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[CONTO] A morte pede explicações

  • Criador do tópico Miguel Guerra Lopes
  • Data de Criação
M

Miguel Guerra Lopes

Visitante
Mariana, 71 anos:
Uma mãe nunca deveria se despedir de seu filho. Não faz sentido. Fui eu quem o trouxe ao mundo - e ele sorriu ao me ver. Agora, tudo em mim luta contra esta realidade absurda. Não, não existe corpo dentro do caixão que a terra vai engolindo. Se houver, certamente não será do meu menino ingênuo que questionava sobre onde papai do céu morava, o que havia depois do céu, como poderia conversar com menino Jesus. Suas perguntas terão resposta? Não, não, este pesadelo é irreal. Alguém, de repente, me acordará e o verei novamente chegar da escola ou nos almoços de domingo cada vez mais casuais. Então, estarei feliz mais uma vez, certa da vida ter valido a pena.

Heitor, 22 anos:
Ainda não criaram um curso de como encarar a morte. Ou talvez tenham e eu desconheça por completo... Não sei. Apenas posso dizer que, por mais óbvia, anunciada e intransferível, nos pega sempre despreparados, assustados. Bate à porta em um dia ensolarado, entrando Senhora do mundo: não precisa pedir passagem. Vestirá um vestido preto e carregará consigo sua foice afiada? Duvido. Vem como relâmpago, como bomba-relógio desconhecida que explode subitamente. Até porque tem muito trabalho pelos outros cantos do planeta. Apressada, suga a vida de quem mais amamos violentamente. Terá sido compreensiva desta vez? Terá protegido meu pai em sua mortalha?

Laura, 45 anos:
Espero que alguém traga mais uma coroa de flores – esta é tão simplória. O terno em que o colocaram tampouco parece suficiente. A sensação de absurdo, de que algo está fora de lugar, reflete-se ainda mais no caixão pomposo, rapidamente escolhido em homenagem à fibra moral de meu marido. Apesar de todas as qualidades e boas memórias, não consigo chorar, por mais que tente criar lágrimas nos olhos. Estou anestesiada, como quem espera um milagre de última hora, uma palavra mágica que transforme tudo. Estou arrasada, como quem ainda não sabe que morreu.

Gustavo, 43 anos:
Fábio não era apenas um amigo, um colega de trabalho solidário: considerava-o tal qual um irmão. Cresci sendo filho único e conheço bem os momentos de solidão que só a cumplicidade fraterna pode resolver. Este dia interminavelmente cruel muito me lembra da angústia adolescente. Sim, o irmão que nunca tive já não existe mais e, com isso, o mundo fica deserto. Sua falta esmaga nossos peitos. Que agora esteja em paz.

Igor, 20 anos:
Uns choram, alguém grita – minha avó? -, outros comentam sobre o grande caráter de meu pai. Esses cortes de cena são quase tragicômicos. Tento controlar uma vontade histérica de gargalhar e sair apontando erros e incoerências. Todos hipócritas! Poucos serão os que ainda o recordarão no aniversário ou na data de sua morte! Nenhum deles merece sequer estar aqui e meu desejo é expulsá-los aos berros, enxotá-los dessa encenação ridícula. Perderam um conhecido, um colega, um bom médico; eu, no entanto, perdi a pessoa que mais amava. E o que farão disso? Abraços, lamentações, tapinhas nas costas, pêsames, não! Sumam e me deixem em paz junto a seu túmulo.

Rita, 38 anos:
Acorda-se no meio da noite com um telefonema: Fábio está morto. Não. Acorda-se no meio da noite com o telefonema: Fábio se matou. O homem ao lado dorme tranquilo.

***​

Heitor:
Os sinais estavam claros bem na minha frente, mas não consegui ser bom o suficiente para perceber. Da última vez em que vi meu pai, ele estava arrumando vários papéis. Contas, eu acho... Lembro que ele me perguntou como ia a faculdade e eu respondi mal. Minha última frase foi uma farsa: disse “tudo ótimo, pai” e fui embora. Nada vai bem nos estudos, nunca quis ser médico. Ele sabia disso, no fundo. Vivia me dizendo para dar meu máximo, que teria lugar garantido ao seu lado, segurança... O plano já estava feito. Poderia ter me esforçado mais, fazer algo para orgulhá-lo ou, ao menos, tentar conversar sobre aquelas contas que tanto pareciam preocupá-lo. Eu, no entanto, só pensava em mentir.

