Bruce Torres
Let's be alone together.
A comoção era grande na fazenda Santo Antônio. Mal havia chegado e tocado um pouco de sua biwa[1] para a família Kumabe durante o jantar – o que fez a contragosto, visto que havia um tabu familiar ancestral de que suas cordas não deveriam ser tocadas -, quando Toshio Hoichi ouviu os gritos em japonês vindos do alojamento dos funcionários negros da fazenda. Era o ano de 1907 e as primeiras ondas de japoneses estavam chegando ao Brasil em busca de uma vida melhor.
- O que sucede, iá[2] Valentina? – disse o patriarca Kumabe, da porta do alojamento.
- Não sabemos, Kumabe-san – disse a senhora vestida com uma bata branca, adê[3] e com colares longos em torno do pescoço. – Estávamos dando início ao nosso culto quando o rapaz começou a perder o controle.
- Culto?
- Sim, Toshio. Eles são candomblistas. É a religião deles. Aliás, - virou-se para Valentina – este é o nosso novo ajudante, Toshio Hoichi.
Cumprimentaram-se se em ojigi[4].
Dentro do alojamento, os demais funcionários, todos vestidos de branco para o culto, tentavam controlar o adolescente, que parecia estar como que possuído.
- Será egum, mãe Valentina? – perguntou uma das fieis, chorando. Era a mãe do rapaz.
Toshio ficou prestando atenção na cena. Haviam velas, jarras e cestas, bem como imagens de gesso do que acreditava ser as divindades deles.
- São orixás, Toshio-kun.
- Orixás?
- Divindades. Cada um deles tem uma serventia.
- E o que é um egum?
- Espíritos desencarnados, dos ancestrais principalmente. Olha só: acho que eles vão tentar invocar algum orixá.
Uma roda foi formada em torno do rapaz possuído. Começaram a cantar um hino que, aos ouvidos de Toshio, não soava nada português.
- O que é isso que estão cantando?
- Devem estar invocando Xangô[5], um de seus orixás mais poderosos, pra conter o egum.
- O senhor não acha que ele apenas... bem, tenha ficado maluco?
Kumabe-san sorriu. Colocou a mão no ombro de Toshio.
- Muita coisa foge da nossa compreensão, Toshio-kun. Afinal, por que seu pai te disse que não tocasse na sua biwa?
Ao som da palavra “biwa”, o garoto possuído deu um salto pra fora da roda gritando em japonês “biwa-bokuboku, flagelo de Mimi-Nashi-Hoichi”. Pegou um berimbau parado na parede e se lançou contra Toshio. A postura de ataque do garoto lembrava a preparação para o tsuki-zue[6], algo básico das aulas de kenjutsu[7]. Mas como ele sabia disso, perguntou-se Toshio.
Kumabe se colocou no meio do caminho e começou a recitar uma sutra[8] em voz alta, em japonês.
- Que os seres reunidos aqui, terrestres ou celestiais, saúdem o Buda, o Tathagata[9], honrado por deuses e homens. Que haja felicidade.
O rapaz estacou no meio do caminho e se ajoelhou.
- Mal algum farei a um monge – disse o rapaz. – Mas não há como fugir de mim, Hoichi. Farei você pagar pelo que me fizeram.
- A forma é vazia, e o vazio é a forma. O vazio não é diferente da forma...
Enquanto Kumabe recitava a sutra, Hoichi apenas olhava pro garoto tentando entender o que havia acontecido. A sutra de Kumabe havia mandado o rapaz de volta à roda – aparentemente era bem poderosa.
- Acho que isso o acalmará por algum tempo.
- Kumabe-san, Kumabe-san – dizia uma mulher suplicante -, acha que pode ajudar meu filhinho?
- Não sei dizer, Vera. Nunca vi algo assim antes. Fiz o que aprendi das minhas tradições. E você, Toshio?
- Eu, senhor?
- Ele te chamou de Mimi-Nashi-Hoichi, certo? Sabe por que?
