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[Conto] [Policial]

_Kain

Preacher
Era meia-noite quando ele ligou para a delegacia para perguntar se estava tudo bem.
A mão percorreu os botões do telefone trêmula e reptiliana, discou rapidamente. Virou-se para o lado e apoiou a cabeça no telefone enquanto ouvia os chamados. A televisão repetia algo incessante. Coisas aconteciam. Morriam reluziam caíam derretiam viviam e apagavam-se de forma nula e irresponsável. As pernas estalavam enquanto ele tentava esticá-las, sentindo a dor do ciático subindo por todo o corpo. Uma voz feminina o mais calma possível lhe atendeu.
- Quinta delegacia de São Paulo, em que posso ajudá-lo. - não era uma pergunta, e sim uma afirmação sem sentido. Não havia entonação real, apenas voz.
- Passa pro Chefe. É o Caio.
- Ah... Ele já tava de saída.
- Passa pra ele.
- Tá, tá.
Saboreou o vento que entrava pela janela e sacodia a persiana e viu o tempo passar com paciência enquanto pensava no que passara naquele dia. Não era muito, na verdade. Apenas rondas infindáveis e motoristas bêbados; não existiam mais criminosos, e sim alcoólatras. Ele sentara no banco do carro às sete da manhã e colocara os óculos escuros, dirigira por horas parando de tempos em tempos e encarando a população sem jamais se mover mais do que o esperado, o rosto fechado e inexpressivo ensaiado. Quando levantou, no fim do dia, sentia a face ardendo. Tirou os óculos escuros quando entrou em casa e enxergou as manchas brancas circundando os olhos, perdidas em um mar de vermelhidão sôfrega. Riu.
- O que é, Caio? Eu tou saindo, então fala logo.
- Não, nada - subserviência destilada - Eu só achei que não tinha feito nada demais hoje...
- Caralho, Caio. Você precisa parar com isso. Você já trabalhou bastante hoje, agora descansa. Se tiver uma emergência a gente te chama... Você não sai não? Ah, peraí, tão me chamando -- Que foi? Quem é? -- eu já volto pra linha.
Observou a própria perna tremer esquizofrenicamente durante alguns segundos e tentou fazê-la parar. Ela enrijeceu-se e pairou sobre a cama. A televisão interjeicionava, cheia de sons incompreensíveis e luzes dolorosas.
- Bom, Caio, acho que você tá com sorte. Acabaram de ligar pra cá por causa de algum problema em uma igreja aí do lado de onde você mora. Se chama Santa Anastácia. Você sabe onde fica? Ok então. Se isso fizer você parar de me encher o saco, pode ir lá checar o que aconteceu. Eu vou pra casa dormir. Se não puder ir ou mudar de idéia, avisa pra Renata que ela manda alguém pra lá. Tchau.
O telefone ficou mudo. Caio levantou-se da cama e foi pegar a outra muda do uniforme no armário.
Em segundos, estava de volta ao carro. Ligou o rádio na frequência da polícia e saiu.
Panorama amplo; visões embaçadas de movimento ao longe se estendiam, luzes o despertavam enquanto sua mão tremia sobre o volante; pupilas dilatadas dissecavam imagens bruscas indiferentemente e ele se sentia em seu habitat natural, sentia aquilo que sabia terem sentido os leões, a alegria do início da caçada. Alguns segundos depois, já estava em frente à igreja.
As luzes estavam acesas. Não havia carros parados em frente a ela. Estacionou.
Saiu do carro d'um salto, pés firmes no chão, viu a igreja no alto e andou em sua direção.
Havia uma torre inexplicável para aquela área da cidade. Paredes lisas e pintadas de branco. Ele erguia o pescoço enquanto andava para analisá-la. Ele tinha a impressão de que, de longe, ela era menor. Respirou. O ar estava mais frio do que antes. Estendeu o braço e encontrou a porta apenas encostada. Bateu com os nós dos dedos. Não houve resposta.
- Senhor? Eu sou da Polícia de SP. Vocês ligaram para o DP? Estou entrando...
Empurrou a porta. Luzes acesas. Elétricas e estáticas. Todas as velas estavam apagadas. Ele podia sentir o calor elétrico percorrendo sua pele como línguas secas e mortas. Quadros nas paredes ar morto e frio Cristo melancólico bancos vazios fé rançosa vazio.
Luzes acesas em locais vazios não eram nunca um bom sinal. Começou a procurar por algum sinal de incidente físico; bancos quebrados, sangue, algo fora do lugar. Não foi capaz de perceber nada nos poucos segundos durante os quais fez isso; logo havia alguém na sala.
