Aleatoriedades jurídicas... O artigo é de 2003 mas a análise não está nada ultrapassada.
「..... O direito que aqui interessa é o direito à educação. Após ter declarado que a educação é direito de todos (art. 6º e art. 205), o constituinte no art. 208 explicita o conteúdo deste direito.
O ensino fundamental é obrigatório e gratuito, e portanto, direito de todos, configurando um verdadeiro "direito público subjetivo" (art. 208, § 1º). Na terminologia da teoria da justiça, é um direito social de justiça social, devido a todas as pessoas humanas membros da comunidade brasileira. Para o constituinte, o analfabetismo e a carência dos conhecimentos auferidos no ensino fundamental são obstáculos graves ao pleno desenvolvimento da pessoa e, portanto, são considerados males a serem erradicados, a partir do ponto de vista dos bens necessários à vida boa para o ser humano.
O ensino superior é regulado pelo art. 208, V. O seu teor é o seguinte: "acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, segundo a capacidade de cada um". Verifica-se que no final do artigo, há uma regra de distribuição do bem "participação nos níveis mais elevados de ensino": a cada um segundo a sua capacidade. Ou seja, este não é um bem que a Constituição prescreva como indispensável à plena realização do ser humano, e por conseguinte, como algo que deve ser distribuído a todos. Ao contrário, ele limita a oferta desses bens somente àqueles que demonstraram a capacidade para aproveitá-los. O direito ao ensino superior é, assim, um direito social de justiça distributiva, regulado pelo critério: "a cada um segundo a sua capacidade".
Isso não significa que o Estado não tenha nenhum dever de justiça social em relação ao ensino superior, isto é, um dever em relação a todos.. O Estado deve garantir a todos o "acesso" aos níveis superiores de ensino. Isto significa que ele deve proporcionar a todos as condições - ensino básico e ensino médio, públicos, gratuitos e de qualidade - para que cada um possa desenvolver plenamente suas potencialidades e capacidades para ingressar no nível superior de ensino.
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Se em algum momento histórico, a sociedade brasileira incluir no seu rol de bens necessários à vida boa o ensino superior, ela efetuará uma mudança na sua Constituição, assegurando a cada cidadão brasileiro um "direito público subjetivo" a uma vaga nas instituições universitárias. O constituinte transformará um direito social de justiça distributiva em um direito social de justiça social. De qualquer modo, não reservaria vagas a membros deste ou daquele grupo étnico, mas garantiria a todos os brasileiros, vagas no ensino superior.
Determinado o tipo de direito social que é o direito à educação em nível superior na Constituição de 1988, resta avaliar se as teses da justiça comutativa ou distributiva seriam aptas a sustentar um programa de ação afirmativa como aquele analisado no caso
Bakke.
A tese da justiça comutativa consiste, como foi visto, em compensar ou indenizar membros de grupos que, no passado e no presente, foram discriminados.
Mas isso consiste em reduzir essas pessoas à condição de vítimas e não de cidadãos iguais aos outros, o que viola a sua dignidade. Todos devem a todos o respeito pela sua condição de pessoa humana e de cidadão, ninguém podendo ser considerado um membro alheio à comunidade, o que ocorreria se alguns fossem considerados vítimas e outros não. Como bem viu Rosanvallon, a tese da justiça comutativa consiste em reduzir o direito constitucional ao direito civil, em reduzir o cidadão à vítima, tendência dominante nos Estados Unidos, país criador das políticas de ação afirmativa: "A redistribuição social não se fundamenta no reconhecimento de direitos sociais propriamente, mas deriva de uma radicalização dos direitos civis. Esperam-se efeitos sociais não do reforço do vínculo nacional, mas do aperfeiçoamento da lógica individualista. Uma concepção muito ampla de reparação nos prejuízos serve, neste caso, de substituto de um exercício político de solidariedade. Em uma sociedade de reparação generalizada, a figura central da interação social é a de
vítima (grifo no original) de outrem, e não do cidadão. (...) Não é como membros da comunidade, e tendo por isso certos direitos sociais, que as minorias procuram hoje beneficiar-se das transferências públicas; elas o fazem apresentando-se como vítimas, de um dano atual, mas também de alguma injustiça passada."
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Se a sociedade brasileira é uma comunidade de pessoas humanas que se reconhecem na sua mútua dignidade, exercendo-a como cidadãos, toda tentativa de vitimização, destrói a comunidade, aviltando alguns de seus membros ao rebaixá-los, do
status de cidadão - a pessoa humana titular de todos os direitos civis, políticos e sociais em uma determinada comunidade política - à categoria de vítima dos outros membros dessa comunidade. Os vínculos fundantes das relações entre os brasileiros, nos termos da Constituição, são vínculos de justiça social, que estabelecem o que todos devem a todos como pessoas humanas com igual dignidade, e não vínculos de justiça comutativa, entre ofensores e prejudicados.
O que é devido a um cidadão brasileiro, como o direito à educação, o é na sua condição de pessoa humana membro da comunidade nacional, e não de vítima que exige uma indenização.