- Bem, Mimi-Nashi-Hoichi foi um ancestral meu que havia sido enganado pelo espírito de um samurai para tocar a um imperador morto, Antoku Taira. Ele era cego, sabe? E esse espírito fez ele ir várias vezes recitar uma canção sobre a queda de um clã famoso, os Taira. Toda noite Hoichi ia ao cemitério, sem saber, e cantava achando que estava num palácio. O monge que era amigo dele descobriu isso e inscreveu uma sutra – justamente essa, Kumabe-san – no corpo de Hoichi. Mas as orelhas ficaram descobertas.
- E aí, o que aconteceu? – perguntou um dos trabalhadores negros, curioso com a história.
- O samurai não podia voltar de mãos abanando, então cortou as orelhas de Hoichi e as levou pro daimyo[10] dele. Daí chamarem ele de Mimi-Nashi, “sem orelha”.
- Ele citou “biwa-bokuboku” também, né?
- Um yokai[11] com cabeça de biwa, que é cego. Acho que é assim que ele via Mimi-Nashi.
Iá Valentina se dirigiu aos dois japoneses.
- Nossa magia pode mantê-lo controlado, mas como tirar esse espírito... Ele parece estar muito perturbado. O que acham que pode ser?
- Já viu desespero assim antes, Valentina?
- Quando escravo tinha banzo, saudades, era mais ou menos isso que acontecia. É um palpite. O espírito luta, nem Xangô o submete. Parece mesmo o espírito de um guerreiro.
Kumabe e Toshio voltaram para casa pensando no que poderiam fazer. Kumabe achou engraçado ter sido confundido com um monge, mas agora se perguntava como tirar o espírito do garoto.
- Gostaria que essa peça nô[12] não se realizasse aqui em casa.
- Kumabe-san?
- Toshio-kun, você é um bom rapaz. Veio de longe para nos ajudar, mas não quero que nada de mau te aconteça.
- Você teme que eu termine como na história, não é?
Kumabe baixou os olhos.
- Temo, sim. Vim para cá em busca de esperança. Não quero que isso custe uma vida.
Toshio ficou quieto. Entrou na casa, pegou a biwa que havia largado na cozinha na hora da confusão, e subiu para o quarto que lhe haviam arrumado.
Sentado na cama, contemplou o instrumento. Se tivesse feito como o pai lhe dissera... Mas agora era tarde. Mas e se... quebrasse o instrumento? Levantou-se rápido, pegou a biwa e, quando ia atirá-la no chão, relembrou da conversa com iá Valentina.
- É isso! Kumabe-san, Kumabe-san.
Kumabe entrou no quarto assim que ouviu o berro.
- Que foi, Toshio-kun? Algo te incomoda?
- Acho que já sei como retirar o espírito do garoto. Chame a todos.
- Todos?
- Sim, todos!
Kumabe chamou o capataz, que chamou iá Valentina. Valentina se certificou de preparar o galpão maior onde se estocava o café para realizar a cerimônia. O garoto, acalmado desde a invocação da sutra, ficou em um círculo rodeado pelas imagens dos orixás, além das do Buda tiradas da casa de Kumabe. Todos os presentes foram benzidos e aprenderam a sutra da forma-e-do-vazio, caso precisassem segurar o rapaz novamente.
Almofadas foram providenciadas para o garoto e para Toshio. Eles ficariam frente a frente durante todo o ato.
- Hoichi-san, que gente é essa? Onde eu estou?
- Samurai, essa gente toda veio aqui para ouvir a saga dos Taira. Se incomoda se eu tocar para eles?
- São estrangeiros, Hoichi. A maioria, digo.
- E são guerreiros também. A maioria deles vem da África, terra de guerreiros, também. Me dá um voto de confiança? – E pegou na orelha pra deixar claro o pedido.
- Muito bem. Prossiga.