O padre entrou resfolegante porém composto. Havia suor em seu rosto mas ele sorria calmamente. Suas mãos, que serviram para abrir as portas bangue-bangue pela qual entrara, foram instantaneamente para trás do corpo.
Tinha face gasta e rugas fundas, olhos claros e lábios finos. Seu cabelo era o de alguém que cuida dele o tempo todo, mas não hoje.
- Desculpe a demora! Eu estava lá atrás e não devo ter ouvido o senhor batendo! - sua voz era jovial e confiante.
- Houve uma ligação daqui para a polícia.
- Ah, sim, sim, mas não é nada, já foi resolvido.
Seu rosto estava limpo. Sem sinais de mentira. Talvez fosse verdade. Talvez não. Ele não podia contar com talvezes.
- O que foi resolvido, senhor?
- Ah, não foi nada demais. Só um probleminha.
- Eu gostaria que o senhor me explicasse melhor, por favor.
Sua voz era constante e firme. Ele seria capaz de atrair milhares de fiéis, se esse fosse seu objetivo. Quando sorria, parecia muito mais jovem do que deveria parecer.
- Ah... Bom, o senhor sabe, nós somos uma igreja. Ah, o que eu estou falando. É claro que sabe! Me desculpe, estou balbuciando. Mas então, entenda... Como igreja, servimos de guias... Aqueles que não estão se sentindo bem consigo mesmos costumam vir para cá. Procurando consolo, ajuda espiritual. E, muitas vezes, nossos... Nossos fiéis são homens perturbados. Muitas igrejas recusam esse tipo de rebanho, mas eu penso exatamente o contrário: é missão do pastor acolher aqueles que mais precisam de ajuda, não é mesmo? E foi isso que aconteceu, então. Um dos nossos... Fiéis perturbados esteve por aqui. E eu receio que ele estivesse passando por um momento difícil quando ligou para lá. Mas ele melhorou quase instantaneamente e já foi para casa.
Sua voz ecoava pelo salão vazio. Seus olhos piscavam pouco. Sua linguagem era dinâmica e ágil. Talvez demais para um homem de sua idade. Algo estava errado lá.
- O senhor teria então um endereço desse fiel, padre? Para que eu possa conferir se ele está bem mesmo.
A voz saiu mais seca do que o desejado. Soou como um desafio, uma quasiofensa. Um ato de desconfiança.
Mas ele lidou bem com aquilo. Sua expressão era a mesma.
- Não, infelizmente não. Para falar a verdade, eu nem sei o nome dele. Ele aparece por aqui nos horários mais estranhos e eu o ajudo, mas nunca chegou a se apresentar formalmente. Mas ele deve voltar logo, posso tentar conseguir um telefone para você da próxima vez.
- Certo. Eu posso dar uma olhada lá atrás, então, padre?
Seco. Sem explicações. Por um segundo o olhar do outro homem foi de desprezo e então voltou ao normal. Tirou as mãos das costas e esfregou-as enquanto falava.
- Não há nada lá atrás, senhor. Só o lugar onde eu durmo. Nada a não ser uma cama e alguma comida. Não tenho muito luxo. Não acho correto.
Talvez fosse a ausência de gesticulação na sua fala. Talvez fosse o modo como seu rosto continuava sempre o mesmo. Ele não sabia e nem mesmo arriscaria um chute. Mas havia algo de errado.
- Eu acho melhor eu dar uma olhada, padre.
- Você não vai encontrar nada.
Mudança no tom de voz.
- Mas eu não posso proibi-lo, posso?
Na verdade, ele podia. Caio precisaria de um mandato para passar por cima da vontade do bom pastor. Era uma coincidência feliz que ele não entendesse de leis.
O padre deu-lhe as costas e seguiu em direção à porta pela qual entrara. Caio andou atrás dele. Passou perto de Jesus. Seu olhar era de tédio. Caio tentou ouvir o que ele dizia, mas o volume de sua voz era muito baixo.
Logo após a porta havia um corredor estreito. Não havia como dois homens andarem lado a lado. As paredes eram de pedra. Era como andar dentro de um mausoléu.
A igreja era moderna e polida. Jovem e brilhante. Lâmpadas e portas que não rangíam. Mas aquele corredor era imutável. Verdadeira natureza. Impossível de enganar. A luz dentro dele envelhecia como vinho em uma adega. O padre parecia muito menos amigável agora. Ar velho. Fé velha. Ausência de cores. Multitons de cinza e branco. Só havia sons mortos. Ninguém ousaria falar lá dentro. De gargantas só saíria um gorgolejo irritado e antipático. Nada afinado, apenas grunhidos de pedra e morte. Caio sentiu o peito murchando. Faltava ar e talvez vida àquele lugar.