Gustavo:
A Medicina perde um de seus grandes trabalhadores. Melhor: o mundo perde um de seus mais brilhantes médicos. É preciso gravar algo na história sobre a genialidade deste homem que agora vai para o lado de Deus. O esforço de seu trabalho e pioneirismo não podem ser esquecidos nas gloriosas estradas desta nossa profissão. Foi homem, médico, marido, pai e, sobretudo, um amigo querido. No céu em festa, há de olhar por nós.

Laura:
É difícil explicar, buscar motivos, esmiuçar o passado. Éramos felizes. Em todos esses anos de casamento, acordou-me com um versinho romântico ao pé do ouvido. Às vezes era em italiano, francês – até russo, uma vez. Barbeava-se sempre cantando alguma música do rádio e eu me perguntava como conseguia saber a letra de todas essas canções adolescentes. Transmitia alegria e tranquilidade por onde passava, era a sua marca. Faria certamente uma piada sobre esta situação. Talvez isso seja de fato uma comédia. Venha logo me fazer entender, meu amor.

Rita:
Trouxe-me um buquê colorido e um cartão: “Vem comigo viver, Rita, eu te amo demais”. Ficou em pé junto de mim, esperando resposta. Joguei as flores no lixo e parti. Depois, vieram as ligações desesperadas, as mensagens se multiplicando no arquivo do e-mail, as aparições “por coincidência” em restaurantes, em cinemas, em viagens, releituras de sua proposta. Dei-lhe duas madrugadas, um beijo e um adeus. Agora me pergunto como pude deixá-lo ir. Não. Agora me pergunto se não fui eu quem o fez ir.

Mariana:
Perguntaram do quê Fábio havia morrido. Um acidente, dormindo, ataque cardíaco, assassinato, câncer. Não consegui dizer “matou-se”. Soa quase como uma acusação a mim mesma, um atestado de fracasso. Comecei a repetir essa frase em voz alta, algumas vezes em quase sussurro, e tudo fica incompreensível de novo. Sinto-me responsável, culpada e, por mais que tente fugir: envergonhada. Acordo sobressaltada inúmeras vezes pensando se ele terá conseguido perdão por seu ato, se descansará em paz, finalmente.

Igor:
Sou ateu, descrente e não confio em nenhuma pessoa. Todos estão com olheiras, marcas de noites em lágrimas, mas me pergunto seriamente quantos deles realmente se dispuseram a conhecer de fato meu pai. Nós somos culpados pelo que aconteceu e disso não se pode fugir. Eu em especial. Não admito minhas falhas morais por autopiedade, pelo contrário: quero sofrer cada segundo de dor que lhe causei – o que nenhum desses têm coragem de dizer. Era – como é difícil usar o passado – um homem. Sim, um homem admirável, seguro e determinado. Ninguém se mostrou tão exemplar e tão forte no dia a dia. Admirei-o tanto e, louco, passei a segui-lo, espiá-lo – desejá-lo enormemente. Matei-o.

***​

Gustavo:
Um dos poucos defeitos de Fábio consistia em sua frieza, literalmente, cirúrgica. Não costumava se emocionar com qualquer paciente e até mesmos os casos mais trágicos pareciam corriqueiros sob sua ótica. Não se pode dizer, porém, que se tratava de um homem insensível: apenas se controlava. Tenho refletido bastante sobre suas últimas ações e uma não me sai da cabeça. Na penúltima semana de vida, entrei em sua sala sem bater, sem querer, e o peguei chorando. As mãos tremiam um exame e chegava a soluçar. Viu-me e se recompôs imediatamente. Tangenciou minhas perguntas, dizendo que se tratava de alguém muito querido. Desconfiei, é claro, mas não levei a frente, afinal, ele tinha seus mistérios. Hoje, suspeito de que tenha dado cabo à vida para ela não lhe destruir.

Mariana:
A casa está vazia e não há o que esperar do amanhã. Inclino a cabeça e enxergo apenas o passado. Consolo-me de ter presenciado momentos belos com meu filho. Quanto mais penso, entretanto, mais questiono se sua alma estará em sofrimento. Por que não me perguntei isso antes? Mas não, não, já é tarde demais: ninguém virá no domingo.