- Você está com saudades de casa, né, samurai? Espero que isso te traga mais para perto do lar. – E começou a recitar ao som da biwa.
Kiyomori Taira tentara governar o Japão levando seu neto, Antoku, ao poder. Mas o clã dos Minamoto se opunha isso. Kiyomori acabou por levar o clã à ruína de tão maquiavélico que era. As coisas pioram quando ele guerreia com os monges budistas, que apoiam Minamoto, e os executa em massa – um mau presságio.
O espírito do samurai chora – ele fala a Toshio que estava presente nesses eventos.
Muitos ainda morrerão pela ambição de Kiyomori – nada o sacia. Os deuses o atacam com uma febre que não para de queimá-lo. Suas vítimas gritam mandando-o para o avíci[13]. Mas o pior ainda estava por vir: Yoritomo Minamoto se torna xógum[14] e decide erradicar os Taira de vez.
Sem terem como fugir, a viúva de Kiyomori pega o jovem imperador Antoku – então com 6 anos – e se joga no mar. Muitos outros Taira farão o mesmo para não cair nas mãos impiedosas dos Minamoto. No fim, sobra apenas a consolação do dito budista: “O orgulhoso não perdura, pois é como um sonho em uma nova de primavera. O poderoso enfim cai, pois é como poeira ao vento”.
Toshio parou de tocar. O espírito estava abalado. Muitos dos japoneses também choravam com essa história.
- Essa história passou de pai pra filho, samurai. O que você fez a Mimi-Nashi-Hoichi definiu nosso legado. Provavelmente alguém te colocou na biwa quando você foi atrás dele de novo, não é? E eu te libertei sem querer, né? Estamos ligados, pelo que vejo.
- Ele contou uma história muito triste, não é? – perguntou Valentina, apontando pros demais ouvintes japoneses.
- É uma história popular no Japão – respondeu Kumabe. – Tem a ver com humildade, resignação, karma[15].
O garoto levantou a cabeça, e o espírito falou através dele:
- Mas o que faço agora, Hoichi-san? Por que vim pra cá? Preciso voltar para os meus!
- Talvez seja karma, samurai.
- Como uma punição?
- Não, uma oportunidade. Veja, nenhum de nós é daqui. Mas o Brasil, onde você está, é o nosso lugar agora. É o nosso karma. – E apontou para a iá Valentina, que entendeu o recado.
- Viemos para cá escravizados, mas éramos guerreiros, artistas... Passamos por tempos difíceis aqui, mas agora só posso fazer o que estiver ao meu alcance para que as coisas melhorem. Tenho certeza de que podemos fazer isso.
Enquanto ela dizia isso, Kumabe traduzia para o samurai.
- Viu só, samurai? – disse Toshio. – E você foi capaz de resistir a Xangô, deus-guerreiro! Um guerreiro japonês resistiu a um orixá guerreiro! Quer honra maior que essa, que atravessa o Oceano? Você é um orgulho para nós que estamos aqui, samurai!
O espírito começou a sorrir, embora tentasse se controlar para manter-se sério. As lágrimas vieram novamente com tudo e ele colocou a cabeça entre os joelhos.
- Arigatô[16], Hoichi-san. Peço desculpas a todos, principalmente ao garoto. Fiquei desesperado de não estar junto do meu daimyo, sair de sua biwa e não saber onde estava. Cuide da biwa, Hoichi-san. Mimi-Nashi-Hoichi foi um maravilhoso músico que tocou para imperadores. Tenha orgulho disso.
- Arigatô, samurai. Tomarei conta, sim.
- Sayonara[17].
O espírito abandonou o garoto, que, de joelhos, sem entender o que estava acontecendo, olhou para Toshio, curioso. Era a primeira vez que via aquele homem japonês, mas sentia que algo ligava os dois então.
- Muito prazer. Estávamos no meio de uma história que está sendo escrita. Posso te adiantar algo: ela tem final feliz.
- Como sabe que vai ser feliz se ainda está sendo escrita?
