O homem.
Ao longe, um homem vem andando pela calçada. Apesar da chuva que começa seu andar não é apressado. Pingos grossos e pesados explodem ao seu redor. Apenas alguns acertam seu chapéu de palha. Ainda assim o homem caminha devagar. A paciência foi apenas mais uma das coisas adquiridas ao longo de uma vida.
Ao chegar defronte ao portão, o homem para. Respira fundo e tira o chapéu da cabeça. Entende a mão, tentando aparar algumas das gotas de chuva. Com essa pouca água, arruma e alinha seu ralo cabelo grisalho. Então avança, ultrapassando o portão. O chão de terra vermelha batida está escorregadio. Ele caminha com cuidado, os braços semi estendidos como se estivesse equilibrado numa corda bamba. Em certo ponto ele quase cai.
_Cuidado ai, meu velho, ri consigo mesmo.
Enquanto anda, observa as roseiras que margeiam os dois lados do caminho até o pequeno lance de degraus e a porta da igreja.
Anda devagar, um tombo naquela idade certamente é bem mais temeroso que algumas gotas de chuva. Mesmo porque a chuva ainda não é forte, talvez até seja, mas está concentrada em poucas gotas. Pesadas e gordas, esparsas e imprecisas.
Achou que se houvesse uma bailarina ali por perto, dançando em volteios, a chuva não estaria conseguindo acertá-la. E sorriu a esse pensamento.
O homem alcançou os degraus da igreja. Diante da porta, ensaiou a entrada no salão, as duas mãos segurando o chapéu no peito reverentemente.
Mais alguns passos e alguns momentos foram suficientes para que seus olhos se adaptassem e percebessem que a igreja estava deserta. Ele sorriu, que bom, pensou. Não seria necessária tanta cerimônia desnecessária, afinal.
Tirou o chapéu do peito e entrou pela nave. Percebeu no banco da terceira fileira um rosário enrolado sobre uma bíblia. Alguém achou que podia ajudar algum desprevenido em sua oração.
Ele sentou e colocou o chapéu sobre o banco, sem cerimônia. Segurou o rosário passando algumas contas entre os dedos, ai então, finalmente levanta os olhos ao santuário.
_Pai!_ chama, agradecido por não haver ninguém ali e não precisar conter a demonstração de seu contentamento. Mesmo assim quase não se ouviu, a chuva perdera a paciência e se precipitava agressivamente. Dentro da igreja, o som era alto e grave, vibrante, e o eco crepitante tomava todos os espaços e pensamentos. Um jovem apressado surge repentinamente por uma porta que certamente deve existir atrás do altar. Tão rápido como surge, desaparece, depois de recolher da chuva um cavalete de anúncios de eventos na comunidade.
Depois de alguns segundos de hesitação, o homem responde em voz alta a pergunta.
_ Sim, meu Pai.
Apesar do som da chuva, e de saber que estava sozinho ali, o homem olha instintivamente ao redor, temeroso que houvesse sido ouvido por alguém. Um reflexo de tantos anos de observação.
_Sei que meu tempo aqui está chegando ao fim.
_Não, não estou triste, pai.
_Não, não se preocupe comigo, por favor. Foi uma ótima vida a que me deu. Só temo não ter sido tão útil assim no que me pediu, Pai.
_ Sei que não levarei as respostas que vim procurar. Afinal são tantas as coisas capazes de nos influenciar.
_São tantas coisas que turvam nossa visão às coisas realmente importantes. O corpo tem necessidades que precisam ser saciadas. A fome, a dor, o medo, a corrupção, até mesmo o amor, meu Pai, consegue por vezes ofuscar nossa visão.
O homem passa algumas das contas do rosário entre os dedos. Seria aquilo um tipo de oração? Talvez, pois algo daquilo falava para si mesmo, relembrando, a cada acréscimo, acontecimentos de sua vida.
_...Todos querem ser felizes, todos querem ser amados. Mesmo nos atos mais mesquinhos encontramos essas motivações quando cavarmos bem fundo. De forma que eu não sei muito bem o que falar sobre o Mal.
_ Sim... Eu não sei o que falar disso, pai.
_Sim, o amor é a salvação. Mas não era isso que queria Lúcifer? Não é isso o que ele ainda quer? Mais atenção do Senhor? Mais carinho, já que achava que não tinha suficiente. Mais ainda amor, já que se achava somente o segundo?
_ É... Eu sei. Não teve ele tempo pra saber, ou perceber, que o amor não tem medidas de intensidade. É um acontecimento. Não é como a paixão que se consome em seu próprio calor, em suas chamas.
Isso com certeza nunca teria acontecido antes, mas depois de tanto tempo gozando do livre arbítrio, o homem se explicou, mesmo sem ser solicitado.
_Todos tem medo da solidão... no fim. Enquanto observava minha velhice se aproximar, sorrateira, tive muito medo da solidão, mesmo tendo a certeza de que no final estaria contigo novamente, Pai. E isso é muito mais do que tem a maioria.
_ É uma terra sedenta de amor, Pai. Mas eles não se dão conta disso.
_ Sim. Estou pronto. Meus filhos já são homens e mulheres, minha esposa, sei que a verei novamente em breve. Não há nada mais que me prenda aqui.
Uma lágrima desce na face do homem, solitária. Desvia e corre por sulcos e rugas. O homem respira profundamente. Saborosamente, enche os pulmões até o limite e solta lentamente o ar.
A chuva pareceu cessar um instante, mas não parou. Apenas ficou suspensa no ar. Congelada. De algum ponto acima das pesadas nuvens escuras, uma irresistível luz branca se projetou. A luz, ao atravessar o vitral acima do altar, tingiu-se de um arco-íris fluido.
Ao iluminar o homem, formas há muito escondidas ficam a mostra.
O homem, envolto em luz, levanta e vai em direção a porta da igreja. Dali pode ver as gotas pairando no ar, suspensas como as pedras de um imenso lustre de cristal. Como um imenso móbile de berço pairando no ar.
Ao pensar isso não pode deixar de sorrir. Já correram na Terra, sujas e risonhas, crianças a quem pôde chamar de suas. Elas teriam se divertido vendo aquilo. Um móbile gigante. Todas elas têm seus próprios filhos agora.
Fora da igreja a luz o tomou completamente, descobrindo suas asas, ocultas a muito tempo.
Repentinamente a luz cessou e desapareceu, e com ela o homem. As gotas recomeçaram a cair todas ao mesmo tempo cravejando as roseiras de gotículas de brilhantes.
PALAVRAS: 1011