Aqui está a crítica da Veja:
Tudo o que um épico quer ser
Isabela Boscov
Enumerar as falhas de O Retorno do Rei (The Lord of the Rings – The Return of the King, Nova Zelândia/Estados Unidos, 2003) é, diante dos acertos desse último capítulo da trilogia, uma mesquinharia – mas pode ajudar a entender suas qualidades. Depois de uma abertura esplêndida, na primeira hora o filme, que estréia no dia 25 no país, engasga aqui e ali e demora a engrenar. Vários dos diálogos trazem ainda os vincos do texto escrito. O filme se encerra um pouco depois do necessário. E, embora tenha sido criada pelo lingüista e escritor inglês J.R.R. Tolkien entre as décadas de 30 e 50, a história tem as limitações clássicas das sagas de origem medieval, nas quais ele se inspirou: o que se tem aqui é o bem contra o mal, sem zonas cinzentas entre os dois extremos. O que é surpreendente, entretanto, nesse terceiro filme como nos dois anteriores, é que só haja problemas de ritmo na primeira hora (são 200 minutos de projeção), que tantos dos diálogos soem críveis – quando não emocionantes –, que as diversas histórias paralelas se equilibrem, e que se escape do maniqueísmo e do tom triunfalista tão comuns às sagas. A verdade é que, por mais empolgante que possa ser no papel, a obra de Tolkien é uma massa intratável, que derrotara todas as tentativas de adaptação até aqui. Que o diretor Peter Jackson não só tenha feito jus às possibilidades que ela engendrava, como seja capaz de entregar um filme que, em muitos aspectos, supera sua fonte, é um feito admirável. Mais ainda quando se lembra que O Senhor dos Anéis é uma fantasia, um gênero que, como o próprio diretor admite, está sempre a um pequeno passo de descambar para o paródico. Não dar esse passo, portanto, é outra conquista.
Jackson se mostra sempre no seu melhor nas passagens sombrias e épicas, e há muitas dessas em O Retorno do Rei, em que a própria existência humana está em jogo. Se o hobbit Frodo não destruir o anel de Sauron – tarefa que se torna cada vez mais penosa para ele –, o senhor das trevas vai triunfar. O mesmo acontecerá se Aragorn, o rei do título, não assumir plenamente seu posto de liderança. Da luta solitária de Frodo, portanto, à colossal Batalha de Pelennor, todos os personagens são colocados contra seus limites – uma contingência que mostra também o valor do elenco escolhido por Jackson. Relutar sem recuar, aceitar que não há vitória sem perda ou mostrar coragem apesar do medo são lugares-comuns desse tipo de ficção, que poderiam cair facilmente no vazio sem atores como Viggo Mortensen, Elijah Wood, Miranda Otto e Bernard Hill para lhes dar corpo. O que o diretor põe em relevo, no entanto, é menos a oposição entre bem e mal, ou nós e eles, e mais um pensamento, digamos, metafísico: o bem sabe do que o mal é capaz, mas o mal é incapaz de compreender o bem e imaginar que sacrifícios se podem fazer em nome dele, e é essa a sua fraqueza. Nos momentos em que, com a ajuda de seu elenco, da trilha sempre soberba de Howard Shore e do seu instinto para criar imagens arrebatadoras, Jackson consegue pôr essa idéia em evidência, O Retorno do Rei cresce para além dos limites do fantástico e entra na categoria dos verdadeiros épicos.