- Eu não sei. Vou trabalhando ao longo do caminho para torná-la assim.
Aproveitando o momento, iá Valentina convidou a todos para a gira[18] em seu terreiro. Invocou Xangô para que orientasse os eguns a ajudarem o espírito do samurai, um guerreiro destemido, mas ainda confuso, a encontrar paz. Começaram a cantar vários pontos descrevendo as histórias e sagas dos orixás guerreiros de Aruanda[19]: Xangô, Ogum, Oxóssi... Os japoneses se enxergaram nessas histórias – também contaram outras semelhantes envolvendo seus próprios guerreiros. Essas histórias continham uma ponta de esperança por melhores dias. Despediram-se todos concordando nisso: que onde quer que estivessem, enquanto houvesse alguém disposto a ouvir suas histórias, todos esses guerreiros e deuses e homens e mulheres honrados permaneceriam vivos. Em qualquer solo onde houvesse a oportunidade de cantar e contar tais feitos, ali seria seu lugar.
[1] Instrumento de cordas japonês. Semelhante a um alaúde.
[2] Sacerdotisa do terreiro de candomblé. Vulgarmente conhecida como mãe de santo.
[3] Coroa, em ioruba. Adereço usado pelas orixás e iás.
[4] Cumprimento tradicional japonês realizado inclinando-se.
[5] Além de orixá da justiça e dos raios, Xangô é tido como o responsável pelo culto aos eguns.
[6] Kata (série de exercícios) básico.
[7] Arte marcial que envolve o uso da espada, também conhecido como kendô.
[8] Trecho budista que contém algum ensinamento. Às vezes é usado como reza ou amuleto.
[9] “Aquele que foi/veio”, em sânscrito. Refere-se ao Buda.
[10] Senhor feudal.
[11] Ser sobrenatural.
[12] Estilo de teatro japonês. Envolve pantomima e lírica.
[13] O mais baixo nível do Naraka, o Inferno na concepção budista.
[14] Regente.
[15] “Consequência de um ato” é uma das leituras para o termo.
[16] Obrigado.
[17] Tchau.
[18] Culto.
[19] Plano espiritual no candomblé e na umbanda.
[Título] Hôgaku: Gênero musical tradicional japonês da era Pré-Meiji.
- O que sucede, iá[2] Valentina? – disse o patriarca Kumabe, da porta do alojamento.
- Não sabemos, Kumabe-san – disse a senhora vestida com uma bata branca, adê[3] e com colares longos em torno do pescoço. – Estávamos dando início ao nosso culto quando o rapaz começou a perder o controle.
- Culto?
- Sim, Toshio. Eles são candomblistas. É a religião deles. Aliás, - virou-se para Valentina – este é o nosso novo ajudante, Toshio Hoichi.
Cumprimentaram-se se em ojigi[4].
Dentro do alojamento, os demais funcionários, todos vestidos de branco para o culto, tentavam controlar o adolescente, que parecia estar como que possuído.
- Será egum, mãe Valentina? – perguntou uma das fieis, chorando. Era a mãe do rapaz.
Toshio ficou prestando atenção na cena. Haviam velas, jarras e cestas, bem como imagens de gesso do que acreditava ser as divindades deles.
- São orixás, Toshio-kun.
- Orixás?
- Divindades. Cada um deles tem uma serventia.
- E o que é um egum?
- Espíritos desencarnados, dos ancestrais principalmente. Olha só: acho que eles vão tentar invocar algum orixá.
Uma roda foi formada em torno do rapaz possuído. Começaram a cantar um hino que, aos ouvidos de Toshio, não soava nada português.
- O que é isso que estão cantando?
- Devem estar invocando Xangô[5], um de seus orixás mais poderosos, pra conter o egum.
- O senhor não acha que ele apenas... bem, tenha ficado maluco?
Kumabe-san sorriu. Colocou a mão no ombro de Toshio.
