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Désolé

DÉSOLÉ






Em mais uma daquelas manhãs muito frias de inverno, André acordou sozinho em sua cama. Ouvia o leve fustigar da água do chuveiro, abafado pela porta fechada do banheiro, que de imediato lhe trouxe a reminiscência do farfalhar das folhas das árvores daquele dia ventoso de um mês de Julho em que encontrara, pela primeira vez, aquela garota que tocava violino.

O pensamento se esvaiu tão de repente quanto apareceu. Agora seus olhos entreabertos miravam as semirretas vermelhas do radiorrelógio ao lado da cama, que marcavam 6:52. Levantou, preguiçoso, a cabeça do travesseiro e pôs-se sentado à beira da cama, com o dorso um pouco curvado para frente, cotovelos apoiados nos joelhos, e o olhar cansado mirando a porta do banheiro. Um momento depois, e ele deixou de ouvir o som da água do chuveiro.

Morava naquele quarto-e-sala com Lílian havia sete meses, e ainda detestava a assepsia das paredes todas brancas; apesar de pensar, por vezes, e com certo pesar irônico, que elas representavam bem a inocuidade da vida a que o casal havia se proposto quando escolheram aquele apartamento para viverem juntos.

— A descarga emperrou — disse Lílian, ao sair do banheiro. — De novo — acrescentou, baixinho, sem nem mesmo fixar os olhos em André. Ela estava envolta em um roupão amarelo, felpudo, e com uma toalha branca enrolada na cabeça. André não respondeu; esboçou um sorrisinho e desejou que tivesse dormido por mais dez minutos. Depois, lentamente, dirigiu-se ao banheiro. Entrou, fechou a porta e sentou-se sobre o tampo do vaso. Queria ter um cigarro. Queria não ser obrigado a esperar que ela saísse para fumar.

— Tu não tá atrasado? — perguntou Lílian. Já estavam à mesa, para o café da manhã. André sentava-se no banquinho, de frente para ela, sem nem mesmo lembrar por quanto tempo.

— Não vou trabalhar hoje — respondeu ele, mirando fixamente a xícara de café. Ainda queria um cigarro.

— Ah...

Lílian tomou o restante do seu café em um grande gole e repousou a xícara com um estalinho sobre o pires.

— O café vai esfriar — disse, ao levantar. Ela recolheu sua xícara e o pratinho em que cortara o pão, levando-os à pia. Não se preocupou em lavá-los.

— Eu realmente tenho que ir — emendou. E saiu.

André permaneceu absorto em seus anseios por mais alguns minutos, e, então, levantou-se, foi até a geladeira e abriu a porta. Geleia, requeijão, duas fatias de pizza e o que mais? Frio... Ele entrou timidamente, passos lentos sobre o piso de parquet. À frente, alguns feixes tímidos da luz do Sol, filtrada pelas nuvens espessas que cobriam a cidade, dividiam com um tapete cinza a decoração do soalho da sala. Júlia estava sentada, de costas para a porta, de costas para ele, em uma cadeira de madeira, daquelas grandes, imponentes, talvez de carvalho; não importava, ele não entendia de cadeiras, de qualquer forma. Ela esperou a aproximação dele antes de virar a cabeça, dissimulando surpresa, para recebê-lo.

Frio.

André voltou para o quarto e vestiu um moletom; então procurou o maço de cigarros na gaveta da mesinha de cabeceira, meio escondido, mas nem tanto; Lílian sabia que estava lá, mas eles mantinham o assunto a um certo distanciamento. Pegou o isqueiro e foi até a janela.

— A-há! Eu podia ter sido enganada pela altura, mas essa barba por fazer te denunciou. Identifique-se, forasteiro! E trata de explicar o que que tu pretendia com as minhas crianças.

Foi alguns meses após aquele Julho ventoso, já em Outubro, talvez. André não a via desde aquele primeiro encontro. O leve constrangimento que sentiu fê-lo sorrir bobamente ao encarar a jovem de cabelos castanhos que acabara de pronunciar aquela frase tão ingenuamente inquisitiva.

— Eu quase não te reconheci — emendou ela, agora abrindo um sorriso diante da expressão confusa dele. — Sabe... de longe.

Ele fez um meneio de cabeça e retribuiu com um sorriso constrangido.

