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Conto [ as antefaces da lembrança imperfeita ]

alefemartins

Usuário
Olá! Este foi um conto que eu fiz na Oficina de Criação Literária da faculdade. Espero que gostem, é extenso rs. Boa leitura!! Obs.: não consegui editar com parágrafos :(

AS ANTEFACES DA LEMBRANÇA IMPERFEITA
Alexandre Ferreira Martins

Em um deslocamento suntuoso, erguia o braço esquerdo para agarrar o cordão invisível que a sustentava durante o passo e, com o braço direito, imitava o abraçar de um cavalheiro valsante. Quanto ao arabesco, a estrela de execução era ela; sustentava o corpo com apenas a ponta do pé esquerdo enquanto erguia a perna direita no ar, imóvel. A coluna ereta e o pescoço elevado davam a elegância que lhe era única, unindo a graciosidade dos contornos que a dança exigia à suavidade com que era capaz de realizar cada passo.

Desde que Sofia entrou pela porta da escola de dança para matricular-se nas aulas de balé, a professora Desirée teve a certeza de que a menina seria um prodígio. Era uma normalista, mas a padronização não regrava a agilidade da jovem — possuía o caminhar esbelto e o olhar analítico que lhe eram naturais. Tanto é verdade que ela, na primeira aula, observou os movimentos das veteranas e conseguiu executá-los com destaque. Talvez os tenha feito mais belamente do que qualquer uma das meninas que as precedia no tempo de aulas. A dedicação de Sofia era extraordinária e admirável.

Ao esvaecer do crepúsculo, após o término do ensaio para a primeira apresentação de Sofia, uma mulher apareceu-lhe no vestiário da escola de dança e começou a discursar sobre como o cotidiano da dançarina era desprezível. A criatura trajada de preto, com o rosto coberto por um véu negro e purpurinado, levou Sofia para passear em uma nuvem de céu chuvoso. O mais incrível era que a roupa da criatura que a levava para um lugar desconhecido, não molhava. Já a bailarina estava encharcada. Os louros cachos do cabelo alisaram-se pelo acúmulo da água, de uma chuva forjada, que penetrava por entre os fios. O clássico tutu branco contraiu-se, tamanha era a intensidade da chuva. Mas Sofia não se preocupou em estar ensopada pela água que parecia penetrar-lhe os poros epiteliais. Queria descobrir para onde a tenebrosa mulher a levava.

Dentro de um quarto escuro que se materializou ao redor das duas, a nuvem desintegrou e Sofia caiu em cima de um tapete plumado. Um pouco tonta, levantou do chão apoiando-se na cabeceira de uma cama gigantesca. Parecia que tomara a pílula de Alice, a menina do País das Maravilhas. Os objetos mostravam-se maiores do que o normal, ou ela estava menor do que parecia. A mulher que acompanhava Sofia não mais vestia preto; estava agora com um vestido branco e, quando virou o rosto para a jovem, Sofia espantou-se. A criatura era uma fase da bailarina refletida em um espelho, aparentemente mais velha. O calendário na parede indicava um tempo incompreensível, uma data indecifrável.

A mulher ofereceu-lhe a mão e conduziu-a até a porta do cômodo – tratava-se de uma enorme tábua de madeira, cuja maçaneta cintilava em um brilho interno, alumiando parte do quarto. Sofia abriu a porta e deparou-se com um salão repleto de pessoas mascaradas. Os tamanhos dos objetos voltaram ao normal e Sofia começou a reconhecer onde estava. Pelas costas, a cópia envelhecida da bailarina aplicou-lhe um feitiço e a jovem, de repente, viu-se trajada de um longo vestido roxo. Cobrindo a metade esquerda de seu rosto, estava uma anteface rubra, bordada a fios de ouro e com o desenho ladeado de uma rosa, contornada por pedras de safira.
Sofia estava em sua casa. Identificou o local assim que viu o lustre de cristal que a mãe ganhara de presente no primeiro aniversário de casamento. O colossal ornamento francês fulgurava mais do que o normal naquela estranha noite.

Misturando-se aos convidados do baile de máscaras, Sofia viu-se perdida em um local tão íntimo aos olhos. Quando tornou o olhar novamente para o lustre, a mão de um homem a segurou pelo braço e a arrastou dizendo que precisava apresentá-la a algumas pessoas. Diante de um casal elegantíssimo, o homem mascarado, que colocava o braço de Sofia entre o dele, apresentou-lhe como sendo sua esposa. Disfarçadamente, a jovem assustou-se com as palavras do homem que jamais vira. Monossilábica, Sofia somente assentia aos comentários do homem, isso porque o semblante das duas pessoas à frente, transparecia a aceitação das palavras que lhes eram ditas. Saltou da boca de uma de uma das duas pessoas uma congratulação direcionada a Sofia, o que foi um estranhamento a primeira vista.

No ímpeto do labirinto que se havia criado na imaginação de Sofia, o tempo parou e a jovem pode ver o ambiente estatizado. Indivíduos paralisados em suas respectivas posições, como se todos executassem, com a particularidade de verdadeiros bailarinos, seus próprios passos dançantes. Eram estátuas vivas. Apenas ela conseguia caminhar em meio àqueles corpos imóveis que aparentavam dirigirem-lhe os olhares – era ela a estrela do evento.