- Muita coisa foge da nossa compreensão, Toshio-kun. Afinal, por que seu pai te disse que não tocasse na sua biwa?
Ao som da palavra “biwa”, o garoto possuído deu um salto pra fora da roda gritando em japonês “biwa-bokuboku, flagelo de Mimi-Nashi-Hoichi”. Pegou um berimbau parado na parede e se lançou contra Toshio. A postura de ataque do garoto lembrava a preparação para o tsuki-zue[6], algo básico das aulas de kenjutsu[7]. Mas como ele sabia disso, perguntou-se Toshio.
Kumabe se colocou no meio do caminho e começou a recitar uma sutra[8] em voz alta, em japonês.
- Que os seres reunidos aqui, terrestres ou celestiais, saúdem o Buda, o Tathagata[9], honrado por deuses e homens. Que haja felicidade.
O rapaz estacou no meio do caminho e se ajoelhou.
- Mal algum farei a um monge – disse o rapaz. – Mas não há como fugir de mim, Hoichi. Farei você pagar pelo que me fizeram.
- A forma é vazia, e o vazio é a forma. O vazio não é diferente da forma...
Enquanto Kumabe recitava a sutra, Hoichi apenas olhava pro garoto tentando entender o que havia acontecido. A sutra de Kumabe havia mandado o rapaz de volta à roda – aparentemente era bem poderosa.
- Acho que isso o acalmará por algum tempo.
- Kumabe-san, Kumabe-san – dizia uma mulher suplicante -, acha que pode ajudar meu filhinho?
- Não sei dizer, Vera. Nunca vi algo assim antes. Fiz o que aprendi das minhas tradições. E você, Toshio?
- Eu, senhor?
- Ele te chamou de Mimi-Nashi-Hoichi, certo? Sabe por que?
- Bem, Mimi-Nashi-Hoichi foi um ancestral meu que havia sido enganado pelo espírito de um samurai para tocar a um imperador morto, Antoku Taira. Ele era cego, sabe? E esse espírito fez ele ir várias vezes recitar uma canção sobre a queda de um clã famoso, os Taira. Toda noite Hoichi ia ao cemitério, sem saber, e cantava achando que estava num palácio. O monge que era amigo dele descobriu isso e inscreveu uma sutra – justamente essa, Kumabe-san – no corpo de Hoichi. Mas as orelhas ficaram descobertas.
- E aí, o que aconteceu? – perguntou um dos trabalhadores negros, curioso com a história.
- O samurai não podia voltar de mãos abanando, então cortou as orelhas de Hoichi e as levou pro daimyo[10] dele. Daí chamarem ele de Mimi-Nashi, “sem orelha”.
- Ele citou “biwa-bokuboku” também, né?
- Um yokai[11] com cabeça de biwa, que é cego. Acho que é assim que ele via Mimi-Nashi.
Iá Valentina se dirigiu aos dois japoneses.
- Nossa magia pode mantê-lo controlado, mas como tirar esse espírito... Ele parece estar muito perturbado. O que acham que pode ser?
- Já viu desespero assim antes, Valentina?
- Quando escravo tinha banzo, saudades, era mais ou menos isso que acontecia. É um palpite. O espírito luta, nem Xangô o submete. Parece mesmo o espírito de um guerreiro.
Kumabe e Toshio voltaram para casa pensando no que poderiam fazer. Kumabe achou engraçado ter sido confundido com um monge, mas agora se perguntava como tirar o espírito do garoto.
- Gostaria que essa peça nô[12] não se realizasse aqui em casa.
- Kumabe-san?
- Toshio-kun, você é um bom rapaz. Veio de longe para nos ajudar, mas não quero que nada de mau te aconteça.
- Você teme que eu termine como na história, não é?
Kumabe baixou os olhos.
- Temo, sim. Vim para cá em busca de esperança. Não quero que isso custe uma vida.
Toshio ficou quieto. Entrou na casa, pegou a biwa que havia largado na cozinha na hora da confusão, e subiu para o quarto que lhe haviam arrumado.
