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Como a Direita Abusa de Tolkien

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Este texto de Alex Skopic na revista Current Affairs analisa como figuras da extrema direita, como JD Vance e Peter Thiel, têm reinterpretado e distorcido as obras de J.R.R. Tolkien para justificar ideologias autoritárias e capitalistas, mesclando elementos de seus mundos de fantasia com práticas de vigilância e acumulação de poder. O artigo critica a apropriação dos símbolos de Tolkien, como a Palantir e o Anel de Poder, enfatizando que ele, embora suscetível a certas falhas, defendia ideias contrárias à busca de poder e riqueza desmedida. O autor sugere que essas interpretações falham em capturar a essência moral das obras de Tolkien, que alertam contra a corrupção do poder.

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Nos anais da literatura inglesa, certas críticas deixaram marcas duradouras. Uma das mais memoráveis veio do roteirista e cartunista John Rogers, que comparou J.R.R. Tolkien e Ayn Rand da seguinte maneira:

“Existem dois romances que podem mudar a vida de um jovem de 14 anos apaixonado por livros: O Senhor dos Anéis e A Revolta de Atlas. Um é uma fantasia infantil que frequentemente gera uma obsessão ao longo da vida por seus heróis inacreditáveis, levando a uma vida adulta emocionalmente atrofiada e socialmente incapaz de lidar com o mundo real. O outro, é claro, envolve orcs.”
Quando Rogers escreveu isso em 2009, ele não sabia que estava antecipando as obsessões da extrema direita política dos dias atuais. De JD Vance a Peter Thiel e Curtis Yarvin, agora lidamos com uma geração de reacionários que fundem o pior dos dois mundos literários: Tolkien e Rand.

Como os heróis sociopatas de Ayn Rand, acreditam que capitalistas ricos devem governar o mundo e desprezam conceitos como igualdade e democracia. Mas também se apropriaram do universo fantástico de Tolkien como referência cultural—vendo nele um reflexo de sua própria visão de mundo. Eles nomeiam seus fundos de investimento e empresas de vigilância, como a Palantir de Thiel, inspirados em artefatos mágicos dos livros de Tolkien, e recorrem a metáforas longas e tortuosas sobre elfos para explicar suas estratégias de guerra cultural.

No entanto, como frequentemente ocorre na política de direita, eles interpretam erroneamente as obras de arte que afirmam amar. Apesar das falhas notáveis em sua própria política, é improvável que J.R.R. Tolkien tivesse qualquer apreço ou respeito por oligarcas, mercenários da guerra ou seus aliados. Na verdade, toda a mitologia de Tolkien alerta precisamente contra o tipo de política obcecada pelo poder que esses grupos promovem.

Para entender o tipo de caldo ideológico que estamos lidando aqui, basta observar a história do fundo de capital de risco do vice-presidente JD Vance. Em 2019, Vance ainda não era um político nacional. Ele era apenas o autor do best-seller Hillbilly Elegy e uma presença constante na mídia liberal, onde suas supostas análises sobre a “classe trabalhadora branca” eram muito requisitadas. Mas Vance tinha ambições maiores e começou a estabelecer conexões com pessoas mais ricas, poderosas e influentes do que ele próprio. Assim, ele criou uma empresa de capital de risco chamada Narya Capital.

Para a maioria das pessoas, “Narya” pode parecer um nome corporativo arbitrário. Para críticos liberais como Rachel Maddow, da MSNBC, levantou suspeitas de que ele apenas rearranjou a palavra “Aryan” (ariano) e deslocou o “N”. Mas, na realidade, o nome vem de Tolkien. Em O Senhor dos Anéis, Narya é o Anel de Fogo, um dos três anéis mágicos criados pelo artesão élfico Celebrimbor. Embora não seja o Um Anel, ainda é um poderoso artefato mágico. O objetivo declarado do fundo de Vance era investir em “lugares frequentemente ignorados”, como aqueles descritos em Hillbilly Elegy—levando capital de risco além dos mercados tradicionais da Califórnia e de Nova York e ajudando empreendedores de regiões como a Carolina do Norte. No entanto, o nome Narya revela que Vance via o fundo como seu próprio Anel do Poder, permitindo-lhe exercer influência no mundo, e foi exatamente assim que ele o utilizou.