Um espelho de armação dourada criou-se atrás de Sofia e mãos desconhecidas, saltadas de dentro do espelho, pararam a jovem que andava a observar a trivialidade de cada estátua humana criada pela pausa do tempo. As mãos duras e gélidas apertavam os braços delicados da dançarina a ponto de provocar uma dor latejante nos locais pressionados. Sofia virou o corpo e reencontrou a mesma figura que antes a conduzira até a porta do quarto escuro. A moça então agarrou o braço que a prendia e tentou repeli-lo, sem êxito. Acabou por ser puxada àquele espelho, penetrando-o.
Um imenso lago refletia a luz do luar no momento em que nele Sofia era jogada. Enquanto caía de uma altura incalculável, pôde escutar vozes enfurecidas que repetiam freneticamente a frase “Mexa-se, Dance!”. Por vezes escutava a voz dos pais, mas em outras também aparentava escutar a voz da professora. Os brados se alternavam na medida em que o seu labirinto mental inaugurava mais e mais caminhos mirabolantes durante a queda. Com medo, Sofia ergueu os braços para tentar submergir com segurança. E mergulhou.

Bateu de joelhos em um piso de mármore, não os machucando tanto, graças ao volumoso vestido que trajava, o mesmo do baile de máscaras. Apoiou as mãos sobre o chão e equilibrou-se para levantar. Olhou a sua volta e percebeu que estava no banheiro da suíte de sua mãe, defronte para o espelho que cobria quase por inteira uma das paredes. Abaixo, o lavabo permanecia organizado. Pelo espelho, avistou alguns porta-retratos que ficavam sobre a cômoda da suíte; eram fotos dela com o suposto marido, aparentando cenas de muita felicidade — em uma das imagens, inclusive, o homem segurava o queixo de Sofia beijando-lhe a testa, enquanto ela sorria singelamente com o canto dos lábios.

Algum tempo depois de admirar a imagem, zumbidos ecoaram pelo ambiente e, não suportando o barulho que estouraria seus tímpanos, a jovem tapou os ouvidos com as mãos e cerrou os olhos. Quando o som parou, ela ergueu as pálpebras e atrás de si, pelo espelho, o mesmo homem das fotografias, com metade do rosto coberto pela máscara, enrolava no pescoço dela um grosso pedaço de corda.

Segurando firme pelas duas pontas da corda, o homem começou a apertar o objeto contra o pescoço de Sofia, puxando-o, enraivecido. Ela começou a gritar, mas logo perdeu a voz, pois lhe faltara o ar. Em poucos segundos, o sangue começou a sair por sua boca e depois pelos olhos, transfigurando a face ainda mascarada e pincelando o roxo do vestido, que logo enegreceu por onde o sangue penetrava. O homem arrancou a máscara da face da bailarina, e uma rosa encarnada desenhou-se no rosto nu, com o líquido que transbordava ininterruptamente. Mas Sofia não morreu, ainda conseguia ver toda vida que jorrava de seu interior. As pedras de safira descolaram do adorno, caíram no chão e o marido impiedoso nelas pisou, despedaçando-as. O homem abraçou a bailarina e ergueu o corpo feminino, quase desfalecido, encenando um dos passos que ela executara nas aulas de balé. Ele era o seu cavalheiro valsante e a corda não era invisível, estava lá, enrolada em suas mãos que não conseguiam se erguer. Foi preciso que o marido distendesse o braço da jovem para que os dois realizassem juntos a última dança, cuja perfeição se ausentava ao passo que Sofia, perturbada, admirava uma rosa depositada sobre parapeito da janela.

“E um, e dois, e três...” era o que Sofia murmurava quando a mãe acordou-a do sono em pé. A jovem dançava sem parar em meio às rosas do jardim da mansão, porém não notara que se perdera em imaginações. A mãe a chamava para se aprontar, pois logo começaria a primeira apresentação de Sofia no teatro da cidade, e nada poderia dar errado.

As poltronas do teatro lotavam e, muito tensa, no camarim, a bailarina vestia as sapatilhas enquanto escutou a professora conversar com um rapaz. Prontamente, os dois vieram em sua direção e Desirée apresentou o filho Thomas, cujo rosto era familiar, mas Sofia não sabia dizer de onde o conhecera. Ele também era bailarino. Disse entender o nervosismo da execução em público, afinal, apesar da excelência demonstrada no decorrer das aulas, Sofia não estava livre de cometer deslizes na dança – isso seria normal. Ela agradeceu o incentivo e despediu-se do rapaz, que lhe deu um abraço de boa-sorte.

No momento em que as cortinas do teatro se abriram, Sofia estava deitada na madeira do palco à espera do primeiro soar dançante. Ao som de Masquerade Suite, ela deu início à dança. Era a musa Terpsícore entre piruetas, saltos e deslocamentos braçais. Repetia o passo que o homem mascarado obrigara seu corpo ensanguentado a executar. Sofia, pois, recordou-se da metade do rosto do mentor de sua quase morte e deu-se conta de que ele e Thomas eram a mesma pessoa. A bailarina sentiu cortarem-lhe a corda invisível que a sustentava e caiu sobre a madeira. Ressoaram pelo teatro vozes indignadas e dotadas de preocupação. O filho da professora de dança subiu às pressas até o palco e segurou em seus braços o corpo desacordado de Sofia.

No camarim, ela despertou e viu que ao seu lado estava Thomas. Espantada, ordenou aos berros que ele saísse do local e o rapaz, sem entender a fúria repentina, deixou-a sozinha. Sofia olhou para as sapatilhas nos pés, depois para vestimenta que lhe cobria o corpo inteiro, e despiu-se. Desorientada por lembranças de um futuro incerto, a jovem pegou uma tesoura na gaveta da penteadeira, começou a recortar o calçado e, logo, também talhou a roupa do espetáculo. A figura da mulher que a levara para a viagem atemporal desfez-se no espelho do camarim e um reflexo real de Sofia surgiu, de onde jamais deveria ter saído.
 

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