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[CONTO] O Corvo Antes da Pomba

Bruce Torres

Let's be alone together.
O cão corria pra-cima-e-pra-baixo, pra-cima-e-pra-baixo, pra-cima-e-pra-baixo pela rua seca. De um lado a outro pequenas nuvens de poeira surgiam toda vez que suas patas tocavam o chão. Antes que a poeira voltasse ao chão – voltar para onde veio -, o cão passava novamente, e as nuvens se mantinham flutuando não importando a força que a gravidade exercia.

Devia ser a sexta (ou sétima?) vez que o cão cruzada de um lado a outro da rua – não me lembro pois não estava contando. Estimo com base apenas no som das patas indo e vindo, indo e vindo, indo e vindo. Já tinha começado com isso enquanto dormia - o que é engraçado, pois eu já estava dormindo.

Abri a janela do meu quarto no segundo andar – só maneira de dizer, pois eu podia pular para a rua daquela distância e nem me machucaria – e comecei a assistir a cena. Um ponto da rua estava bastante iluminado, dois postes brilhando forte – deviam, pois era por ali que se chegava à nossa rua. Do outro lado, onde a rua terminava, estava totalmente escuro. Nem um feixe de luz podia ser visto vindo das outras casas... E foi aí que eu notei: ninguém mais além de mim estava assistindo aquela cena. Por algum motivo, apenas eu prestava atenção àquele cachorro correndo pra-cima-e-pra-baixo, pra-cima-e-pra-baixo, pra-cima-e-pra-baixo. Estranho? Muito, mas não seria a primeira vez que algo assim ocorria: quantas vezes passamos por algo sem que observemos de perto? Apenas ignoramos, passamos reto. Bem, eles podiam ignorar isso, mas eu não. Foi quando notei outra coisa estranha: não era ali que eu morava. Este lugar era outro que não o meu.

Ignoro a lógica dos sonhos – há lógica nisso? -, mas já sabia o suficiente sobre sonhos lúcidos. Apesar disso, de notar do que se tratava, não acordei e nem aquela realidade se fragmentou, quebrou, desapareceu, etc. Comecei a analisar meu quarto, todo escuro. Tentei ligar as luzes mas elas não funcionavam. Saber que isso era apenas um sonho tornou a cena toda menos assustadora... quer dizer, assim eu imaginava.

Quando voltei para a janela, o cão já estava em sua 12ª ou 13ª viagem pra-cima-e-pra-baixo. As nuvens de poeira começavam a ficar maiores, invadindo as calçadas. O cão nem era tão grande – estava fraco, era magro e estava com sede. A língua mostrava sinais de estar cansado, mas ele apenas continuava correndo, ignorando isso. Quando pensei em descer as escadas – ou pular da janela -, o cão virou na direção da minha casa – minha? Não tinha certeza – e começou a latir:

- hoMEM, hoMEM, hoMEM.

Pensei ter ouvido errado, mas o cachorro pareceu querer confirmar que era isso mesmo que eu tinha ouvido:

- hoMEM, hoMEM, hoMEM.

O latido era triste e rouco – o esforço para continuar correndo deve tê-lo deixado exausto.

Curioso, coloquei a cabeça pra fora da janela para vê-lo e ouvi-lo melhor.

- hoMEM, hoMEM, hoMEM.

Não posso dizer que estivesse surpreso – era um sonho, afinal. Quis ir até à rua, perguntar ao cachorro se ele queria algo, se queria falar mais alguma coisa, se queria entrar e comer alguma coisa. De onde podia ver, ele não estava com raiva – mas eu podia estar enganado. (E daí?)

Quando me virei para ir em direção à porta do meu quarto, mesmo não sabendo se ela estava aberta, ouvi um barulho vindo dos andares de baixo - alguém tinha aberto a porta da sala-de-estar. Em seguida, passos descendo a escada que levava pra fora de casa. Dali se chegava à rua, mas não estava certo se era assim que a casa havia sido construída, não lembrava.

Foi aí que eu ouvi uma voz grossa gritando:

- Seu bostinha-miserável-filho-da-puta perturbando meu neto e eu a essa hora da noite! Vou te mostrar o “hoMEM” já já.
Vovô?

Foi aí que ouvi o primeiro disparo. Congelei. Caí no meio do quarto. O coração batia rápido, não dava pra controlar.

O cachorro continuava latindo:

- hoMEM, hoMEM, hoMEM.

- Não morreu ainda, né? Valentão, você, hein?

