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Dona Alzira e seus gatos, divindades bonachonas, viviam num curioso mundo só deles, que incluía bifes de fígado alongados e dedilhados de viola-de-cocho que os gatos ouviam em semicírculo com suas expressões muito humanas. O contato desse mundo com o maior se fazia pelo rádio e pelas visitas: Carminha, amiga dos tempos de Rio Claro, trazia bolo de cenoura e notícias sobre o câncer do Velho Apolo; o sobrinho Ivan interpretava-lhe as listas, cuidando da comida dos bichanos e dos biscoitos; minha mãe levava o relógio de xadrez e os jornais. Carminha amava-lhe os dedos ágeis e o jeito que suspirava por trás do cigarro; o sobrinho achava sua generosidade imprescindível; mamãe invejava-lhe a máquina de costura e a imprudência romântica nos lances de rainha.
Jogavam tardes inteiras partidas que mamãe depois reproduzia em silêncio, e eu, por trás dos meus gibis, acompanhava em seu rosto, dispensando o tabuleiro. Sabia num esgar que ela só agora via o lance que a teria livrado da derrota. Os "garfos" e os ataques duplos estavam na maneira como ela mordiscava os lábios; e eu podia dizer se ela sofria ou executava os movimentos. Papai às vezes se aproximava, olhava a posição por alguns instantes e ia cuidar da vida. Se ela fosse realmente boa, ele voltava com duas xícaras de café e se detinha de pé ao lado do tabuleiro, olhando mamãe apoiar a bochecha no punho e fazer anotações que ela sublinhava, ora com bufadas, ora com um sorriso em que escondia os dentes.
Em dois cadernos espiralados ela mantinha um registro de todas as partidas com D. Alzira. Eram 20 anos de aberturas, ciladas e peões enforcados. Duas décadas fazendo as peças felizes. Certa feita - com a mão na louça - minha mãe me disse: “As peças de xadrez não gostam de ficar na caixa. Isso as aborrece.”
D. Alzira morreu sem dar aviso num dia com nuvens estriadas cor-de-ardósia. Ao chegar com as compras da semana, Ivan estranhou a porta que não abria e foi chamar mamãe. Os dois deram com a velha caída no chão e os gatos marchando, dando piques em linha reta, cada um em sua raia, de um lado a outra da sala. Aquilo não era natural e fez mamãe persignar-se arrepiada. Ivan não passou da porta, e coube a ela chamar a ambulância enquanto um gatão branco lhe corria entre as pernas. O sobrinho de Alzira, de nervoso, enterrou os dedos na sacola que trazia e ficou tremendo, parado, com gelo e manjubinhas caindo-lhe nos sapatos. Mamãe ditou o endereço com a voz que todos têm para essas horas, mas também estava apavorada com a corrida da gataria por fios invisíveis aos homens; fios que eles urdiram para repartir o chão de taco entre si, claramente respeitando alguma lógica que nem os livros do Padre Santa Rosa, nem os búzios da Nega Camará puderam explicar.
Mamãe guardou o tabuleiro de xadrez para sempre na cristaleira, e eu, que planejava pedir a mamãe um gato, desisti de tocar no assunto.
Dona Alzira e seus gatos, divindades bonachonas, viviam num curioso mundo só deles, que incluía bifes de fígado alongados e dedilhados de viola-de-cocho que os gatos ouviam em semicírculo com suas expressões muito humanas. O contato desse mundo com o maior se fazia pelo rádio e pelas visitas: Carminha, amiga dos tempos de Rio Claro, trazia bolo de cenoura e notícias sobre o câncer do Velho Apolo; o sobrinho Ivan interpretava-lhe as listas, cuidando da comida dos bichanos e dos biscoitos; minha mãe levava o relógio de xadrez e os jornais. Carminha amava-lhe os dedos ágeis e o jeito que suspirava por trás do cigarro; o sobrinho achava sua generosidade imprescindível; mamãe invejava-lhe a máquina de costura e a imprudência romântica nos lances de rainha.
Jogavam tardes inteiras partidas que mamãe depois reproduzia em silêncio, e eu, por trás dos meus gibis, acompanhava em seu rosto, dispensando o tabuleiro. Sabia num esgar que ela só agora via o lance que a teria livrado da derrota. Os "garfos" e os ataques duplos estavam na maneira como ela mordiscava os lábios; e eu podia dizer se ela sofria ou executava os movimentos. Papai às vezes se aproximava, olhava a posição por alguns instantes e ia cuidar da vida. Se ela fosse realmente boa, ele voltava com duas xícaras de café e se detinha de pé ao lado do tabuleiro, olhando mamãe apoiar a bochecha no punho e fazer anotações que ela sublinhava, ora com bufadas, ora com um sorriso em que escondia os dentes.
Em dois cadernos espiralados ela mantinha um registro de todas as partidas com D. Alzira. Eram 20 anos de aberturas, ciladas e peões enforcados. Duas décadas fazendo as peças felizes. Certa feita - com a mão na louça - minha mãe me disse: “As peças de xadrez não gostam de ficar na caixa. Isso as aborrece.”
D. Alzira morreu sem dar aviso num dia com nuvens estriadas cor-de-ardósia. Ao chegar com as compras da semana, Ivan estranhou a porta que não abria e foi chamar mamãe. Os dois deram com a velha caída no chão e os gatos marchando, dando piques em linha reta, cada um em sua raia, de um lado a outra da sala. Aquilo não era natural e fez mamãe persignar-se arrepiada. Ivan não passou da porta, e coube a ela chamar a ambulância enquanto um gatão branco lhe corria entre as pernas. O sobrinho de Alzira, de nervoso, enterrou os dedos na sacola que trazia e ficou tremendo, parado, com gelo e manjubinhas caindo-lhe nos sapatos. Mamãe ditou o endereço com a voz que todos têm para essas horas, mas também estava apavorada com a corrida da gataria por fios invisíveis aos homens; fios que eles urdiram para repartir o chão de taco entre si, claramente respeitando alguma lógica que nem os livros do Padre Santa Rosa, nem os búzios da Nega Camará puderam explicar.
Mamãe guardou o tabuleiro de xadrez para sempre na cristaleira, e eu, que planejava pedir a mamãe um gato, desisti de tocar no assunto.