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Cruz e Souza, "POETA DO DESTERRO!"

Assistam neste sábado, dia 22/03, às 23h no Cadernos de Cinema da Rede Brasil, o filme Cruz e Souza, O Poeta do Desterro.
A película de Sylvio Back é uma biografia do poeta brasileiro, filho de escravos, João da Cruz e Sousa (1861-1898), fundador do Simbolismo no Brasil e considerado o maior poeta negro da língua portuguesa. Através de 34 “estrofes visuais”, o filme recria desde as arrebatadoras paixões do poeta em Florianópolis até a sua segregação social, racial e intelectual e o trágico fim, no Rio de Janeiro. No 29º Festival Internacional de Cinema em Portugal/2000, "Cruz e Souza" recebeu o Prêmio Glauber Rocha, de melhor filme dos três continentes (Ásia, África e América Latina), e Menção honrosa, pela pesquisa de linguagem. De Sylvio Back. Com Kadu Carneiro, Maria Ceiça, Lea Garcia, Danielle Ornelas, Jaqueline Valdívia, Guilherme Weber, entre outros. Produção de 1999; cor; 86min.
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Por Sylvio Back

O poeta João da Cruz e Sousa é um estigma literalmente escuso da literatura brasileira. Por ser uma exceção na então sociedade escravocrata do século XIX, sua soberba negritude acabou por matá-lo aos 36 anos. Sua "igualdade" era demais. O preto no branco, preto-e-branco.

Desde o início ele soube, como se uma película de nitrato fora, que seria "incendiado". E não incensado - simbólico expediente comum na alvorada do cinema (que lhe foi vizinha), quando as salas eram perfumadas durante a exibição de filmes místicos. Como o personagem de "Le Petit Soldat", de Jean-Luc Godard, Cruz e Sousa tentava abarcar a tela, entrar na cena, assumir a visilibidade da ilusão. Inutilmente. Sua ambição e obra ficaram na penumbra do mainstream da poesia do seu tempo. A exemplo do então "bizarro" cinematógrafo, o "Assinalado" ("... A Terra é sempre a tua negra algema...") sobreviveu à madrastice dos contemporâneos. Antes de vitimá-lo, a posteridade reservou-lhe o portal da glória.

Fragmentariamente biografado, sua trajetória em Nossa Senhora do Desterro (nome original de Florianópolis-SC) - do nascimento em 1861 ao Rio de Janeiro entre 1890 e 1898 -, assemelha-se a um filme velado. Sobram vácuos e contornos anímicos que mais confundem do que decifram. Mesmo que se queira "des-ideologizar" o personagem, desenraizá-lo da África ou despaisá-lo do Sul do Brasil, aproximar-se dele através de sua órfica e lunar poesia será sempre uma metáfora sobre a tragédia que é ser negro no Brasil - em todos os tempos.

Essas reflexões vêm a propósito do meu novo filme, "Cruz e Sousa - O Poeta do Desterro", em cujo roteiro invisto não "apenas" no mote "quem é", mas "o que é" João da Cruz e Sousa, filho de escravos, poeta, "ponto" de teatro, abolicionista, jornalista, amanuense. Um negro de "alma branca" - segundo o torpe perfil que a lenda chancelou(?) Um preto apaixonado por loiras germânicas, flertando com um vocabulário, digamos, valquiriano, e cuja poesia tem induzido críticos a disfarçadamente até "nazificá-lo" avant la lettre (ao ponto de, como Roger Bastide, contar os fonemas que "trairiam" sua etnia)? ou "o negro que não conhecia seu lugar", um "preto estrangeiro" (na expressão do amigo e testamenteiro Nestor Vítor)?

Então um negro culto e abusado, sempre elegante e galante, na busca por uma auto-arianização como atalho para ascender, fugir da casta (talvez espelhando-se no seu igual-desigual Machado de Assis - um "mulato à inglesa", como se dizia numa época em que ninguém queria ser negro ou cafuso)? Ou o pânico letal do crioulo gênio crente que basta o talento para ser reconhecido - sem desconfiar que para além do racismo mais vil germina o cancro da inveja?

Algozes vivem! Nem a desgraça cotidiana notória e a morte de Cruz e Sousa redimiram os seus algozes das redações, dos suplementos literários, das editoras, da repartição pública, das rodinhas e tertúlias literárias. Nem o negro bem-sucedido José do Patrocínio, de olho na história ao pagar seu enterro, inconscientemente sobre o caixão deitou em forma de coroa o alívio e escárnio de toda uma geração. A pessoalmente ciclópica obra de Cruz e Sousa, única em toda a língua portuguesa, é a maior vingança.

Estes os virtuais quadros da película sobre Cruz e Sousa - a contrapelo da perversa mitologia - aguardando por vida a 24 quadros por segundo: Cruz e Sousa é o vagão de gado, o cadáver tísico, batom de sangue fresco nos lábios - ao colo grávido da amada Gavita, a "preta doida" do Encantado. Cruz e Sousa é o andor que alegre carrega as paixões pela atrizinha branca Julieta dos Santos e pela adolescente Pedra Antióquia, negra "...deidade linda..."- sua noiva-donzela por oito anos. Cruz e Sousa é o tantã da musa atávica "... Vozes veladas, veludosas vozes/Volúpias dos violões.../... Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas". Cruz e Sousa é a sombra chinesa que passa incógnita pela sofisticada rua do Ouvidor, empobrecido, adoecido e tão "enegrecido" quanto todos os exilados pela cor. Cruz e Sousa é o seu próprio rio "... amargamente sepulcral, lutuoso, amargamente rio" - nele suicidando-se em sonhos de grandeza literária e nobreza social. Cruz e Sousa é a fome de Gavita e dos filhos, "... indigência terrível, sem vintém para remédios, para leite, para nada...", que ele inerme assiste de um palco mambembe. Cruz e Sousa é a solitária vela acesa no altar - encimado com sua última foto - onde os parcos e fiéis simbolistas lhe "rezam" os poemas em uníssono. Cruz e Sousa é a pomba-gira que baixou à revelia no terreiro da poesia brasileira, desossando-a de toda e qualquer possibilidade de um duplo. Cruz e Sousa é o excitado Eros ("... Carnais, sejam carnais tantos desejos...") a banhar-se nas areias desérticas da lagoa da Conceição, em Nossa Senhora do Desterro. Cruz e Sousa é o voyeur impertinente da vaziez provinciana que o expele como depois a ex-corte o tritura. Cruz e Sousa é a abolição das senzalas, das tribunas e guerrilhas literárias, "... escravocratas eu quero castrar-vos como um touro - ouvindo-vos urrar!" Cruz e Sousa é o "emparedado", - a atroz rejeição e desqualificação inclusive entre os seus, para quem sempre foi "branco demais". Cruz e Sousa é a efígie do olhar ebúrneo no túmulo do cemitério São Francisco Xavier do Rio de Janeiro, testemunhando a própria ressurreição.
 

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