Igor:
Os pesadelos me perseguem e me deixo encontrar. Desejo ser castigado – é impossível continuar a viver sem justiça, ainda que seja eu o culpado. Aos poucos, vejo imagens repetidas e delírios me assaltam seguidamente. Luto, corro, enfrento, grito! – em vão. Minha mente insiste em me surpreender e, apesar desses sentimentos serem antigos, agora cria tudo ainda mais exagerado. Algo em mim sussurra a fazer o mesmo que meu pai e essa opção me alivia. Se antes era considerado uma pessoa instável, agora me veem como louco desvairado. Assusto? Assim está bem – encontrei minha camisa de força.

Rita:
Meu marido pergunta por que estou chorando. Repito a história de que um amigo morreu recentemente. “Ainda por isso?” Sim. Fábio costumava me dizer que insistiria até eu dizer “sim” e fugir com ele. Parecia um adolescente bobo, revoltado sem motivo e cheio de pequenos romances. Poucas vezes o levei a sério, devo confessar. Achava que estava simplesmente gracejando, colocando à prova seu charme. Neguei-o em tudo, até ele me ameaçar dizendo que contaria a meu marido da minha suposta traição. Cedi, sem escolha.

Laura:
Seu rosto estampava as marcas de algo que não ia bem. Pequenas rugas se formavam por toda a testa, olheiras profundas surgiram por causa de sua insônia e cheirava a cigarro e perfume barato. Pouco buscava meu corpo durante as noites e, quando assim fazia, falhava. No outro dia, porém, estava animado, cheio de carinho. E assim fomos por meses, uma manhã sempre compensando a terrível madrugada: culpa do estresse no trabalho, dizia. A resposta em nada me tranquilizava, então, insisti. Foi aí que ele me bateu pela primeira vez.

Heitor:
Estávamos sozinho em casa: meu pai no escritório e eu no quarto, escrevendo letra de música. Marcava o ritmo com as mãos e não pensava em mais nada além daquilo. Súbito, ouvi o barulho da arma disparando e, pela primeira vez na vida, o mundo existiu de verdade. Desci as escadas com pressa e encontrei seu corpo deitado em uma poça pulsante de sangue que escorria pela cabeça. Acredito que ainda conseguiu me ver chegar até ali e isso torna tudo pior. Deveria saber como agir, afinal, fazia faculdade de Medicina, teria um futuro brilhante, médico como ele. Entrei em pânico e me deparei com o buraco da bala acima de sua orelha. A única reação foi tomar seu pulso e constatar que estava morto.

***​

Igor:
Alguns meses antes de se matar, meu pai me chamou para ir à praia. Não fazíamos isso desde, sei lá, criança, sete ou oito anos que eu tinha. Resolvera tirar folga e queria sair comigo, mais ninguém! É claro que comemorei. Já o espreitava há muito tempo e aquela foi a oportunidade de observar seu corpo bem mais de perto. Estava muito bem para sua idade, ainda que a barriga chamasse alguma atenção. Esquecia quem ele era para poder ansiá-lo quase sem controle. Fazia um dia bonito em Copacabana – ou seria Ipanema? Bebemos, nadamos, almoçamos. Não conseguia deixar de olhá-lo dentro da bela sunga preta e ele percebeu. Ouvi poucas palavras desde então – seu silêncio já me culpava.

Laura:
Quis traí-lo, humilhá-lo em frente a todos. Aos poucos, ia detestando cada uma de suas atitudes. Mal conseguia disfarçar da família as marcas no corpo. Pensei em denunciá-lo à polícia, mas aquele era o pai dos meus filhos. Estive a um passo de me entregar completamente para qualquer um só para me vingar. Cheguei a tentar, mas não consegui: sou uma mulher correta. Estou apavorada, pois deixei de amá-lo até na memória.

Heitor:
Mexendo em seu escritório, encontrei uma caixa com meu nome escrito. Lá dentro, meu pai colecionava todos os objetos relacionados a medicina e a mim. Primeiro jaleco, jornal com meu nome na lista dos aprovados no vestibular, estetoscópio de plástico que eu nunca gostei, meu diploma de ensino médio, uma foto pintado após o trote. Sentia orgulho, ainda que demonstrasse mais exigência que carinho. Sinto que morreu antes que pudéssemos nos conhecer de verdade.

Mariana:
Estou sozinha e cheia de culpa. De um jeito ou de outro, permiti que Fábio fosse cruel consigo mesmo daquela forma. Tampei os olhos por ser fraca demais para encarar. Como exigir que ele não fizesse o mesmo? Pensei que superara a fuga do pai facilmente, afinal, nunca foram muito próximos de verdade. Na última conversa que tivemos, porém, perguntou-me bastante sobre ele e para onde eu achava que fora. Menti, temendo que minha vida fosse feita apenas de perdas.