— Eu tive um pouco de receio em vir dizer oi.

— Hei! Eu não esfaqueio as pessoas! — respondeu ela. — Se tu não quiser conversar, eu cumprimento e sigo meu caminho em MRU — acrescentou, agora com os braços às costas, o pulso esquerdo seguro pela mão direita, enquanto ela inclinava o corpo um pouco para frente, em um gesto que ficaria a meio caminho de uma reverência, não fosse o queixo erguido e seus olhos que miravam os dele.

— A não ser que seja interrompida por um carro, enquanto atravessa a rua, né? — retorquiu ele, desviando o olhar.

— Ok, MRUV. Satisfeito? Ha-ha-ha. Ah... não importa — disse Lílian pegando-o pelo braço. — Que saudade!

Foi aquela espontaneidade com que ela disse “que saudade” que cativou André.

Ele fumou dois cigarros em sequência, despojando-se dos restos pela janela. Estava debruçado sobre o peitoril, observando a movimentação do amanhecer. A vista do alto do prédio dava diretamente para as copas das árvores do parque em frente. Ele gostava de contemplar aquela vista, sobretudo nos dias de chuva.

— Redenção.

Júlia estava deitada de costas, o torso coberto pelo lençol, as pernas nuas, observando os movimentos de André de sobrolho. Ele permanecia sentado à beira da cama, de cuecas, fumando seu cigarro.

— Tu vem aqui pra me ver ou pra fumar? É o terceiro seguido.

André respondeu com um sinal de mão, erguendo os dedos indicador e médio, formando “dois”, sem virar o rosto para ela.

Júlia tinha uma tatuagem de um elefantinho no alto das costas, à esquerda, que ele jamais entendera. Por que logo um elefante? O traço era simplista, não tentava retratar um elefante real, parecia mais o Dumbo — aquele do desenho animado —, mas com orelhas mais proporcionais. Ela costumava reproduzir aquele desenho por todos os lados, repetidas vezes; ele nunca compreendera a razão, nem ela se esforçava em explicar. Aquilo não dizia respeito a ele, essas eram as regras dela.

Ele queria que estivesse chovendo. Ainda teria que ligar para o trabalho e avisar que não iria. (De novo. Sorte a dele ser servidor público, pensou. Anteontem já não havia voltado após o almoço; tinha preferido ver Júlia. Antes não houvesse ido). Diria que estava mal do estômago. Talvez tivesse uma úlcera; era comum ter aquelas dores de estômago.

— Voltando do curso de inglês, é?

— É.

Aquele dia ventoso de Julho. Ela quase fora atropelada alguns instantes atrás. Eles se conheceram assim mesmo, como um acidente esperando para acontecer.

— Já sabe falar bem?

— So so.

Ela abriu um sorrisinho. Eles caminhavam lentamente por aquela Rua do General, vindos da Independência.

— E o colégio?

— Ha-ha, tô na oitava — respondeu ele.

— Tá atrasado?

— Duas séries... Mas não é burrice, sabe...

— Tudo bem.

— Cabeça fraca... ou más companhias. Fuma?

— Não. Tu?

— Natural ou industrializado?

— Ahm... Ela ergueu as sobrancelhas e parou o andar, fitando-o.

— Brincadeira; não fumo, não. Perguntei só porque...

Estava deitado no sofá. Os programas matinais iam sucedendo um ao outro. Ele esperava que começassem os desenhos animados.

— Tu dá aula mesmo? Achei que era brincadeira.

— Tô fazendo magistério, ao invés do segundo grau. Daí, tenho que estagiar dando aula.

— Eu nem sabia que...

Pegara no sono. Já era início de tarde quando acordou. Ele se levantou, ainda sonado, pegou um cigarro do maço que estava sobre a mesinha que ficava de frente para o sofá, acendeu-o, e foi até a cozinha.

— Ela continua fingindo que não existe nenhum problema.

— E tu? — perguntou Júlia.

— Eu acho que às vezes esqueço de fingir.

Pegou uma das fatias de pizza da geladeira, com a mão, e pô-la na boca, fria mesmo.

— Engraçado — tornou ele —, eu sempre achei que seria ela a me trair.