A tese da justiça distributiva nos termos em que foi examinada, de conteúdo utilitarista, também não se sustenta diante do ordenamento constitucional brasileiro. A tese da justiça distributiva, calcada em uma visão utilitarista, sustenta que os critérios de distribuição de vagas são critérios não de justiça, mas de utilidade social. Propriamente falando, não há, nesta perspectiva, direito à educação. Todos aqueles que ocuparem vagas no ensino superior, por exemplo, o farão segundo critérios de conveniência social, e não porque a sociedade lhes deve isso: as Universidades, ao decidirem os critérios de seleção, o fazem segundo um "cálculo racional do uso socialmente mais benéfico de recursos limitados."
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Esta fundamentação utilitarista da tese da justiça distributiva apresenta vários problemas, mas podemos apontar apenas aquele que toca mais de perto nossa questão: Bakke foi instrumentalizado para resolver um "problema nacional" (Dworkin), como também os membros de minorias que foram aprovados.
De fato, Bakke claramente foi vítima do chamado "princípio sacrifical" do utilitarismo.
(79)De acordo com a percepção utilitária, a distribuição adequada é aquela que conduz "à maior felicidade para o maior número". Isto significa que aqueles que não integram "o maior número" serão sacrificados para que outros se beneficiem. Assim, o sacrifício de Bakke é exigido pela sociedade.
Mas também os membros das minorias foram instrumentalizados. Também eles estão servindo de um meio para a sociedade alcançar o fim a que se propõe. Michael Sandel esboça o que poderia ter sido uma carta de uma Universidade comunicando a um candidato sua aprovação graças às políticas de ação afirmativa: "Ainda que não seja o resultado de seu próprio esforço, resulta que casualmente você possui as características que a sociedade precisa neste momento, características que nos propomos a explorar para benefício da sociedade admitindo-o como estudante.
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Ou seja, o fato de que o estudante pertence a um grupo minoritário, é visto como característica relevante, tendo em vista o objetivo social de ter mais membros de minorias nas Universidades ou exercendo certas profissões. A sua presença na universidade é um meio para atingir um fim político desejável.
Alguns podem tentar aproximar esta visão da tradição aristotélica, na qual a justiça distributiva dá algo a alguém em vista do bem comum. Essa tese é equivocada por duas razões.
Em primeiro lugar, deve-se afastar a visão do bem comum da visão de utilidade social de Bentham e Dworkin. O bem comum da tradição aristotélica não é o bem da maioria, mas o bem de todos. A distribuição visa imediatamente o bem do particular e mediatamente o bem comum, o bem de todos. Deste modo, aquele que não é beneficiado diretamente em uma distribuição, será beneficiado de um modo indireto, na medida em que pertence à comunidade.
Em segundo lugar, para a tradição aristotélica, a justiça distributiva trata daquilo que a comunidade deve ao indivíduo. Ou seja, visa-se diretamente o bem do particular e indiretamente o bem da sociedade como um todo. Visar diretamente o bem comum, manipulando os critérios de distribuição em nome de alguma finalidade coletiva, significa destruir a justiça distributiva e utilizar os envolvidos na distribuição como meros instrumentos de fins que lhes são alheios.
Em cada distribuição, deve verificar-se a causa da distribuição,
(81) isto é, o critério de distribuição próprio a cada esfera distributiva.O parentesco não é o critério adequado para distribuir cargos públicos, o mérito não é o critério adequado para distribuir bens no interior de uma família. Nas distribuições, a utilização do critério próprio a cada esfera garante que o bem do particular é o fim que está sendo buscado.
Deste modo, ao violar o princípio distributivo próprio ao ensino universitário (capacidade/mérito), em nome de objetivos sociais alheios à esfera acadêmica, o programa de seleção do caso Bakke é insustentável do ponto de vista da justiça social, na medida em que toca seu fundamento ético: tratar as pessoas como fins e não como meios. Bakke e também os próprios beneficiários do programa foram tratados, na seleção, como meios para um fim estranho à Universidade. De fato, os indivíduos foram qualificadados não a partir de critérios acadêmicos, mas de critérios étnicos, na medida em que isto resulta útil para a realização de objetivos sociais relevantes como uma participação proporcional das minorias nas universidades e uma diminuição da consciência racial da sociedade.
O candidato a uma vaga acadêmica viu-se assim, instrumentalizado, na medida em que somente foram levadas em consideração qualidades relevantes (étnicas) para a consecução de metas políticas extra-universitárias. (82)
Assim, políticas de ação afirmativa baseadas na tese da justiça comutativa e da justiça distributiva, ambas voltadas à questão da igualdade, são inconstitucionais do ponto de vista da justiça social, na medida em que, a pretexto de estabelecer a igualdade, viola a dignidade dos envolvidos, seja por reduzi-los à condição de vítima ( tese da justiça comutativa) ou à condição de meio (tese da justiça distributiva).」
Fonte:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_48/artigos/ART_LUIS.htm
Justiça Social - Gênese, estrutura e aplicação de um conceito
Luis Fernando Barzotto