Rita:
Fábio chorava diversas vezes em meu colo. Pedia desculpas por ter me chantageado, justificando-se que se apaixonara desde o instante em que me vira nadar. Acredito até que me seguira para descobrir meu endereço e saber mais sobre mim. Seu jeito invasivo me irritou facilmente, então, rompi qualquer contato. Transformara-se em alguém estranho e inspirava algum medo, não sei ao certo. Dava a sensação de me vigiar, de querer ser meu dono. Disse tudo isso a ele e completei falando que não éramos nada além do físico. Não o amo, não o amo, não o amo, repetia para mim mesma.

Gustavo:
Pesquisei mais a fundo o registro de pacientes daquelas semanas e a marcação de exames. Fábio perdera um único caso: o de um senhor duns setenta anos. A cirurgia não funcionara e o velho morreu no dia seguinte. Não vi erro algum no relatório, mas desconfio de seu modo estranho e por nada ter comentado comigo, seu amigo e, tantas vezes, confidente de casos difíceis. Evitou-me, temendo que eu achasse falhas em sua técnica tão apurada? Já não sou capaz de precisar se, de fato, conduzira mal a situação, até porque ele mesmo fizera o relatório. Por mais honesto e brilhante que fosse, Fábio sabia defender seu lugar dentro do hospital, como quem defende a cabeceira da mesa.

***​

Rita:
Minha última mensagem recebida: “Você vai acabar me matando, Ritinha... Te amo”. O que devo fazer disso? Vejo-o em cada coisa, menor que seja, do meu dia. O pior é constatar, abismada, que os outros continuam vivendo lá fora. Os cinemas atualizaram sua lista de filmes – e o último que vimos já não está mais -, o campeonato de futebol acabou, as pessoas começam a comprar os presentes de Natal, comemoro aniversário de casamento, me deito pensando em você.

Gustavo:
O casamento de Fábio não ia bem, por mais que ele tentasse esconder. Sempre achei Laura uma boa esposa, mas nem sempre estamos certos. Veio até meu consultório, sem meu amigo saber, e quis me beijar, seduzir. Rejeitei-a, assustado, deveria estar fora de si. Prometi manter segredo, embora não saiba o quanto desse dia tenha ficado só entre nós: muitos outros a viram sair desconcertada. Deveria ter sido sincero com Fábio; contado a tentativa para alertá-lo, ajudá-lo, mas me calei. No fundo, estava feliz.

Mariana:
Ligo a televisão, ouço o rádio, procuro nos livros, acesso a internet e por todos os lados há silêncios. Chega-se a um momento na vida em que a única coisa a fazer é colocar tudo na balança e torcer para que os acertos pesem mais. Assim, os recortes da juventude passam vistosos e me dão esperança de ter conseguido – sabe-se lá o quê, mas algo bom, a felicidade quem sabe? Em seguida, porém, vejo-os indo embora, fecho os olhos e tudo continua igual. Ajoelho-me na igreja e peço perdão por ter deixado escapar, por falhar logo onde não podia: como mãe.

Heitor:
Os números simplesmente não batem. Todas as finanças de meu pai iam estranhamente mal, muitos gastos sem motivo fora do país. Um apartamento em Buenos Aires, passagens aéreas pra Argentina, notas de roupas compradas, transferências para contas lá. Pensava em ir embora? Talvez fosse essa sua última forma de se manter vivo, fugir em uma aventura, deixar para trás as chateações. Saber que, ao menos, tentou, alenta. Saber que, assim como eu, pensou em recomeçar, tranquiliza.

Igor:
Matei-o, matei-o, já não posso negar! Manipulei-o várias vezes, oferecendo bebida e misturando coisas aos nossos copos. Mal me falava mais, o que poderia fazer?! Todos os cantos giravam e ele estava lá, eu sei. Ofereceu a mão para que não caísse e me protegeu, quando nada mais parecia real. Deitou-se comigo e pude sentir cada centímetro de seu corpo quente dentro do meu. Fomos à loucura, fomos juntos, fomos bons. Esta cama testemunhou o momento mais místico desta minha existência sem sentido. Ouvia apenas o ritmo de sua respiração nos meus ouvidos, nova linguagem entre nós dois – apenas nossa, sim. Acordei nu, embrulhado no lençol e feliz – ele está morto, ele está morto.