E então saíram. O padre não mentira. Seu quarto era pequeno. Não havia televisão. Havia uma geladeira. Havia uma cama. Havia um armário. Havia uma pia e um fogão juntos. Havia um telefone velho. Havia apenas uma lâmpada antiquada no teto. Não havia janelas. Não havia um cadáver. Não havia nada.
- Satisfeito?
A voz enrouquecera. Ele ainda parecia jovem. Pigarreou.
- Não há nada de interessante mesmo aqui. Eu estava orando quando o senhor chegou, por isso não o ouvi. Não era nada macabro. Não estava matando ninguém.
O tom desafiador. Caio gostaria de encontrar algo. Fotos de crianças nuas. Drogas. Armas. Qualquer coisa.
- Desculpe o incômodo, padre. É só o procedimento.
- Não foi nada.
Bondoso novamente. Bondoso e compreensivo.
- Eu poderia tomar um copo d'água? Acho que tinha pó nesse corredor. Me deixou com a garganta seca.
- Claro.
Pegou um copo na pia. Só havia um copo e um prato. Um garfo empilhado. Uma colher ao seu lado. Uma panela. Mas não havia nenhuma faca.
Abriu a geladeira e pegou uma garrafa com água. Colocou água no copo e guardou novamente a garrafa.
Enquanto Caio bebia, seus olhos vasculavam. Não havia nada. Podia ser apenas uma coincidência. Ele podia ter perdido a faca. Podia ser qualquer coisa. Talvez não fosse nada.
Terminou de beber e pousou o copo na pia.
- Bom, obrigado pela atenção, padre. Não se preocupe, eu posso sair sozinho.
Apertou a mão do pastor. Ao dar o primeiro passo, esbarrou na porta do armário. Ela se abriu. Havia um corpo com uma faca fincada no peito lá dentro, embrulhado em várias mudas de roupa ensanguentadas. Desceu a mão para o coldre e encarou o padre.
- O que é isso, padre?
Sua voz era calma. Ele não queria ter de matar ninguém. Se sentia bem. Seu instinto não estivera errado.
- Eu... Eu... Meu Deus... Meu senhor...
A voz não tinha mais controle. Lágrimas vertiam descontroladas. As mãos, agora soltas, tremiam.
- Calma. Por que isso aconteceu, padre? Ele tentou atacar o senhor? Era perturbado, não era?
Ele queria ajudar o homem. Não lhe parecia uma má pessoa.
- Não...
Aquilo o surpreendeu.
- Não... Ele precisava. Você... Você não vai entender... Foi o Senhor quem me mandou.
Ele parecia frágil e quebradiço. Um homem de quebra-cabeças prestes a ser desmontado. A voz chorosa ecoou pelo corredor fantasmagoricamente. Fantasmas do passado provavelmente acordaram. Caio sentiu pena.
- Ah... Eu entendo, é claro que eu entendo... Dê-me sua mão aqui, padre.
O velho estendeu os braços trêmulos. Veias lhes percorriam como rios em um mapa. Ele podia ver a si mesmo navegando naqueles rios. As algemas fecharam-se forçosamente sobre os pulsos magros e fracos.
O vento chegou com força. Era quase como se algo chicoteasse sua pele. Mas aquilo era impossível; a entrada de ar mais próxima era no salão. Metros e metros atrás. Um corredor estreito entre eles. Não obstante, lufadas de ar o castigavam. O velho parecia querer abraçá-las com os braços algemados. Sorria de forma demente. Caio sentiu algo retorcer-se em seu estômago.
Dirigiu-se ao armário e pôs as mãos em volta do cadáver.
- Não! Não mexa nele! Não mexa aí!
Caio ignorou-o. Puxou o homem para trás, junto das mudas de roupa amassadas e ensanguentadas. Segurando o corpo pelos braços, deixou as roupas caírem aos seus pés. Havia um buraco no armário.
- O que é isso, padre?
Atrás de seu cérebro, em alguma área desconhecida, lhe apitava algo. Dizia para fazer a ligação e esperar por alguém para ajudá-lo a carregar o corpo.
- O que é isso, padre? O que é esse buraco? Pra onde vai?
O padre não respondeu. Olhava-o com olhos mortos.
Desde que se tornara um policial, ele quisera encontrar algo assim. Algo misterioso e importante. Talvez houvesse dezenas de corpos lá. Se ele se tornasse um herói, ela gostaria dele de novo. Não reclamaria de trabalho demais. Entenderia que é importante.
- Padre, você tem mais uma chance. O que é isso?
- Não entre aí. Por favor.