Sentou-se e terminou de devorar a fatia de pizza. Queria não ter visto Júlia há dois dias. Foi um erro. Foi sempre um erro.

— Eu tô escrevendo um livro — disse a ela, quando estavam sentados à mesa, logo que ele chegou. Não haviam se beijado. Na verdade, não se viam há coisa de dois meses. Talvez um pouco mais.

— É? A respeito de quê? Ele nunca sabia se ela estava mesmo interessada.

— Um homem que tá escrevendo um livro.

— Nossa... e sobre o que esse outro homem tá escrevendo? Ela estava sendo irônica.

— Sobre um homem que tá escrevendo um livro.

— Sobre outro homem que tá escrevendo um livro? Definitivamente irônica.

— Não, sobre o amor.

Ela o encarou com um sorriso zombeteiro.

— Mas não sei se um dia eu vou terminar... Às vezes consigo alcançar as sensações que eu quero passar, mas as palavras simplesmente não vêm. Eu nem sei por que ainda perco meu tempo tentando.

Aquele dia ainda o consumia por dentro. Aquelas frases ainda ecoavam e retumbavam dentro de sua cabeça.

Pegou o segundo pedaço de pizza, mas logo o largou; dera apenas uma mordida e desistira. Não sentia fome, afinal.

— Às vezes eu fico pensando naquele dia, que a gente se conheceu e tudo... Tu podia ter morrido.

— Todo mundo morre, Dé. Faz parte da vida.

Eles estavam deitados lado a lado, no gramado do parque. Ela tinha uma daquelas câmeras fotográficas Polaroid, aquelas das fotos instantâneas, que ele nunca havia visto ao vivo; apenas nos filmes americanos. Passaram aquela tarde tirando fotos, que ela depois colocaria em seu mural, e conversando sobre amenidades. Talvez fosse daquela tarde que André mais sentisse falta.

— Não é totalmente verdade — respondeu André.

— Ah, não?

— O Highlander é imortal — tornou ele.

— Ha-ha-ha. Mas ele morre se cortarem a cabeça dele.

— E o Super-homem?

— Hm... Kriptonita.

— Ah... Tá, mas e o Wolverine?

— O Wolverine?

— Sim! Ele não morre.

— É óbvio que morre.

— Claro que não, ele se regenera.

— Ele morre, tenho certeza. É só ver como ele tá ficando
velho. Morre, nem que seja de velhice.

Ela recostou a cabeça no peito dele.

— Li...

— Que foi?

— Te amo.

Ela sorriu.

— Também, bobão.

Mais um cigarro. Era a única coisa para que ele tinha ânimo.

— Tu não é o meu Sol, Dé. É só um planetinha — disse Lílian,
ainda deitada, mas agora com a cabeça apoiada sobre as duas mãos, cotovelos no gramado, de frente para ele.

— Júpiter? — redarguiu André.

— Plutão!

— Tem certeza? Acho que eu sou a tua Via Láctea.

— Não! Plutão... Às vezes é tão distante.

Ele a puxou para junto dele.

— Eu não sou distante — disse André.

— Não sempre. Mas, muitas vezes, eu tenho uma dificuldade enorme em saber o que tu tá pensando, o que te deixa triste, o que te faz feliz.

— Em um dia de chuva, eu deitado com os nossos filhos na nossa cama de casal, vendo desenho animado, e tu fazendo biscoitos caseiros de chocolate e, depois, gritando da cozinha que tão prontos. Então eu me levanto, vou até lá, e nós voltamos para o quarto juntos; deitamos cada um de um lado da cama, espremendo as crianças no meio. O mais velho diz “ai, pai”, me olha franzindo o cenho e então sorri. E a chuva continua fustigando a janela, enquanto nós só... comemos os biscoitos e assistimos ao desenho. Acho que é essa a minha ideia de felicidade.

André levantou-se.

— Eu, às vezes, fico tão nostálgico — dizia ele para Júlia. — Fico lembrando e remoendo algum acontecimento passado, querendo sentir de novo aquilo que havia sentido naquele momento. E não são grandes momentos. São coisas simples, coisas sem importância; e os sentimentos, nem sempre foram bons, nem sempre forem intensos... E eu sinto falta deles, ainda assim; acho que só porque não tenho mais.

