Disseram-me que eu deveria ter compaixão. Perguntei com quem, e me disseram com o próximo. Quem? Só pode ser o primeiro que eu encontrar. O mendigo na rua, o garoto pedindo dinheiro para o pai se embebedar, a puta que não encontra cliente, o falso empresário que alicia crianças, o padre pedófilo, o médico que estupra as pacientes, o anestesista descuidado, a mãe alcoolotra, o pai mulherengo, o deputado com a cueca cheia de dinheiro, a pedinte com carro último ano, a filha que abandona o pai em um asilo chique ou a esposa que quer trair o marido comigo? Ouço que devo ter compaixão com todas essas pessoas. Todas? Mas são um bando de FDP. Então lá vem ele com discurso poético: A compaixão diferencia-se de outras formas de comportamento prestativo humano no sentido de que seu foco primário é o alívio da dor e sofrimento alheios. Que tipo de alivio de sofrimento pode ter alguém que se embebeda, sequestra crianças, estupra, é negligente, infiel, ladrão ou imprudente? E então ele me diz que todas essas pessoas sofrem e buscam refúgio em coisas supérfluas. Refúgio? Coisas Supérfluas? E ainda tive que ouvir um discurso todo melancólico sobre as dores humanas, um porre. Sai de lá convicto que perdera meu tempo ouvindo aquele velho sem nome, até que cheguei ao local da minha casa. Nada sobrara. Os bombeiros apagavam os últimos focos de incêndio. Cinzas e entulho ocupavam o lugar que um dia foi chamado de lar. Os paramédicos me disseram que eu perdera minha mulher e 3 filhos, carbonizados. Meus pais já tinham morrido, e o único parente próximo era a bebada da minha sogra que eu não falava há 20 anos. Sai desolado, andei a noite inteira sem rumo. Na manhã do dia seguinte retornei a casa para ver se encontrava lembranças do que sobrara. Encontrei a sogra alcoolotra, o mendigo e seus três filhos que pediam dinheiro ali perto, o vizinho mulherengo, meu chefe e três prostitutas que ele pagara na noite anterior, a gostosa que vivia me seduzindo e o padre acusado de pedofilia. Todos estavam limpando o amontoado de cinza da minha casa e separando cada lembrança que sobrevivera ao incêndio. Fotos, presentes, detalhes da dor da minha perda escondidas nas cinzas. Cada um deles ao me ver vieram ao meu encontro e sem dizer uma só palavra me abraçaram e voltaram ao trabalho. Então uma mão tocou no meu ombro. O velho sem nome ficou ao meu lado, não disse uma palavra. Olhou-me, abraçou-me e sorriu.
ÓDIO