Uma grande parte dos US$ 93 milhões iniciais do fundo veio de Peter Thiel, o infame bilionário de direita que mais tarde se tornaria o principal financiador da campanha de Vance para o Senado em 2022. Outros investimentos vieram de Marc Andreessen, outro bilionário do círculo de Thiel, cujo desprezo pelo Americano médio ficou evidente em declarações como: “Fico feliz que haja OxyContin e videogames para manter essas pessoas quietas.” Mais dinheiro veio de Vivek Ramaswamy, colega de Vance na Faculdade de Direito de Yale. Por sua vez, o fundo Narya não investiu exatamente em aspirantes de comunidades rurais que só precisavam de uma oportunidade. De acordo com o Business Insider, o fundo destinou grandes somas para:

  • Uma empresa de terapia genética fundada pelo irmão de Vivek Ramaswamy (coincidência?),
  • Um aplicativo católico de meditação e oração, chamado Hallow,
  • Rumble, uma alternativa de direita ao YouTube conhecida por hospedar figuras controversas como Andrew Tate, Russell Brand e outros indivíduos acusados de crimes sexuais e racismo.
O único projeto que tinha alguma conexão plausível com comunidades rurais—AppHarvest, uma startup que desenvolvia estufas autônomas de alta tecnologia—faliu após apenas alguns anos. Portanto, parece que o foco principal do Narya Capital não era a filantropia, como foi inicialmente promovido pela imprensa. Em vez disso, Vance usou o fundo para fortalecer projetos conservadores baseados em tecnologia e para se conectar ao crescente movimento techno-right. E deu certo—tanto que a mesma rede de bilionários ajudou a impulsioná-lo até a Casa Branca apenas cinco anos depois.

O catolicismo de direita, em particular, explica bastante a afinidade de Vance com Tolkien. De acordo com sua própria narrativa, Vance se converteu ao catolicismo em 2019, no mesmo ano em que fundou o Narya Capital. Hoje, ele se identifica como um católico “tradicionalista” ou “pós-liberal“, ou seja, um católico agressivamente conservador, contrário a reformas progressistas e à inclusão de grupos marginalizados, como católicos LGBTQ—a ponto de o falecido Papa Francisco ter tido que repreendê-lo sobre a importância da compaixão aos imigrantes.

Na prática, a vertente conservadora do catolicismo que Vance adota significa que ele defende a proibição da pornografia e do aborto e atribui a epidemia de tiroteios em massa nos EUA à “cultura da ausência paterna”, em vez da ampla disponibilidade de armas de fogo. É uma fusão autoritária e restritiva entre religião e política, diametralmente oposta à teologia da libertação, deixando pouco espaço para nuances ou tolerância. Como o próprio Vance declara:

“Acredito que o diabo é real e que ele causa coisas terríveis em nossa sociedade.”
Historicamente, essa é uma visão de mundo que levou a cruzadas e caças às bruxas—e ela encontra um paralelo no universo de Tolkien, que descreve uma guerra contra o mal absoluto, representado pelo Senhor do Escuro Sauron, uma figura literária análoga a Satanás. Tolkien também era um católico devoto, e Vance afirma que

“grande parte da minha visão de mundo conservadora foi influenciada por Tolkien quando eu era criança.”
Por sua vez, o estudioso católico Luke Burgis acredita que Vance adotou uma mentalidade apocalíptica ao interpretar O Senhor dos Anéis, talvez vendo-se como protagonista de uma última e definitiva batalha entre o bem e o mal, como os heróis de Tolkien. Se for esse o caso, trata-se de uma perspectiva extremamente preocupante para um líder político. Isso se reflete em declarações recentes de Vance, como quando ele respondeu “excelente” ao ser informado por mensagem que um ataque aéreo dos EUA havia destruído um prédio residencial inteiro na tentativa de eliminar um único engenheiro de mísseis iemenita. Se você acredita em direitos humanos e na legislação internacional, essa resposta é chocante. Mas se você vê o mundo em termos de Senhores do Escuro e guerreiros nobres lutando contra eles, isso pode parecer perfeitamente aceitável.

