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Como não começar um romance

  • Criador do tópico Calib
  • Data de Criação
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Calib

Visitante
Como não começar um romance
13/01/2016
http://todoprosa.com.br/como-nao-comecar-um-romance-2/

As “franjinhas literárias” que foram tema de um post barthesiano aqui no blog – aqueles emblemas de literariedade que nada mais são do que uma manifestação do mau e velho clichê, da linguagem morta ou pelo menos artrítica – podem ser mais ou menos antiquadas. É claro que existem as franjinhas modernosas e até as vanguardistas, pois, nas palavras de Ricardo Piglia, “a modernidade é o grande mito da literatura contemporânea”. Estas são até mais perigosas, por disfarçarem melhor sua cafonice e vaziez. No entanto, é impressionante o número de pessoas que se lançam à aventura de escrever um romance tendo na mira, de forma consciente ou não, um modelo que já era velho há pelo menos cento e cinquenta anos. A franjinha preferida de todas essas é a descrição.

Qualquer um que já tenha sido obrigado – como jurado de um concurso literário, por exemplo – a ler de enfiada um grande lote de romances contemporâneos sabe que, numa fatia em torno de um terço deles (estou chutando, mas não errarei por muito), a narrativa começa com uma longa descrição. Em alguns casos, de fenômenos atmosféricos, num eco certamente involuntário do mais famoso clichê literário da história – a famigerada frase “Era uma noite escura e tempestuosa”, do romancista vitoriano Edward Bulwer-Lytton, que comentei aqui.

Quem começa um romance falando da chuva que cai, caiu há pouco ou ameaça cair em breve deveria ponderar a seca condenação de Elmore Leonard no primeiro conselho de seu famoso decálogo: “Nunca inicie um livro falando do tempo”. Não era só isso que o mestre do romance policial americano morto em 2013 tinha a dizer sobre descrições. Acrescenta ele: “Evite descrições detalhadas dos personagens. Não entre em pormenores demais ao descrever lugares e coisas”.

Tudo isso goza de excelente saúde na produção romanesca de nosso país – sim, inclui-se aí o território amadorístico da autopublicação. Às vezes o pano do romance se abre para revelar o cenário em que vai se desenrolar (mas não ainda, não ainda) a ação: montanhas, vales, rios, casario, história e costumes locais. Ou, quando se busca um foco mais fechado, uma casa com seus mistérios, seus objetos silenciosamente imantados pelo drama das gerações que ali viveram momentos de felicidade e de dor. Outras vezes a descrição se volta, em minúcias, para os personagens principais, e lá vem uma lista de traços fisionômicos, peculiaridades do vestuário e características psicológicas ou morais. Às vezes essas descrições aparecem juntas, enfileiradas.

Se quisermos ser técnicos – e talvez tão antiquados quanto os romances que começam assim – vamos descobrir com Massaud Moisés, em seu Dicionário de termos literários, que as descrições podem ser divididas em categorias como topografia (paisagem), prosopografia (traços exteriores do personagem), etografia (seus valores e costumes) e cronografia (sinais do tempo refletidos na natureza, como a tal noite escura e tempestuosa). Todas essas grafias estão bem representadas na produção romanesca contemporânea. Tudo indica constituírem franjinhas de irresistível apelo para quem, como disse Aldous Huxley, faz suas “primeiras tentativas de ser conscientemente literário”.

Em termos estruturais, pode-se explicar a popularidade da abertura descritiva pela ideia de preâmbulo, ou seja, a necessidade (ingênua) que o autor sente de familiarizar o leitor com cenário e personagens antes de entrar propriamente na história que se dispõe a narrar. Do ponto de vista histórico, é fácil ver que isso corresponde a um modelo romanesco datado do século 19, quando muitos romances de fato começavam assim. Mesmo então, porém, o modelo já mostrava sinais de cansaço. Veja-se a abertura de Um jogador, de Fiodor Dostoievski (ali no alto, um retrato do artista quando jovem), lançado em 1866 (tradução de Boris Schnaiderman):

Finalmente, regressei, após duas semanas de ausência. Havia três dias já que a nossa gente estava em Roletenburgo. Pensei que me esperassem, sabe Deus com que ansiedade, mas enganei-me. O general tinha um ar muito independente, falou comigo de modo altivo e ordenou-me que fosse ver a sua irmã. Era evidente que haviam conseguido dinheiro em alguma parte. Tive, mesmo, a impressão de que o general se encabulava um pouco na minha presença. Mária Filípovna estava numa azáfama fora do comum e falou comigo ligeiramente; todavia, aceitou o dinheiro, conferiu-o e ouviu todo o meu relatório. Para o jantar, esperavam Miézientzov, o francesinho e ainda um certo inglês: como de costume, mal se consegue dinheiro, dá-se um jantar pomposo, à moda moscovita. Apenas me viu, Polina Aleksândrovna perguntou por que demorara tanto a voltar e, sem aguardar resposta, retirou-se. Naturalmente, agiu assim de propósito. No entanto, tínhamos que nos explicar. Muitos fatos se acumularam nesse ínterim.

Muitos fatos, sem dúvida: ação pura, personagens desconhecidos entrando e saindo de cena, referências a um passado nebuloso, uma tensão absurdamente… moderna, pois é. Fatos demais, talvez? Essa abertura é provavelmente aquela que usa de forma mais radical e perturbadora, em toda a história do romance, o velho recurso da poesia épica que os latinos chamavam in medias res: o de lançar o leitor no meio da ação, deixando-o momentaneamente confuso – e intrigado, instigado, inquieto – para em seguida, aos poucos e de preferência sem pressa, ir preenchendo as lacunas da sua compreensão.

Não se deve tomar nada do que foi dito acima como condenação sumária da descrição. Além de não existir prosa de ficção sem alguma dimensão descritiva, uma das poucas leis que conheço para a criação literária é a de que recursos gastos por autores medíocres estão sempre à espera de que autores de gênio os resgatem e revalorizem. No entanto, ressalvados casos excepcionais que sempre serão exceções a confirmar a regra, abrir um romance com um grande bloco expositivo sobre uma realidade estática – em outras palavras, privilegiar o ser sobre o suceder – é, hoje mais do que nunca, o mesmo que convidar o leitor a fechar o livro e sair em busca de alguma coisa mais viva.
 
Muitos fatos, sem dúvida: ação pura, personagens desconhecidos entrando e saindo de cena, referências a um passado nebuloso, uma tensão absurdamente… moderna, pois é. Fatos demais, talvez? Essa abertura é provavelmente aquela que usa de forma mais radical e perturbadora, em toda a história do romance, o velho recurso da poesia épica que os latinos chamavam in medias res: o de lançar o leitor no meio da ação, deixando-o momentaneamente confuso – e intrigado, instigado, inquieto – para em seguida, aos poucos e de preferência sem pressa, ir preenchendo as lacunas da sua compreensão.

Muito bom!
Quer escrever uma história épica e violenta? Inicie com dois personagens num duelo épico e quanto mais tempo demorar para o leitor saber qual dos dois é o herói da história, melhor.
 
Encontrei por acaso este velho tópico, que eu tinha aberto e já dele esquecido, e reli o texto do Sergio Rodrigues com renovado deleite. Indico.

:bump:
 

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