares e questões típicas dos irlandeses. “Mas sobra algo tirando Dublin e questões típicas dos irlandeses?”, você poderia perguntar. Sobra. Como dito, sobra o ser humano, com todos seus pensamentos mais profundos, nas qualidades e defeitos. O crítico Harold Bloom costuma reconhecer como genialidade de Shakespeare o fato de ele retratar tão bem o homem, então prolongando esse raciocínio para o que se vê nas páginas de Dublinenses pode ser considerado sim trabalho de um gênio. Sem invencionices na narrativa, sem neologismos – Joyce é o que é mais do que é capaz de fazer com a linguagem, mas também pelo retrato que faz das pessoas.

Oi, você chegou até aqui?

E assim Dublinenses vem como resposta para quem quer impor ao Joyce a condição de autor que só pode ser lido por iniciados. Você pode se emocionar e se ver nas páginas de Dublinenses sem que para isso tenha ido para Dublin ou tenha cursado uma disciplina sobre James Joyce na faculdade. É uma leitura que flui sem qualquer dificuldade, mas que ao mesmo tempo pede comprometimento do leitor – e por isso serve como um exercício delicioso de leitura. Por muitas vezes esquecemos do nosso papel como leitores, e esperamos passivamente que uma história se revele diante dos nossos olhos. A pluralidade de sentidos que pode ser retirada de Dublinenses faz dessa coletânea uma experiência única e – tenha certeza – ótima fonte de conversa entre outros amigos que já puderam conferir.

Se posso deixar algum conselho é que perca o medo de Joyce, pelo menos para Dublinenses. Esse encontro vale a pena por ser tão marcante. Não só para os irlandeses, mas para todos nós, amantes das boas histórias. Para encerrar, só mais algumas informações: a edição da Hedra, além de uma capa belíssima, tem introdução de O’Shea que por si só já basta para quem ainda assim está inseguro de encarar James Joyce. Encerrando a coletânea há ainda três cartas de James Joyce sobre Dublinenses.
 
A Cia das Letras lançou dia 5 uma edição econômica com dois contos de Joyce e o monólogo da Molly. Os contos são "Os mortos" e o "Arábias", bem os meus preferidos.

http://www.companhiadasletras.com.br/detalhe.php?codigo=85077

A tradução é do Galindo.

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