Por si só, JD Vance tem interesse limitado. O verdadeiro éminence grise sempre foi Peter Thiel, que, de fato, moldou Vance como o conhecemos hoje. Foi Thiel quem deu a Vance seu primeiro emprego no setor financeiro em 2016, no fundo Mithril Capital, avaliado em US$ 850 milhões. A posição parece ter sido mais um cargo simbólico do que um trabalho real. Segundo colegas que falaram anonimamente ao Wall Street Journal em 2024, Vance raramente aparecia no escritório e passava grande parte do tempo viajando para promover Hillbilly Elegy, em vez de atuar diretamente em investimentos. Mas sua passagem por Mithril lhe permitiu cultivar a imagem de empresário bem-sucedido, algo que mais tarde o beneficiaria na carreira política.

Assim como Narya, Mithril tem um nome inspirado em Tolkien—em O Senhor dos Anéis, mithril é um metal precioso que os anões extraem das montanhas de Moria. A empresa parece ter servido como um modelo para o funcionamento do Narya Capital, com Vance basicamente replicando o negócio de Thiel em menor escala. Como vimos, Thiel também financiou parte do Narya, patrocinou a campanha de Vance para o Senado e até o apresentou a Donald Trump em 2021, preparando o terreno para que, mais tarde, Vance se tornasse vice-presidente. Em um grau perturbador, Vance funciona como um representante de Thiel e sua porta de entrada para o poder político—e a ideologia de Thiel é do tipo que não deveria ter influência em lugar nenhum.

Há um certo debate sobre se Peter Thiel pode ser considerado um fascista. No passado, ele afirmou ser apenas um libertário, mas isso não significa muita coisa. Economistas como Ludwig von Mises e Friedrich Hayek também eram libertários, e ambos apoiaram ditadores fascistas em momentos distintos—Mussolini, no caso de von Mises, e Pinochet, no caso de Hayek. O biógrafo de Thiel, Max Chafkin, descreve a visão de mundo do bilionário como uma combinação de obsessão pelo progresso tecnológico e política nacionalista, uma política que, em certos momentos, parece ter flertado com a supremacia branca. Em seu blog Unpopular Front, o escritor John Ganz argumenta que isso soa muito parecido com fascismo. E, na realidade, não se trata apenas de um “flerte” com a supremacia branca, mas de um verdadeiro caso de amor.

Curiosamente, Peter Thiel cresceu na África do Sul sob o regime do apartheid e na Namíbia (anteriormente chamada Sudoeste Africano). Lá, ele estudou em uma escola de língua alemã na cidade de Swakopmund, que, segundo o Guardian, era “notória por sua contínua glorificação do nazismo, incluindo celebrações do aniversário de Hitler” até meados da década de 1970. Publicamente, Thiel afirma que não gostava da rigidez das escolas locais e que isso o levou ao libertarianismo. No entanto, pessoas que o conheceram pessoalmente contam uma história diferente. Em um post de blog de 2016, a autora Julie Lythcott-Haims—ex-colega de Thiel em Stanford—lembra-se de ter ouvido rumores de que ele defendia o apartheid durante o primeiro ano da universidade e de ter o confrontado sobre isso:

Ele disse, sem qualquer expressão facial, que o apartheid era um sistema econômico sólido e eficiente, e que questões morais eram irrelevantes. Ele não fez nenhum esforço para reconhecer o impacto emocional que a própria ideia de apartheid poderia causar em mim, uma mulher negra. Não é preciso dizer que o arrepio na minha espinha não desapareceu naquele dia; na verdade, meu medo só aumentou ao perceber que eu estava convivendo com alguém que parecia indiferente ao sofrimento humano—ou que acreditava que oprimir populações inteiras era um elemento racional e justificável de um sistema de governo.
Mais recentemente, Peter Thiel declarou que “já não acredita que liberdade e democracia sejam compatíveis”, pois “beneficiários de programas sociais e a extensão do direito de voto às mulheres” transformaram o conceito de “democracia capitalista” em um oxímoro. Em sua visão, as pessoas erradas estão votando. Thiel também elogiou as ideias do teórico político nazista Carl Schmitt, dizendo que vê “paralelos nos EUA dos anos 2020 com a Alemanha dos anos 1920, onde o liberalismo está exausto. Suspeita-se [que] a democracia, seja lá o que isso signifique, está exausta.” De forma absurda, ele ainda utilizou uma analogia com Tolkien para expressar simpatia pelo nazismo, comparando a sociedade da República de Weimar aos “anões em Moria, que cavaram fundo demais e acabaram despertando o terror sem nome”. A implicação é que, se os alemães de Weimar não tivessem levado seu liberalismo decadente longe demais, não teria havido uma tomada do poder pelos nazistas—assim como o Balrog demoníaco em O Senhor dos Anéis não teria despertado e devorado os anões se eles não tivessem sido ambiciosos demais em sua mineração. Essa é uma forma nada sutil de culpar as vítimas—especialmente porque alguns críticos já compararam os anões de Tolkien, baixos, barbados e obcecados por ouro, às caricaturas antissemitas do século XX. Essa analogia fica a um passo de sugerir que Hitler tinha razão.

Em termos de seus empreendimentos comerciais, Mithril Capital não é a única empresa da carteira de Peter Thiel com referências a Tolkien. Seguindo a “obsessão pelo progresso tecnológico” que Chafkin mencionou, Thiel está profundamente envolvido com tecnologias de vigilância e armamento, e seu projeto parece girar em torno de acumular o máximo de dinheiro e poder possível. Sua empresa principal é a Palantir Technologies, batizada com o nome de um tipo de orbe encantado que o mago Saruman usa para espionar personagens em O Senhor dos Anéis. Assim como seu equivalente fictício, a Palantir se especializa em vigilância, análise de dados e rastreamento. No momento em que este texto foi escrito, a Palantir havia acabado de ganhar um contrato de US$ 30 milhões com o Immigration and Customs Enforcement (ICE) para desenvolver um modelo de inteligência artificial capaz de rastrear imigrantes para deportação. Além disso, a empresa também possui uma “parceria estratégica” para fornecer tecnologia a Israel, destinada a uso na Faixa de Gaza. Isso inclui “sistemas de policiamento preditivo baseados em IA”, permitindo que as Forças de Defesa de Israel (IDF) prendam palestinos antes que tenham cometido qualquer crime, com base apenas na previsão da inteligência artificial de que eles poderiam fazê-lo. Ah, e o líder do escritório da empresa em Londres é Louis Mosley, neto de Oswald Mosley, fundador e líder da União Britânica de Fascistas nos anos 1930. Bem, essa é certamente uma escolha.

Toda essa situação parece sinistramente caricata—e isso antes mesmo de entrarmos na Anduril Industries. A empresa é uma fabricante de armas, batizada com o nome da espada Andúril nos livros de Tolkien—uma arma especial empunhada por reis, incluindo Isildur e seu descendente Aragorn (interpretado com maestria por Viggo Mortensen nas adaptações cinematográficas). Entre seus produtos, a Anduril fabrica:

Assim como a Palantir, muitos dos produtos da Anduril incorporam elementos de inteligência artificial. Um de seus objetivos principais parece ser criar enxames autônomos de drones, capazes de voar em sincronia e sobrecarregar sistemas de defesa aérea, tornando o processo de combate mais eficiente. Tecnicamente, Peter Thiel não fundou essa empresa—o responsável foi Palmer Luckey, que, assim como JD Vance, é um de seus discípulos. No entanto, o New York Times aponta que Luckey recebeu financiamento inicial do Founders Fund, outra firma de capital de risco cofundada por Thiel. Além disso, o fundo continua injetando bilhões na Anduril, tornando-a parte integral de seu império corporativo. A empresa também chamou a atenção do grupo Veterans for Peace, que tem protestado contra a construção de uma fábrica de drones de US$ 900 milhões em Ohio, estado onde JD Vance tem forte influência política

