Dois Cachorros 2/3
"Sob o olhar desconfiado da tia, e o olhar confiante do cão, o menino inventa a poesia"
Quintana
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1
albertopiragibe@hotmail.com
Para: alinepiragibe@orionpublishing.co.uk
Assunto: Re:Re:Re:Re:Re:Re:Re: oi beto!
Fala, Line. Recebi tua mensagem, mas só chegou 10 da noite (Claro dos infernos!). Também achei lindo o maluquinho chorando depois do gol. Ele é coração, lembra o Edmundo, pode crer. Enquanto ele não der cerveja ao macaco estamos bem lol. Acho que a gente ganha da mulambada, mas dá Corinthians. Cê tinha que ter ido ontem!
Olha, fui ver a mamãe... tá morrendo de saudades. “Diz pra Gogóia não beber muito não. Lá só tem cachaça!” Rsss. Velha Patusca! Rssss. Falei com o Dr. Lino... ele aumentou a medicação pra 16 mg... disse que ela anda muito agitada, que eu tenho que ir lá mais vezes e que é a mesma coisa, só que agora é Flaubert e o Machado. Porra! Quero ver a mamãe.... como é que vou pegar a BR do jeito que eu tô? Me sinto um lixo às vezes, sabe...
Tô revisando as provas do Quintana. Só que o Felipe me liga TODO DIA. Alberto, “o” novo olhar ou “um” novo olhar? É um inferrrrno. Ele consegue ser mais chato e mais burro que a Tia Néia! Parece que o cara não quer publicar o livro. E eu precisando do dinheiro...
Já tô andando bem melhor. Até dou umas voltas com o Hoff de vez em quando. Sabe que sempre que saio com ele volto com poema-safra-boa? Esse cachorro ainda me salva a carreira! Ahhh! A Cláudia tá mandando um beijo. Lembra o Inácio pra mandar a camisa do City (GG).
Se puder, deposita algum?
Beijos,
Beto.
Toma o poema do Hoff:
A gente faz poema pela mesma razão que um cachorro come mato
É o caso de curar azia em que não se pensa
Vermifugar bicheira que nem existe
O poeta cava o poema quando preso
O cão morde o mato como a uma mosca
Aquele o põe em linhas quando está à solta
Este usa a relva por não ser poeta
O poeta escreve o verso que o faz cachorro.
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2
Aline rodou um pouco a cadeira em que estava sentada, pegou um cigarro mecanicamente e, olhando os azulejos do chão do quarto, cismou no e-mail que acabara de ler. Brincava com o padrão bicolor, preto nunca encarando o preto; com seu tabuleiro de xadrez. Intuia formas, dispersa. Era como se pudesse destacá-las em quadrados maiores, castelos e caminhões. Mas não passava de uma maneira eficiente de meter-se consigo.
Sentir, não sentia nada; nada que elaborasse ou que lhe viesse a mente em frases. Repassou o e-mail do irmão e, ato contínuo, entrou no site do Banco do Brasil. Fez a transferência maquinalmente. A quantia que depositou não lhe fazia falta e não lhe deu nada em que pensar. Releu a parte que falava da mãe na clínica e chegou a rir.
Mas foi aí que tudo voltou como uma onda traiçoeira e fez os dentes da Aline se esconderem de volta na boca. Por que a mãe estava internada até hoje? O que transformava os heróis dela em fantasmas literários que agora vinham, num fiacre, contar suas histórias pessoalmente? Aline sentiu um bolo se formar na garganta. Lembrou-se de coisas espinhosas. As lágrimas vieram de uma vez e ela sentiu-se feliz por estar sozinha em casa. Era um choro engendrado pela percepção clara do erro, de quem viu estendido diante de si seu pecado; um choro de criança. As lágrimas escorriam pelo nariz da moça e lhe caíam nos lábios, salgando. Ela as limpava na manga do suéter, o rosto vermelho surpreendentemente feio.
Sem parar de chorar, acendeu o cigarro, que até então trazia inútil na mão, e fumou.