Sentado na cama, contemplou o instrumento. Se tivesse feito como o pai lhe dissera... Mas agora era tarde. Mas e se... quebrasse o instrumento? Levantou-se rápido, pegou a biwa e, quando ia atirá-la no chão, relembrou da conversa com iá Valentina.
- É isso! Kumabe-san, Kumabe-san.
Kumabe entrou no quarto assim que ouviu o berro.
- Que foi, Toshio-kun? Algo te incomoda?
- Acho que já sei como retirar o espírito do garoto. Chame a todos.
- Todos?
- Sim, todos!
Kumabe chamou o capataz, que chamou iá Valentina. Valentina se certificou de preparar o galpão maior onde se estocava o café para realizar a cerimônia. O garoto, acalmado desde a invocação da sutra, ficou em um círculo rodeado pelas imagens dos orixás, além das do Buda tiradas da casa de Kumabe. Todos os presentes foram benzidos e aprenderam a sutra da forma-e-do-vazio, caso precisassem segurar o rapaz novamente.
Almofadas foram providenciadas para o garoto e para Toshio. Eles ficariam frente a frente durante todo o ato.
- Hoichi-san, que gente é essa? Onde eu estou?
- Samurai, essa gente toda veio aqui para ouvir a saga dos Taira. Se incomoda se eu tocar para eles?
- São estrangeiros, Hoichi. A maioria, digo.
- E são guerreiros também. A maioria deles vem da África, terra de guerreiros, também. Me dá um voto de confiança? – E pegou na orelha pra deixar claro o pedido.
- Muito bem. Prossiga.
- Você está com saudades de casa, né, samurai? Espero que isso te traga mais para perto do lar. – E começou a recitar ao som da biwa.
Kiyomori Taira tentara governar o Japão levando seu neto, Antoku, ao poder. Mas o clã dos Minamoto se opunha isso. Kiyomori acabou por levar o clã à ruína de tão maquiavélico que era. As coisas pioram quando ele guerreia com os monges budistas, que apoiam Minamoto, e os executa em massa – um mau presságio.
O espírito do samurai chora – ele fala a Toshio que estava presente nesses eventos.
Muitos ainda morrerão pela ambição de Kiyomori – nada o sacia. Os deuses o atacam com uma febre que não para de queimá-lo. Suas vítimas gritam mandando-o para o avíci[13]. Mas o pior ainda estava por vir: Yoritomo Minamoto se torna xógum[14] e decide erradicar os Taira de vez.
Sem terem como fugir, a viúva de Kiyomori pega o jovem imperador Antoku – então com 6 anos – e se joga no mar. Muitos outros Taira farão o mesmo para não cair nas mãos impiedosas dos Minamoto. No fim, sobra apenas a consolação do dito budista: “O orgulhoso não perdura, pois é como um sonho em uma nova de primavera. O poderoso enfim cai, pois é como poeira ao vento”.
Toshio parou de tocar. O espírito estava abalado. Muitos dos japoneses também choravam com essa história.
- Essa história passou de pai pra filho, samurai. O que você fez a Mimi-Nashi-Hoichi definiu nosso legado. Provavelmente alguém te colocou na biwa quando você foi atrás dele de novo, não é? E eu te libertei sem querer, né? Estamos ligados, pelo que vejo.
- Ele contou uma história muito triste, não é? – perguntou Valentina, apontando pros demais ouvintes japoneses.
- É uma história popular no Japão – respondeu Kumabe. – Tem a ver com humildade, resignação, karma[15].
O garoto levantou a cabeça, e o espírito falou através dele:
- Mas o que faço agora, Hoichi-san? Por que vim pra cá? Preciso voltar para os meus!
- Talvez seja karma, samurai.
- Como uma punição?
- Não, uma oportunidade. Veja, nenhum de nós é daqui. Mas o Brasil, onde você está, é o nosso lugar agora. É o nosso karma. – E apontou para a iá Valentina, que entendeu o recado.