Thiel está envolvido em várias outras empresas menos conhecidas com temas inspirados em Tolkien, e o jornalista Paris Marx compilou uma lista detalhada. Há a Valar Ventures, mais um fundo de startups nomeado em homenagem aos deuses do universo de Tolkien, além de outros dois fundos de capital de risco chamados Rivendell, uma cidade élfica, e Lembas, um tipo de pão mágico. Segundo Marx, a última empresa financiou uma série de startups de alimentos e blockchain que aparentemente já estão inativas. (Ainda estou esperando pacientemente para que minha comida esteja na blockchain). Existe também a Athelas, que busca integrar mais inteligência artificial na indústria da saúde e foi nomeada em homenagem a uma planta medicinal fictícia. Um dos principais investidores é Garry Tan, associado de Thiel. E, claro, há o Founders Fund de Thiel, que ele supostamente chama de “o precioso” em reuniões privadas, da mesma forma que Gollum se refere ao Um Anel. A obsessão de Thiel por Tolkien também aparece em seu projeto mais estranho: suas tentativas de prolongar a própria vida, que o levaram a explorar transfusões de sangue de pessoas mais jovens. Em uma entrevista de 2023 à Atlantic, ele comparou essa busca à imortalidade no universo de Tolkien, perguntando: “Por que não podemos ser elfos?” Para alguém com seu ego e ambições desproporcionais, as limitações da espécie humana são simplesmente inaceitáveis; ele quer transcendê-las e se tornar um ser sobrenatural, embora “vampiro” pareça uma comparação mais apropriada do que “elfo.”

Falando em elfos, não podemos mais evitar discutir Curtis Yarvin (pseudônimo Mencius Moldbug). Autodenominado “neorreacionário” e “monarquista“, Yarvin é uma influência intelectual central nessa esfera tecnocrática de extrema direita. JD Vance já o mencionou em entrevistas, e, em 2012, Yarvin apresentou uma proposta chamada “Retire All Government Employees” (RAGE), que parece ter servido de modelo para os futuros discursos de Vance pedindo para “demitir todos os burocratas de nível médio, todos os servidores civis do Estado administrativo” e “substituí-los por nossos próprios aliados”. Para Yarvin, o RAGE é apenas o primeiro passo de um plano para desmantelar a democracia nos EUA e substituí-la por uma monarquia corporativa:

Você precisa de um CEO. E um CEO nacional é o que se chama de ditador. Não há diferença entre um CEO e um ditador. Se os americanos quiserem mudar seu governo, terão que superar sua fobia de ditadores.
Assim como Vance, tanto Peter Thiel quanto Marc Andreessen já citaram o trabalho de Yarvin com aprovação, embora sejam sempre um pouco evasivos sobre quais de suas muitas declarações provocativas eles realmente apreciam. Na biografia de Thiel, Chafkin o descreve como o “filósofo político particular” do bilionário. E, como você provavelmente pode deduzir pelo fato de que ele costumava blogar sob o pseudônimo “Mencius Moldbug”, Yarvin é um grande dork que frequentemente recheia sua prosa prolixa com metáforas de Tolkien.

Em um blog post particularmente constrangedor de 2022, Curtis Yarvin criou uma analogia estendida entre diferentes criaturas mágicas da Terra Média e o que ele imagina serem as facções da atual guerra cultural nos Estados Unidos. Segundo Yarvin, os conservadores da base republicana seriam como hobbits, que “só querem ser governados de maneira sensata, de um jeito que faça sentido para hobbits.” Já os liberais seriam como elfos, que “usam o poder político para impor a cultura élfica” sobre os hobbits. (Essa é uma referência indireta à crença de Yarvin de que praticamente todas as instituições foram capturadas por uma “Catedral” de ortodoxia esquerdista sufocante, um tema que ele explora em muitos de seus extremamente longos textos de blog). Contudo, de acordo com Yarvin, os hobbits são estruturalmente incapazes de assumir o poder por conta própria—eles “sempre serão governados por elfos”, e isso é “normal e aceitável, porque essa é simplesmente a ordem natural das coisas”. Portanto, segundo ele, a única maneira de os conservadores vencerem a guerra cultural seria entregar “poder absoluto” aos “elfos negros” como ele próprio—ou seja, intelectuais reacionários que defendem um “regime pró-hobbit” para substituir o liberalismo. Os elfos negros, afirma Yarvin, “se tornarão e permanecerão influentes em círculos restritos,” até “estabelecerem domínio cultural” ,“seduzindo os elfos governantes a perderem a fé em suas próprias instituições prestigiadas” para então “governar o futuro.” É uma metáfora longa e confusa, e eu a simplifiquei para torná-la minimamente inteligível. Mas, no fim das contas, trata-se de uma interpretação tolkieniana da agenda de Yarvin, Thiel e Vance—desmantelar instituições liberais, semear dúvidas sobre o conceito de democracia e construir um regime alternativo de direita.

