Parodiando um certo artigo escrito por Rodion Romanovich Raskolnikov, protagonista da obra em questão, eu poderia dizer que no mundo das letras há livros ordinários e livros extraordinários. O primeiro grupo se caracteriza pela superficialidade dos lugares comuns e conseqüente ausência de potencial para levar o leitor a abandonar a sua zona de conforto, onde repousa toda uma miríade de idéias pré-concebidas. Naturalmente, infrutífero seria caracterizar o segundo grupo, por conter este todos os atributos que o primeiro não tem. E é com certeza nesta seleta estante que situaremos Crime e Castigo, de Dostoiévski.
Dostoievski constrói um cenário de decadência humana, ambientado na São Petersburgo oitocentista, onde os homens se movimentam em meio à miséria material e à degradação moral. Neste sentido, há uma passagem do livro, bastante ilustrativa, em que se diz algo como: "O homem é vil e vil é quem julgá-lo por isso." Os personagens são complexos, inconstantes, têm conflitos. Ora são surpreendidos tomando as mais condenáveis atitudes, ora dão as mais sinceras mostras de generosidade. Dostoiévski consegue fazer com que, no decorrer da trama, passemos a amar aqueles mesmos personagens que páginas antes execrávamos. Bom... nem todos. A trama é marcada por uma densidade psicológica bastante arrebatadora e traz à tona a todo momento, como notou um colega, a dualidade da natureza humana.
Enfrentando todo o cenário vicioso dessa São Petersburgo, todavia, contra todas as dificuldades, constantemente se faz presente uma "personagem" bastante especial: a virtude. Afinal, toda a narrativa trata da redenção de um assassino. Mas ainda não é dele que quero falar. É de Sonia. Estigmatizada na condição de prostituta, em toda a trama ela me aparece como a personificação da virtude. Em sua indignidade, conforme ela mesma considerava, afigura-se como a mais digna das personagens do romance, chegando a emocionar em algumas passagens, tamanha a benevolência de suas ações. Mesmo diante de inúmeros infortúnios e tragédias, manteve sua fé e, em sua "pureza de alma", para usar as palavras do mesmo Raskolnikov, jamais sucumbiu à torpeza e à vilania.
E neste ponto aproveito a menção para dizer que Raskolnikov é talvez o personagem mais imprevisível e contraditório com que me deparei em minhas leituras. É mesmo preciso uma grande capacidade de análise para entendê-lo. E, para mim, como leitor, foram fundamentais as observações de mais um dos fantásticos personagens de Dostoiévski: o arguto juiz de instrução Porfíri Petrovich. Acredito que ninguém compreendeu tão bem Raskolnikóv como ele. Nem sua mãe, Pulkhéria Alexândrovna, nem sua irmã, Avdótia Romanovna, nem Razumikhin, seu grande amigo.
Quem era, pois, Rodion Romanovich Raskolnikov?
Saído de sua terra natal para estudar Direito na capital do Império Russo e sustentado a custo pela mãe e pela irmã, o jovem acaba enfrentando uma série de infortúnios e dificuldades materiais. Abandona, por fim, a Universidade e, encontrando-se à míngua, começa a penhorar bens a uma odiosa usurária.
Rodion acreditava que no mundo houvesse pessoas ordinárias e pessoas extraordinárias - diga-se de passagem, o diálogo entre Porfíri Petrovich e Raskolnikov sobre esta teoria é um dos pontos altos do livro. As primeiras seriam as mais propensas a obedecer, vivendo a mediocridade cotidiana e constituindo o elemento conservador que garantiria às sociedades sua constante reprodução. As segundas, menos numerosas, seriam as pessoas de gênio responsáveis pelo avanço das sociedades e que podem mesmo se dar ao luxo de praticar pequenos delitos em nome de algo maior. As leis do mundo devem ditar a conduta das maiorias, mas não constituem obstáculo para estes eleitos. E Raskolnikov, este Napoleão sem cavalo, sem exército e sem pão, não era, no seu entender, uma pessoa ordinária. Que importância, pois, teria um pequeno assassinato de uma velha usurária - um "piolho" como classificou - diante de uma perspectiva de grandiosidade futura? Bom, ele logo descobriria...
Por fim, retomo o que disse acima. Crime e Castigo é a história da redenção de um assassino, atrelada a uma idéia do sofrimento que redime, tema que vem à tona, aliás, em um dos diálogos entre Porfíri e Rodion - se não me engano, no último diálogo relatado entre os personagens. Neste sentido, acho bastante significativa e alegórica a passagem evangélica que, a certa altura, Sonia lê para o perturbado Raskolnikov: a que trata da ressurreição de Lázaro. O protagonista disse à moça que no dia em que matou a velhota, matou a si mesmo. Nas cenas finais, com Rodion preso, disposto à renovação, de posse daquele Evangelho que pediu à Sônia, com a perspectiva de um amor a esperá-lo do lado de fora, sugeriu-me a cena de Cristo ao lado de fora do "sepulcro" como a dizer "Venha para fora, Lázaro!". É como se, em meio às perturbações e ao sofrimento vivido, houvesse finalmente iniciado a sua busca por despojar-se do "homem velho" e revestir-se do homem novo, "criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade" (Ef 4, 22-24).