Parara em frente à estante de livros e DVDs.

— Sabe, chegou uma hora em que eu já nem sentia mais o tempo passar, ao lado dela. Mas não de um jeito bom, é como se... nada acontecesse. Não é aquela sensação de que o tempo tá passando muito rápido; na verdade, ele parece que se arrasta, mas quando chega o fim do dia, quando eu me deito para dormir, eu sinto como se aquele dia simplesmente não tivesse existido. No final das contas, os dias não passam e os anos voam. E eu não quero viver assim.

— Oh, isn't it exciting, Scarlett? You know those fool Yanks may actually want a war?

— We'll show 'em!

— Fiddle-dee-dee. War, war, war; this war talk's spoiling all the fun at every party this spring. I get so bored I could scream. Besides... there isn't going to be any war.


— Vendo esse filme de novo? — perguntou Lílian, ao entrar, antes mesmo de trancar a porta. André estava refestelado no sofá, com os pés sobre aquela mesinha de centro.

— É... quer ver?

— Já vi. Ela largou a bolsa sobre a mesa da entrada.

— Eu sei. Mas vê de novo.

— Tá tarde; fiquei presa no trabalho até agora. Ficou vendo filme o dia todo?

— Não... Só agora de noite.

— Hm... Já comeu?

— Comi a pizza... De tarde. Não quer ver mesmo?

Lílian se dirigiu ao quarto, não deixando de observar o maço de cigarros sobre a estante da TV. Parou.

— Fumou aqui dentro?

Ele não respondeu.

— Ela sempre acaba sozinha.

Ele bufou. E então recostou a cabeça no sofá e continuou assistindo ao filme.

— Eu não devia tá aqui.

Era o sexto cigarro que ele fumava à beira da cama, de cuecas.

— Tu ama ela? — perguntou Júlia.

— Não é essa a questão.

— Então, qual é?

— Já disse. Eu não devia tá aqui.

— Tu nunca consegue falar a verdade.

— A verdade é que nenhuma de vocês me faz feliz.

— Eu odeio esse teu jeito.

— Eu não tenho paciência para isso — disse ele, enquanto se
levantava e punha a calça. — Desculpa, mas não tenho. Vou indo.

— Tu é um idiota.

— Que seja.

André fechava o cinto. Depois tornou a sentar para calçar os tênis e, então, levantou-se novamente.

— Eu não quero mais te ver — disse Júlia.

— Tá bem — aquiesceu André, prontamente. Virou o rosto para
ela e então desviou novamente o olhar. Júlia suspirou.

— Eu tô grávida.

Ele tornou a se sentar na cama, aproximando-se dela.

— É meu?

— Não — respondeu ela, de pronto, sem olhar para ele.

— Como tu sabe?

— Não é teu.

— Se o filho for meu, eu quero saber.

— Eu já disse que não é. Agora vai.

André desligou a televisão e foi até o banheiro. Lílian já estava deitada. Ele escovou os dentes e foi para a cama. Sentou-se.

— O que mais me irrita é que tu nem mesmo tem a decência de dormir no sofá — disse Lílian, com o rosto parcialmente imerso no travesseiro.

Ele permaneceu sentado mais alguns instantes na beirada da cama; não a encarou, nem ela a ele. Sentia-se vazio e insatisfeito. E triste pelo que eles haviam se tornado. Deitou-se, finalmente, com o corpo virado para cima, olhando aquelas estrelas que Lílian havia pintado no teto do quarto com uma tinta fluorescente, como se fossem o retrato daquela jovialidade aborrecida que ela insistia em ostentar. Ele então se virou de costas para ela, fechou os olhos e esperou que o sono o tomasse. Mas não conseguia dormir.

Talvez tenha se passado uma hora sem que ele fizesse qualquer movimento. E como o tempo passa rápido quando se está deitado no escuro, vagando sem rumo dentro dos próprios pensamentos, pensou, afinal. Virou-se para Lílian, que dormia de costas para ele, e pôs-se a imaginar o contraste que as cores daquele elefantinho fariam com o tom moreno da pele dela.

— Tu ainda acredita no amor? — perguntou, meio que para ela, meio que para si.

— Não no nosso — ouviu ele, baixinho.

Ou talvez tenha sido só impressão.
 

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