O problema é que, para fazer sua metáfora estúpida com elfos, Yarvin precisa distorcer completamente a mitologia de Tolkien. Para começar, hobbits e elfos se dão bem em O Senhor dos Anéis; eles não estão em conflito. Além disso, não existe nada como um “elfo negro” nos escritos de Tolkien. Esse conceito aparece apenas em romances e jogos de fantasia posteriores, como Dungeons & Dragons, de Gary Gygax (onde são chamados de drows) e a longa série Forgotten Realms, de R.A. Salvatore. E, quando aparecem na literatura de fantasia, os elfos negros são quase sempre vilões. No universo de Salvatore, eles veneram uma deusa-aranha maléfica chamada Lolth e vivem em uma sinistra cidade subterrânea chamada Menzoberranzan, que basicamente funciona como um “inferno dos elfos”. O único personagem heroico desse grupo é Drizzt Do’Urden (sim, esse é o nome dele), e ele só é simpático porque rejeita os costumes sombrios de seus companheiros elfos negros e foge para viver na superfície. Então, o que Yarvin fez aqui foi pegar uma das obras literárias mais óbvias já escritas e declarar em voz alta: “Sabem aqueles personagens exageradamente malignos? Sou como eles!” E ele não é o único. Peter Thiel, por exemplo, diz preferir Sauron e o reino de Mordor entre todas as terras fictícias de Tolkien, alegando que “Fora de Mordor, tudo é meio místico e ambiental, e nada funciona.” Mas ele está errado sobre Mordor “funcionar”. É verdade que o reino tem um grande e impressionante exército de goblins, mas Tolkien sempre o descreve como um deserto sombrio repleto de monstros e vulcões, um lugar a ser evitado a todo custo. Para Tolkien, veterano da Primeira Guerra Mundial, a mensagem era clara: uma sociedade dedicada exclusivamente à guerra e destruição é algo terrível. Aparentemente, esse ponto passou despercebido por Thiel.

Superficialmente, é compreensível por que a extrema direita americana pode acreditar que encontrou um espírito afim em Tolkien. Afinal, O Senhor dos Anéis é essencialmente uma fantasia monarquista sobre um rei nobre retornando para resolver todos os problemas do mundo. Os conceitos de poder hereditário e virtude são praticamente fetichizados. Aragorn, que secretamente é o herdeiro do trono de Gondor, pode curar ferimentos de batalha apenas com seu toque e comandar um exército de fantasmas simplesmente porque tem sangue real em suas veias. A democracia, como conceito, simplesmente não entra na equação. Os livros também contêm elementos de racismo arcaico. O mundo da Terra Média apresenta raças de criaturas rigidamente definidas, com algumas sendo inerentemente “boas” e outras “más”. Elfos e anões são considerados bons (embora possam ter falhas como orgulho e ganância), enquanto orcs e goblins são sempre malignos e aptos apenas para serem exterminados. Os humanos são a única raça moralmente ambígua—mas, mesmo assim, é notável que os bons costumam ser descritos com frases como “seus cabelos são dourados e brilhantes são suas lanças. Seu líder é muito alto”, enquanto os vilões são descritos com termos como “moreno, de olhos oblíquos” ou até mesmo “homens negros como meio-trolls”. Esse conteúdo problemático levou o romancista marxista China Miéville a descrever Tolkien como “o tumor na bunda da literatura fantástica”, criticando seu “amor tacanho e reacionário por status-quos hierárquicos”. Uma avaliação dura, mas não completamente infundada.