"Sob o olhar desconfiado da tia, e o olhar confiante do cão, o menino inventa a poesia"
Quintana
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albertopiragibe@hotmail.com
Para: alinepiragibe@orionpublishing.co.uk
Assunto: Re:Re:Re:Re:Re:Re:Re: oi beto!
Fala, Line. Recebi tua mensagem, mas só chegou 10 da noite (Claro dos infernos!). Também achei lindo o maluquinho chorando depois do gol. Ele é coração, lembra o Edmundo, pode crer. Enquanto ele não der cerveja ao macaco estamos bem lol. Acho que a gente ganha da mulambada, mas dá Corinthians. Cê tinha que ter ido ontem!
Olha, fui ver a mamãe... tá morrendo de saudades. “Diz pra Gogóia não beber muito não. Lá só tem cachaça!” Rsss. Velha Patusca! Rssss. Falei com o Dr. Lino... ele aumentou a medicação pra 16 mg... disse que ela anda muito agitada, que eu tenho que ir lá mais vezes e que é a mesma coisa, só que agora é Flaubert e o Machado. Porra! Quero ver a mamãe.... como é que vou pegar a BR do jeito que eu tô? Me sinto um lixo às vezes, sabe...
Tô revisando as provas do Quintana. Só que o Felipe me liga TODO DIA. Alberto, “o” novo olhar ou “um” novo olhar? É um inferrrrno. Ele consegue ser mais chato e mais burro que a Tia Néia! Parece que o cara não quer publicar o livro. E eu precisando do dinheiro...
Já tô andando bem melhor. Até dou umas voltas com o Hoff de vez em quando. Sabe que sempre que saio com ele volto com poema-safra-boa? Esse cachorro ainda me salva a carreira! Ahhh! A Cláudia tá mandando um beijo. Lembra o Inácio pra mandar a camisa do City (GG).
Se puder, deposita algum?
Beijos,
Beto.
Toma o poema do Hoff:
A gente faz poema pela mesma razão que um cachorro come mato
É o caso de curar azia em que não se pensa
Vermifugar bicheira que nem existe
O poeta cava o poema quando preso
O cão morde o mato como a uma mosca
Aquele o põe em linhas quando está à solta
Este usa a relva por não ser poeta
O poeta escreve o verso que o faz cachorro.
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Aline rodou um pouco a cadeira em que estava sentada, pegou um cigarro mecanicamente e, olhando os azulejos do chão do quarto, cismou no e-mail que acabara de ler. Brincava com o padrão bicolor, preto nunca encarando o preto; com seu tabuleiro de xadrez. Intuia formas, dispersa. Era como se pudesse destacá-las em quadrados maiores, castelos e caminhões. Mas não passava de uma maneira eficiente de meter-se consigo.
Sentir, não sentia nada; nada que elaborasse ou que lhe viesse a mente em frases. Repassou o e-mail do irmão e, ato contínuo, entrou no site do Banco do Brasil. Fez a transferência maquinalmente. A quantia que depositou não lhe fazia falta e não lhe deu nada em que pensar. Releu a parte que falava da mãe na clínica e chegou a rir.
Mas foi aí que tudo voltou como uma onda traiçoeira e fez os dentes da Aline se esconderem de volta na boca. Por que a mãe estava internada até hoje? O que transformava os heróis dela em fantasmas literários que agora vinham, num fiacre, contar suas histórias pessoalmente? Aline sentiu um bolo se formar na garganta. Lembrou-se de coisas espinhosas. As lágrimas vieram de uma vez e ela sentiu-se feliz por estar sozinha em casa. Era um choro engendrado pela percepção clara do erro, de quem viu estendido diante de si seu pecado; um choro de criança. As lágrimas escorriam pelo nariz da moça e lhe caíam nos lábios, salgando. Ela as limpava na manga do suéter, o rosto vermelho surpreendentemente feio.
Sem parar de chorar, acendeu o cigarro, que até então trazia inútil na mão, e fumou.