Sua voz era novamente lúcida. Mas parecia velha. Muito mais velha do que qualquer outra coisa que ele encontrara em sua vida. Escaravelhos de areia andavam no meio de suas palavras. Em seus olhos havia pirâmides. Seu rosto era apenas um mapa alquebrado e rústico. Seus olhos pareciam globos de vidro rachado. Ele suplicava. Havia alguma outra expressão que ele não conseguia reconhecer. Algo triste.
Caio colocou o pé dentro do buraco. O chão era firme. Pedra, provavelmente.
Atravessou completamente. Olhou para trás. O padre o encarava, sentado na cama. Ele não se preocupara em algemá-lo. Não parecia oferecer risco.
Começou a andar dentro do buraco. Estava escuro. Pelo eco de seus passos, parecia ser um corredor amplo.
- Tem alguém aí?
Sua voz ecoou centenas de vezes. Ele não se surpreenderia com morcegos.
Muitos metros atrás, havia a luz vinda do quarto. Parecia ser apenas um pequeno buraco levando a outro mundo.
O ar era excessivo. Ele se sentia em um lugar aberto. Uma clareira dentro de uma floresta. Um deserto. Do teto (onde quer que ficasse) vinha algo que se assemelhava ao que as estrelas mandam. Algo anormal.
- Tem alguém aí? Alguém?
Ele amaldiçoou-se por não ter trazido a lanterna. Agora, o buraco atrás era apenas um ponto.
Lembrou-se de seu celular. Colocou a mão no bolso. Pegou o celular e acendeu a luz.
Era o infinito. Espaço seguido de espaço seguido de espaço; forma dentro de forma, universo dentro de universo. Havia nada e tudo ao mesmo tempo. O ar era sólido e se movia em dimensões que não deveriam existir. Ele não conseguia enxergar a si mesmo. Ele não conseguia existir a si mesmo. Havia mais luz do que em todas as estrelas juntas. Suas retinas derreteram automaticamente. Havia frio. Ele podia estar no espaço. A gravidade era irreal. O chão havia sumido. Suas pernas patinavam no nada. Ao longe, ele via coisas. Eram coisas sem forma e assustadoras, sombras e asas, chifres e dentes, garras e olhos. Elas pareciam rir ao encará-lo. Elas eram tranquilizadoras ao olhar. Ao menos elas existiam na maneira antiga de existir. Ao menos elas pareciam reais. Ele podia ver a si mesmo com o canto dos olhos. Ele podia ver a qualquer um. Eram rostos. Cor. Ele podia sentir tudo. Ele podia ver a todos. Ele podia ver o Jesus na cruz, salas atrás, rindo. Seu riso era grotesco e deixava espirrar saliva tuberculosa. Havia vários Jesus. Nenhum deles era o que ele esperava. Mas nada daquilo era nada demais. Eram apenas coisas. Coisas nasciam e morriam. Desapareciam. Deixavam de existir. Em todos os lados, entretanto, havia alguma coisa que não deixava de existir. Era uma face sem face, um rosto sem rosto. Era todas as faces juntas. O encarava sem olhos. Não falava. Retumbava dentro de seu cérebro. Sua existência ardia. Era impossível olhar diretamente para Ele, mas ele estava de todos os lados. Ele sabia disso e assim mesmo não hesitava em existir. Caio tentava fugir ao seu olhar mas ele estava nas pedras do chão e da parede, nas formas informes no fundo da sala, no seu celular e em si mesmo. Sua vontade mais íntima era estripar a si mesmo para fugir daquilo. Mas ele sabia que, não importava para onde ele fosse, Aquilo iria atrás. Concentrou-se em não pensar. Mas ele estava nos não pensamentos. Estava dentro de sua mente. A única solução era perder a própria mente. Ele se esforçou. Foram talvez anos. Não havia tempo, e, se houvesse, Ele também estaria lá. Por fim, sua mente se dissipou.
O padre entrou no salão e pegou as chaves das algemas no bolso de Caio, caído e balbuciante. Soltou as próprias mãos.
Fez uma prece e agradeceu. Resolveu deixar o corpo lá. E o outro também. Era mais seguro.
Esperava que ninguém mais viesse investigar. Não queria que mais ninguém se machucasse. Nem todos estavam prontos para encontrá-Lo.


Copyright Guilherme Assis, etc e tal.
 
Um conto policial e sobrenatural de desafiar os leitores! Parabéns kain! Um final surpreendente que me deixou como Caio e o cara do armário... morto de curiosidade! :clap:
 
Bela história, me fixou quase de começo a fim...

Acho apenas que você poderia ter dividido em dois, assim mais pessoas poderiam se encorajar a ler :cerva:

Abraços
 

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