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Da Olimpíada à pelada com amigos, 2020 é o ano em que paramos de jogar. E isso mexe com todos

Fúria da cidade

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Apagão no esporte

Da Olimpíada à pelada com amigos, 2020 é o ano em que paramos de jogar. E isso mexe com todos

No dia em que o Maracanã fez 70 anos, os 78.838 assentos do estádio permaneceram vazios.

Torcedores e jogadores fizeram vídeos e tuítes, postando suas memórias do Maraca na internet. Veículos de comunicação lembraram a história do estádio, palco das lágrimas do Maracanazo, em 1950, do sentimento dividido dos brasileiros que não sabiam se torciam para a Alemanha ou para a Argentina na final da Copa do Mundo de 2014, e da alegria da vitória nos pênaltis da seleção masculina na Olimpíada de 2016 — em cima da Alemanha, dois anos depois do 7 a 1. A comemoração, em 2020, ficou apenas nas homenagens online: lá dentro, nenhuma festa.

A taxa de ocupação que verdadeiramente importa no Maracanã estava do lado de fora, no hospital de campanha construído ao lado da arena para tratar pacientes com Covid-19. Com capacidade para atendimento de 400 pessoas, a estrutura foi desativada em meados de julho, de forma inadvertida. Segundo o governo do RJ, seus 26 pacientes foram transferidos para outros hospitais da capital fluminense. O campeonato carioca voltou em meados de junho. Enquanto o Fluminense jogava contra o Flamengo para levar a Taça Rio, duas pessoas morriam de Covid-19 ali perto.

Assim como as arquibancadas do maior estádio do Brasil, ficaram vazios (e deveriam mesmo estar) os campinhos de terra batida das comunidades, as quadras de futebol sintético das partidas de amigos, as redes de vôlei da praia de Copacabana e as canchas de futebol de salão, que recebem os pequenos nas aulinhas dos clubes. O esporte individual também parou, para desespero de atletas que se preparavam para campeonatos e que contavam com isso para mudar de categoria, em determinadas modalidades, mas o jogo em grupo — tão ligado à saúde física, mental e à nossa vida em sociedade — deixa um vácuo ainda maior.

Já vimos suspensões de competições antes, como nos períodos de guerra. A diferença é que o vírus não permite interação física próxima, e muito menos a comunicação verbal envolvida na emoção dos esportes. Ao falar durante um minuto, podemos expelir ao menos mil gotículas contendo o novo coronavírus.

Esse apagão esportivo no mundo todo pode ter consequências psicológicas importantes. Torcedores e praticantes ficaram órfãos não só da atividade física, mas também de um sentido maior. "As pessoas sentem falta de estarem unidas por uma causa. Mesmo sem jogos, elas se unem por exemplo nas manifestações pela democracia, que iniciaram com as torcidas organizadas", observa Ana Lúcia Padrão dos Santos, professora da disciplina de Dimensões Sociológicas da Educação Física e Esporte na USP (Universidade de São Paulo). "Isso dá um certo propósito de vida, uma sensação de que faço parte de algo importante."


NA ARQUIBANCADA: OS TORCEDORES

Como milhões de meninos, Enzo Medeiros Fraga Larghi é apaixonado por futebol. Dos jogos de quarta-feira e domingo na televisão ao treino na escolinha e às partidas de brincadeira com os amigos, o esporte é central na vida dele, que torce para o Botafogo e para o italiano Juventus.

Desde o início da pandemia, o garoto tem recorrido ao quintal da casa dos avós para ensaiar alguns gols quando deixa, com a mãe, as compras de mercado para eles. Enzo mora no interior do Rio de Janeiro, e, antes de a pandemia começar, jogava em partidas organizadas entre os amigos no campinho. Ele conta que fez muitas amizades no futebol, e que hoje mata a saudade por chamadas de vídeo depois das aulas online da escola.

É também à internet que ele tem recorrido para torcer. "Pesquiso no YouTube jogos antigos do Brasileirão de 1995, quando o Botafogo foi campeão. Pesquiso também reportagens, notícias das décadas de 1950 e 1960 do Botafogo", conta ele ao TAB. Mas, claro, falta emoção na reprise. A TV Globo decidiu encerrar a transmissão das reprises de futebol por causa da baixa audiência.