- Viemos para cá escravizados, mas éramos guerreiros, artistas... Passamos por tempos difíceis aqui, mas agora só posso fazer o que estiver ao meu alcance para que as coisas melhorem. Tenho certeza de que podemos fazer isso.
Enquanto ela dizia isso, Kumabe traduzia para o samurai.
- Viu só, samurai? – disse Toshio. – E você foi capaz de resistir a Xangô, deus-guerreiro! Um guerreiro japonês resistiu a um orixá guerreiro! Quer honra maior que essa, que atravessa o Oceano? Você é um orgulho para nós que estamos aqui, samurai!
O espírito começou a sorrir, embora tentasse se controlar para manter-se sério. As lágrimas vieram novamente com tudo e ele colocou a cabeça entre os joelhos.
- Arigatô[16], Hoichi-san. Peço desculpas a todos, principalmente ao garoto. Fiquei desesperado de não estar junto do meu daimyo, sair de sua biwa e não saber onde estava. Cuide da biwa, Hoichi-san. Mimi-Nashi-Hoichi foi um maravilhoso músico que tocou para imperadores. Tenha orgulho disso.
- Arigatô, samurai. Tomarei conta, sim.
- Sayonara[17].
O espírito abandonou o garoto, que, de joelhos, sem entender o que estava acontecendo, olhou para Toshio, curioso. Era a primeira vez que via aquele homem japonês, mas sentia que algo ligava os dois então.
- Muito prazer. Estávamos no meio de uma história que está sendo escrita. Posso te adiantar algo: ela tem final feliz.
- Como sabe que vai ser feliz se ainda está sendo escrita?
- Eu não sei. Vou trabalhando ao longo do caminho para torná-la assim.
Aproveitando o momento, iá Valentina convidou a todos para a gira[18] em seu terreiro. Invocou Xangô para que orientasse os eguns a ajudarem o espírito do samurai, um guerreiro destemido, mas ainda confuso, a encontrar paz. Começaram a cantar vários pontos descrevendo as histórias e sagas dos orixás guerreiros de Aruanda[19]: Xangô, Ogum, Oxóssi... Os japoneses se enxergaram nessas histórias – também contaram outras semelhantes envolvendo seus próprios guerreiros. Essas histórias continham uma ponta de esperança por melhores dias. Despediram-se todos concordando nisso: que onde quer que estivessem, enquanto houvesse alguém disposto a ouvir suas histórias, todos esses guerreiros e deuses e homens e mulheres honrados permaneceriam vivos. Em qualquer solo onde houvesse a oportunidade de cantar e contar tais feitos, ali seria seu lugar.
[1] Instrumento de cordas japonês. Semelhante a um alaúde.
[2] Sacerdotisa do terreiro de candomblé. Vulgarmente conhecida como mãe de santo.
[3] Coroa, em ioruba. Adereço usado pelas orixás e iás.
[4] Cumprimento tradicional japonês realizado inclinando-se.
[5] Além de orixá da justiça e dos raios, Xangô é tido como o responsável pelo culto aos eguns.
[6] Kata (série de exercícios) básico.
[7] Arte marcial que envolve o uso da espada, também conhecido como kendô.
[8] Trecho budista que contém algum ensinamento. Às vezes é usado como reza ou amuleto.
[9] “Aquele que foi/veio”, em sânscrito. Refere-se ao Buda.
[10] Senhor feudal.
[11] Ser sobrenatural.
[12] Estilo de teatro japonês. Envolve pantomima e lírica.
[13] O mais baixo nível do Naraka, o Inferno na concepção budista.
[14] Regente.
[15] “Consequência de um ato” é uma das leituras para o termo.
[16] Obrigado.
[17] Tchau.
[18] Culto.
[19] Plano espiritual no candomblé e na umbanda.
[Título] Hôgaku: Gênero musical tradicional japonês da era Pré-Meiji.