Laura:
Quando descobri a traição, corri para saber quem era aquela mulher. Gravei um por um seus roteiros, cada passinho não fugia aos meus olhos. Estive perto de atropelá-la um dia e sabe-se lá por que não o fiz. Um trapo de gente que me afastava de Fábio, quem sentiria falta? Mais nova, certamente usara isso para atraí-lo. Aceitava qualquer coisa: os tapas, os xingamentos, a falta de amor, as brigas, mas era demais ser trocada por alguém assim, medíocre, sem graça, sem nada. Marquei um encontro com o marido dela e contei toda a verdade. No princípio, não acreditou; depois, me agradeceu.

***​

Laura:
Estou mais feliz agora. Penso, frequentemente: “Esta é a primeira vez em que saio sem Fábio; esta é a primeira vez em que vou ao teatro sem ele; está é a primeira vez que vivo por mim”. Ainda ser nova e amar novamente é uma dádiva e não quero perder esta rara oportunidade. Há um mundo desconhecido me instigando a experimentá-lo e assim vou fazendo, ainda que aos poucos. É engraçado como podemos fazer do fim algo melhor, uma vírgula. Sou capaz de admitir, sem mais medos: o que eu sinto é alívio.

Heitor:
As paisagens mudam vagarosamente lá embaixo: campos, pequenos rios serpenteando, algumas cidades ficando para trás, verde, árvores, quase não há ninguém. O avião balança um pouco e uma moça sorri temerosa ao meu lado. Tem olhos bonitos e me agrada admirá-la. Fala um espanhol muito rápido, do qual me esforço para entender, sem muito sucesso. Sí! Maradona, tango... Sólo esto. No! Por supuesto. Me sinto um bobo e coro, envergonhado. Ela sorri e me diz que eu vou gostar.

Gustavo:
Fábio ficaria feliz em saber que seu melhor amigo será seu substituto no trabalho. Participamos de uma pequena cerimônia em comemoração e eu fiz questão de prestar ainda mais homenagens a sua memória. Chefiara nossa seção com maestria e muita dedicação: a tarefa é grandiosa e aceito, humilde. Sei, no entanto, que tenho a capacidade de repetir seu excelente trabalho e avançar nos pontos deixados soltos após sua partida tão dramática e que tanto nos chocou. Em algum lugar no paraíso, ele aplaude esta decisão.

Igor:
Foram embora, mas eu ainda estou aqui, pai. Sim, essas paredes estão moles, cheias de mofo e rachadura! Pode deixar que eu cuidarei de você, fique tranquilo. Tome um gole, ande, me acompanhe logo. Que homem? Não, não há nenhum aqui, eu juro! A pistola, não lembra? Onde está a sua arma? Assim nos protegemos melhor deles, não é mesmo? Te mataram? Sim, eu sei, todos nós! Merecemos o mesmo destino para apagar nossa vergonha. BANG, BANG, o espelho se quebrou! Calma, não farei nada, estou aqui apenas por você. Venha dormir comigo.

Rita:
Meu marido disse que conheceu Fábio, o “tal amigo”. Completou lamentando que morrera tão de repente, a família sentiria demais... Calei-me. Olho a cidade da varanda: o Rio está iluminado. Milhões de pessoas se encaminham para ver os fogos na praia de Copacabana e isso me deprime. Em poucos minutos, um ano novo virá e de que isso adianta? Procuro no meu corpo um botão de reinício, mas encontro apenas os contornos do toque de Fábio nas minhas curvas. As garrafas de champagne são agitadas ao longo da contagem regressiva. Quantos segundos serão suficientes para eu chegar ao chão? 10, 9, 8, 7, 6, 5, 4, 3, 2, 1... Não tive coragem.

Mariana:
Sinto alguém me acordar, balançando meus braços insistentemente. Não enxergo nada, há pouca luz e meus óculos – onde estão? Levanto e ando pela casa, o coração batendo forte no peito, me chamam. Fábio? – a boca deixa escapar seu nome. De repente, vejo-o e ele sorri ao me ver. É menino outra vez e segura sua merendeira com força nos braços para não deixar escapar. “Você vem, mamãe?”. Apoio as mãos nos móveis, enquanto ando em sua direção. Não consigo tirar os olhos de seu rostinho infantil iluminado com delicadeza. Dou-lhe a mão e o deixo me guiar: viver já valeu a pena.
 

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