O que é um livro?, por Deb Olin Unferth
O livro está de saída, me dizem. A era do livro acabou, o grande dragão está se dirigindo ao horizonte, para fora de vista, morrendo. Estou tentando entender o que isso quer dizer. A palavra “livro” é uma abstração quando usada assim e pode significar todo tipo de coisas:
• O objeto, o livro ele mesmo, o dispositivo físico encadernado.
• O texto do livro, o que está entre as capas — o romance, a biografia, o grupo de poemas.
• A habilidade de escrever livros: se há menos livros, o conjunto de habilidades (parte técnica, parte arte intuitiva) requeridas para escrevê-los vai atrofiar.
• O ímpeto, o impulso autoral para articular e moldar narrativas, para puxar aquilo que está dentro da mente e botar em palavras, contar algumas mentiras a respeito, organizá-lo meticulosamente e entregá-lo a estranhos. (E tememos também perder um impulso mais geral — a necessidade de criar impressões narrativas de nós mesmos? A necessidade de criar algo que perdure, de tomar parte numa tradição?)
• O desejo coletivo pelo livro: o público e o buraco que o livro preenche no peito, seja o que for que impulsiona o leitor, uma silenciosa busca passiva de algum tipo, por sentido ou conexão, o desejo de estar ausente ou “perdido”, ou, alternativamente, um desejo de estar presente, conectado, “engajado”.
• A comunidade dos livros: os clubes de leitura, os programas de escrita criativa a AWP (Associação de Escritores e Escrita Criativa).
Quais desses estão desaparecendo com “o fim do livro”? Quais seria pior perder?
Quanto ao próprio objeto, parece de fato haver o perigo de que o livro encadernado siga o caminho de outros objetos civis datados e diminuídos: a caixa de fósforos, rolos de cabelo, filmes no drive-in — coisas que ainda existem, mas rarefeitas. Provavelmente haverá menos livros na casa das pessoas, menos em mochilas e pastas, menos livrarias.
E, sim, isso é triste, porque gostamos de livrarias e mochilas cheias de livros (até o filme no drive-in ainda mantém um lugar em nossos corações), mas você não pode se apegar a alguma coisa por puro sentimentalismo — ou pode, mas não vai funcionar. Além disso, um monte de gente nunca sequer teve livros nas suas pastas. Então no fim das contas não acho que isso vá importar muito.
E talvez o que está dentro do livro, o texto, esteja um tanto em perigo também. O formato original pensado para um romance ou um punhado de poemas foi o livro, e se o formato definha, a forma vai definhar — ou se transformar para adequar-se a seu novo meio. O e-book: seja como for que o terremoto literário afinal se acomode, se o e-book sobreviver a escrita para esses aparelhos vai assumir uma forma distinta. Além do e-book provavelmente se tornar uma espécie de dispositivo conectado à internet, em 3-D, com hologramas, raspe-e-cheire, o cérebro lê uma tela diferente do modo como lê uma página impressa, então a escrita vai se readaptar para ajustar-se à leitura em tela.
Como escritora de ficção, posso imaginar que elementos estruturais, como o ritmo, e elementos micro-estruturais, como o tamanho das frases, vão mudar, por exemplo. Então a capacidade de escrever livros poderiam também estar em perigo. A habilidade específica para escrever romances ou compor poemas poderia regredir ou mudar muito. Mas não vai desparecer completamente. Algumas pessoas ainda vão escrever livros não importa o que aconteça, porque é difícil (ao menos para mim), e seres humanos têm uma tendência a fazer coisas difíceis, ainda que sem sentido ou recompensas.
Quanto ao impulso autoral e o desejo coletivo pelo livro — o quanto tantos de nós desejamos tão intensamente dizer o que é ser nós mesmos, e como parecemos fascinados por descobrir o que nossos companheiros pensam da existência — esses não estão indo a lugar nenhum. Seja o que for que o livro faz pela Humanidade, da forma misteriosa como o faz, ainda será feito. Algumas pessoas ainda serão impelidas a representar a experiência e a buscar criativamente sentido narrativo, e outras pessoas vão preferir dedicar-se a consertar aviões ou o que seja, sem ajuda da distração existencial da arte.
E o mundo do livro? E quanto a isso? Todos editores e agentes e divulgadores e resenhistas? O que acontecerá com esse povo merecedor de emprego? Ah, essa espécie é resistente. Vão encontrar outros lugares para fazer o que fazem, apenas de maneira um pouco diferente. Eu não me preocuparia com eles.
E o ensino de escrita criativa? Qual é o sentido disso tudo? Todas essas pós-graduações em criação artística? Não, não, isso ainda é uma boa ideia. Afinal, as universidades estão cheias de cursos que já não dizem respeito a nada. Isso é triste? É uma droga, essa perda do livro-objeto, esse destronamento do ofício? Bem, para mim é uma droga, é claro. Passei muito tempo aprendendo esse ofício específico, em detrimento de todos outros Se você for lamentar o declínio do livro, lamente por pessoas como eu (e você: se você está lendo isso, provavelmente é uma dessas pessoas também). Lamente pela geração anterior à minha, e talvez por alguns dos nossos estudantes que foram bobos o bastante para acreditar quando dissemos que isso era algo de importante, nada a ver com estudar arte bizantina ou literatura francesa. Lamente por aqueles envolvidos na transição, as várias gerações que se prolongam, e por aqueles de nós que, como jovens crédulos, apostaram todas suas fichas no livro e então se tornaram tão especializados que logo qualquer outra vida estava fora do nosso alcance. Essa parte é uma droga.
Mas na maior parte não é uma droga. Outras coisas são uma droga. Pense nos bilhões de animais terrestres nascidos para serem torturados e assassinados para nosso divertimento culinário a cada ano. Redes de pesca industrial arrastam cinquenta toneladas de animais marítimos a cada puxão. Pense no desmatamento. Estamos esmagando tudo que pudermos. O livro agonizante parece algo suave em comparação, insignificante e natural e nada de inédito. Estou me tornando antiquada, e daí. Meus amigos também, e daí. Formas de arte evoluem, e suas mídias se transformam ou são substituídas. Para mim esse planeta parece um holocausto: os corpos se empilhando, a terra se enchendo de plástico e sangue, enquanto a única vida restante (nós) se arrasta pelo grande cemitério, pulsando e destruindo. Se eu for prever o futuro da narrativa (Para quê? Para que possamos olhar para nós mesmos e rir?) meu palpite é que as próximas grandes obras — seja como forem transmitidas — serão um enorme jorro de desespero e arrependimento pelo que fizemos, por nossa estupidez e egoísmo. Estaremos sentados em nosso tanque esterilizado, esfregando as janelas na esperança de ver a terra de sonho que destruímos. Estaremos escrevendo com nossas barras em nossas telas-espaciais sobre a punição que merecemos, a punição que não virá.
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DEB OLIN UNFERTH é escritora, autora de “Minor Robberies”. Texto publicado originalmente no livro “The late american novel”