Quem também tentou recorrer aos VTs para matar a saudade de torcer foi Michele Torquato, dosimetrista de 34 anos. Ela, que tinha até marcado no calendário do celular a data de abertura dos Jogos Olímpicos de Tóquio, não abriu mão de assistir ou praticar atividade física na pandemia — mesmo que sozinha. Foi por meio do esporte que a paranaense criou várias amizades durante a vida, e é como relaxa dos longos turnos de trabalho na área da saúde. Até o início da vida adulta, a paixão era pelo handebol. Agora, a corrida marca o início de todas as manhãs para ela.

"Sem o esporte, todo mundo perde. Ele é uma maneira de trazer equilíbrio, de colocar todo mundo no mesmo patamar. Olho para a nossa realidade brasileira e, num campinho de futebol na rua ou numa praça, todo mundo pode jogar, independentemente da classe social. É uma forma de união", avalia Michele.


EM CAMPO: OS ATLETAS PROFISSIONAIS

Enquanto sofremos com a angústia de não ter a que assistir e companhia para os exercícios físicos, atletas profissionais sofrem com a mudança completa no trabalho e nos planos para 2020. Quem se preparava para a Olimpíada, então, teve que adiar o sonho — e estender os treinos — por um ano.

É o caso de Isadora Cerullo, co-capitã da seleção brasileira de Rugby Sevens, que explicou ao TAB que existe uma preparação calculada em ciclos para cada grande evento, sendo a Olimpíada o maior deles, de 4 anos. "É uma preparação para aumentar gradativamente a força, a potência, a velocidade, ganhar volume e chegar a um pico, calculado para a época da competição", conta ela.

Com o início da pandemia e o adiamento do Jogos de Tóquio para julho de 2021, cada jogadora da seleção está treinando como pode, em casa. Isadora comprou o peso mais pesado que encontrou numa loja de equipamentos esportivos no início da pandemia e adaptou os treinos individuais sob supervisão da equipe técnica.

O coletivo, no entanto, fica impossível de replicar, admite. "Não é só manter o nível físico de cada uma e depois juntar as pecinhas quando voltar. Tem toda aquela coisa invisível do entrosamento, uma sintonia que você constrói só de estar lado a lado", afirma. Toda sexta-feira, depois da reunião diária com a equipe, as jogadoras ficam online para conversar, manter o contato e descontrair jogando jogos online.

Há ainda acompanhamento psicológico — que Isadora destaca como essencial nessa época de distanciamento social — e protocolos detalhados de retomada dos treinos, mas ainda sem previsão de serem colocados em prática. É aí que as desigualdades entre os países aumentam.

A jogadora lembra que, na Nova Zelândia, a pandemia já está sob controle e a seleção deve retomar treinos em breve. "Um dos valores olímpicos é a justiça. Eu me pergunto se estão rolando essas discussões mais filosóficas agora porque sempre houve desigualdade, mas o discurso de superação do atleta é muito valorizado. Eu me questiono se isso é produtivo", reflete.


O ESPORTE NA ESCOLA E NO BAIRRO

É em projetos como o Liga Solidária, com programas de educação, longevidade e cidadania para famílias de baixa renda, que muitas crianças encontram o espaço que não têm em casa — e às vezes nem mesmo na escola, com a educação física ganhando papel secundário — para desenvolver questões sociais ligadas ao esporte. "Os territórios de maior vulnerabilidade social costumam ser também os mais violentos, e as famílias têm muito receio de os filhos ficarem, entre aspas, desocupados", afirma Marina Nambu, gerente executiva de cidadania da Liga Solidária. "Tem criança que chega e briga muito, que não sabe conversar e transforma qualquer situação em conflito. Hoje a gente vê resultados muito expressivos, uma melhora disso com o esporte."

Durante a pandemia, as aulas migraram para o online, e a educação física se viu em um dilema: até dá para manter as crianças entretidas pela tela, mas será que todas têm espaço, segurança e supervisão dos pais para praticar exercício em casa? Caio Donatangelo, doutorando da USP (Universidade de São Paulo) e professor de educação física em uma escola municipal de Osasco (SP), precisou encontrar formas de transpor seu trabalho para pequenos vídeos semanais depois de começar no emprego novo.

"Estou lidando com crianças do ensino fundamental 1. Não posso imaginar que elas vão ter autonomia para fazer determinado exercício. Passo boa parte do vídeo dando instruções de segurança, e elas vão precisar da ajuda dos pais", explica o professor.
Dados nacionais mais recentes sobre a prática de esporte no país, aliás, não são muito animadores. Segundo o estudo Pnad 2015: Prática de Esporte e Atividade Física do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), divulgado em 2017, menos de 40% da população com mais de 15 anos tinha praticado algum tipo de atividade física ou esporte no último ano. Os números explicitam o tamanho da desigualdade: quanto maior a faixa de renda e quanto mais anos de estudo, mais frequente é a prática de atividade física.