Outro tiro. Fechei meus olhos, apesar de não estar vendo a cena. Senti meu rosto ficar vermelho. Pressionei os olhos desejando não poder ver mais nada, um jeito patético de tentar ignorar ou me desligar da realidade – pelo menos daquela “realidade”.
O cachorro latiu de novo:

- hoMEM, hoMEM, hoMEM.

Coloquei força suficiente em uma das pernas e comecei a andar, pouco a pouco, em direção à janela. Não sei porque fiz isso, já que eu não seria capaz de interrompê-lo - ainda assim, continuei andando. (Qualquer um se esconderia de um estranho armado.)

A voz grossa apareceu de novo:

- Pensa ser “cabra macho”, hein? Pode dizer isso-e-aquilo e já basta, né? Dois tiros e ele só está mancando! Ou tô ficando velho ou cê é imortal! Bem, velho eu sei que sou, assim como mortal. Até fatal - assim como você. Vamos ver se estou certo ou não.

Quando alcancei a janela, vi meu avô levantar a espingarda e apontá-la para a cabeça do cachorro. Foi aí que veio o disparo final - e o sangue. Metade da cabeça do cão desapareceu naquele instante. A língua estava pendurada ao resto do crânio. De longe, pude ver os dentes brancos brilhando, do que sobrou do lado direito. Ele desabou no chão. A barriga subia-e-descia, subia-e-descia, subia-e-descia, subia... descia...

Como se tivesse uma última reclamação a fazer antes de seguir para a Eternidade a fim de viver naquela idiotice de “fazenda de cachorros”, ele disse:

- ah-MEM, ah-MEM, ah-MEM.

Perdi o controle. Pulei para a rua e corri até o meu avô, que já estava indo em direção ao portão. Ele segurava a espingarda de cabeça pra baixo, como um taco. O velho – grisalho, barriga saliente, passos contidos e vagarosos – se virou para me encarar assim que me ouviu cair no chão. Gritei para ele algo incoerente, nem sei o que queria dizer com tudo o que dizia ali. Não conseguia fazê-lo responder nada. A voz grossa estava muda – na verdade, ele mal parecia estar respirando. Quis tocá-lo, socá-lo, mas não sabia ao certo o que estava acontecendo ali. O sonho-transformado-em-pesadelo tornou-se imprevisível e eu estava assustado, irritado e triste.

Empurrei-o em direção à luz. Recuei - sua cabeça estava tão arrebentada quanto a do cachorro. A língua pendia mas não se mexia, nem parecia querer. O cabelo grisalho estava molhado de sangue em cima, e uma das mandíbulas, no lado esquerdo, tinha desaparecido. O nariz se fora, assim como um dos olhos.

Vendo aquilo, não conseguia distinguir qualquer emoção daquele “resto de rosto”. Não conseguia nem imaginar que rosto teria havido ali. Eu não conseguia ver o homem que estava ali – se é que havia um homem ali. Meu avô? Não tinha certeza. Eu nem mesmo me lembrava daquela casa nem daquela rua!

O “homem” começou a andar em minha direção... ou assim parecia. Ele colocou a arma debaixo do queixo e tentou atirar. (Falhou.) Tentou novamente. (Falhou.) E tentou mais uma vez. (Falhou.) Ele jogou a arma pra longe, correu em minha direção, me abraçou forte e gritou:

- ESTE NÃO É O MEU ROSTO, MEU FILHO! ESTE NÃO É O MEU ROSTO! ONDE ESTÁ O MEU ROSTO?! ONDE? ONDE? O CÃO COMEU MEU ROSTO, O CÃO COMEU MEU ROSTO!

Me soltei de seu aperto forte e corri, chorando. As lágrimas se misturaram com o sangue de seu rosto marcado - que havia tocado o meu – e senti minhas bochechas queimando. Me virei para ele, gritando ao longe, ainda correndo:

- EU NÃO CONHEÇO SEU ROSTO, VOVÔ! EU NÃO SEI ONDE ELE ESTÁ! EU NÃO SEI ONDE ESTOU, NÃO SEI QUEM O SENHOR É!

Caí de joelhos, envolto pela luz forte do poste, e acabei dizendo para mim mesmo, bem baixinho:

- Nem mesmo conheço meu próprio rosto, vovô. Nem mesmo o conheço.

Acordei, mas só levantei após as lágrimas terem secado, o que levou um longo tempo e sem ter visto qualquer moral para aquela história. Mal pude tentar ver meu próprio rosto no espelho e acabava pensando no homem e no cachorro com seus rostos destroçados.

Havia me tornado um homem assustado. Assustado por um passado que nunca existiu. Mas aqui estou, assustado por isso – uma angústia que tinha acabado de se instalar.
 
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