NO TELÃO: OS eSPORTS

Uma modalidade que pouco sofreu com as consequências negativas do distanciamento social foi a do eSports. Com transmissões online e na TV, e partidas que podem ser disputadas à distância, os campeonatos seguem quebrando recorde de audiência. Em 21 de junho, quase 400 mil pessoas se reuniram simultaneamente para assistir à transmissão em português feita pelo streamer Gaules de uma partida de "CS: GO". Essas transmissões costumam ser feitas pela Twitch — uma plataforma de streaming, e Alexandre Gaules é o "comentarista" brasileiro mais conhecido no mundo dos eSports.

O recorde mundial da plataforma também ocorreu durante a pandemia: 1,7 milhão de pessoas conectadas simultaneamente para assistir a um streaming da versão beta do game Valorant, também num domingo, 7 de junho.

Airini Bruna, psicóloga que acompanha equipes de eSports brasileiras, explica que alguns dos times têm casas ou apartamentos nos quais os jogadores moram juntos, o que facilita na interação do time nesse tempo, as chamadas gaming houses. Antes, eles costumavam ir ao escritório de time para treinar. Agora, isso é feito em casa.

"A gente acaba perdendo um pouco da interação direta, mas eles têm contato o dia todo usando apps. O que dá para fazer, nesses casos em que eles estão distantes, é jogar outras coisas juntos. Se antes eles saíam para comer e conversar, agora interagem em jogos diferentes daqueles do campeonato", conta a psicóloga.

E não são apenas os games nativos da internet que fazem sucesso online. Até mesmo o streaming de partidas de xadrez ganhou espaço na Twitch. Será esse o futuro de todas as modalidades?


QUANDO E COMO O ESPORTE VOLTARÁ?

A torcida virtual pode em breve ganhar novos significados, e ir além dos eSports. Assistir a partidas de futebol em casa, em realidade virtual, já é uma possibilidade em estudo. Por enquanto, torcedores de papelão ocupam as arquibancadas de alguns times, mas em breve quem sabe poderemos enviar hologramas de nós mesmos para os estádios.

"Sou pessimista", confessa Marco Antonio Bettine de Almeida, professor associado da EACH-USP (Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo) e membro da International Sociology of Sport Association. "No Brasil, o que mais importa [financeiramente] são os contratos televisivos. Se o futebol se transformou tanto nesse espetáculo em que o importante é o consumo, será que vale manter toda uma logística de colocar 20 mil pessoas num estádio, se dá para possibilitar uma experiência imersiva para um milhão, em casa, com óculos 3D?", questiona ele, que diz não trocar por nada a atmosfera de uma partida no estádio.

Enquanto isso, os jogos voltam aos poucos pelo mundo, ainda acessíveis só pela TV. No Brasil, causou indignação a retomada do campeonato carioca de futebol com a partida entre Bangu e Flamengo em 18 de junho. Muitos observaram que o minuto de silêncio antes do jogo não foi suficiente para respeitar as vidas dos pacientes logo ao lado, no hospital de campanha do Maracanã.

Apesar de vários campeonatos estaduais terem voltado, alguns clubes e diversos torcedores se opõem fortemente à volta das partidas enquanto a pandemia está em plena aceleração no Brasil. E no meio de tudo isso, um embate sobre direitos de transmissão dos jogos levou o Carioca para o YouTube. O Flamengo transmitiu uma partida contra o Boa Vista, no dia 1º de julho, pela plataforma, sem ter acordo de direitos com a TV Globo, que decidiu romper o contrato para transmissão dos jogos do campeonato.

Enquanto isso, ficam em pausa os aprendizados e o sentimento de união, lamenta Santos, até que seja seguro retomar essas atividades que nos aproximam tanto uns dos outros. "A gente se vê na modalidade, a gente diz 'nós somos penta'. Eu não estava no campo, mas sou penta", brinca a professora. "Essa capacidade de associação, de unidade nacional, de emoção do inesperado e de celebração coletiva agrupa as famílias, nos junta nos bares. Tudo isso deixa um vazio muito importante do ponto de vista emocional. Faz uma falta imensa."

 

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