No entanto, a questão é mais complexa do que parece. Embora haja elementos reacionários e racistas na obra de Tolkien, também há aspectos que vão na direção oposta. Notavelmente, a Sociedade do Anel é uma coalizão multiétnica de heróis, e o universo expandido de Tolkien apresenta um romance interracial fundamental entre o guerreiro humano Beren e a princesa élfica Lúthien. No mundo real, Tolkien também demonstrou uma postura mais hostil ao racismo do que suas descrições de vilões “escuros” podem sugerir. Assim como Peter Thiel, ele passou parte de sua infância na África do Sul—mas, ao refletir sobre o sistema de governo do país em um discurso de despedida na Universidade de Oxford, ele disse o seguinte:

É claro que existem outras terras sob o Cruzeiro do Sul. Nasci em uma delas, embora não afirme ser o mais erudito entre aqueles que vieram do extremo do Continente Negro. Mas tenho o ódio ao apartheid enraizado em meus ossos; e, acima de tudo, detesto a segregação ou separação da Língua e da Literatura. Não me importa qual delas você considera Branca.
O uso do termo “Continente Negro” pode causar desconforto hoje, mas é claramente uma declaração contra o apartheid—algo que Peter Thiel nunca conseguiu expressar décadas depois. Em outro momento, Tolkien escreveu em uma carta para seu filho Christopher: “Não conheço nada sobre o imperialismo britânico ou americano no Extremo Oriente que não me encha de arrependimento e desgosto.” Ele também ficou horrorizado com o desenvolvimento da bomba nuclear e das armas modernas em geral:

A absoluta insensatez desses físicos lunáticos ao consentirem em realizar tal trabalho para fins de guerra: planejando calmamente a destruição do mundo! Explosivos desse tipo nas mãos dos homens, enquanto seu status moral e intelectual está em declínio, são tão úteis quanto distribuir armas de fogo a todos os presidiários e depois dizer que espera que “isso garanta a paz.”
Essa última passagem, de outra carta para Christopher, é especialmente marcante porque Tolkien está condenando exatamente a indústria de armamentos que figuras como Thiel e Vance agora defendem. Com o velho J.R.R. enterrado desde 1973, não há como ter certeza, mas parece provável que ele ficaria profundamente perturbado ao ver as palavras “Andúril” ou “Palantír” gravadas em um míssil de cruzeiro ou em um sistema de mira por inteligência artificial.

Em outras cartas, Tolkien escreveu:

“Minhas opiniões políticas tendem cada vez mais para a anarquia (compreendida filosoficamente, significando a abolição do controle, não homens bigodudos com bombas)—ou para a ‘monarquia inconstitucional’.”
Essa afirmação é claramente contraditória e excêntrica, e estudiosos da literatura passaram décadas debatendo exatamente o que ele quis dizer com isso. Mas encontramos uma pista algumas frases depois, quando Tolkien escreve:

“O trabalho mais inadequado para qualquer homem, até mesmo santos (que, de qualquer forma, estavam pelo menos relutantes em assumi-lo), é mandar em outros homens. Nenhum em um milhão é apto para isso, e menos ainda aqueles que buscam essa oportunidade.”
Isso pode sugerir que Tolkien gostava da ideia de uma “monarquia inconstitucional” em teoria—caso um rei puramente benevolente, como seu fictício Aragorn, pudesse ser encontrado. No entanto, ele não confiava em nenhum líder real para desempenhar esse papel, e por isso preferia a anarquia e a “abolição do controle” como um mal menor. (Outros leitores certamente terão interpretações diferentes). De qualquer forma, a parte sobre “aqueles que buscam a oportunidade” de exercer poder serem os menos aptos para isso parece uma clara crítica a figuras como Thiel, Vance e Yarvin, cujas vidas parecem inteiramente dedicadas a acumular riqueza e influência. Na verdade, essa pode ser considerada a base moral de toda a mitologia de Tolkien.

É especialmente irônico, para quem conhece os detalhes da Terra Média, que Peter Thiel tenha escolhido nomear sua empresa de vigilância como “Palantir”. Em O Senhor dos Anéis, um palantír não é algo bom de se possuir. Na verdade, quase todos que entram em contato com um acabam amaldiçoados e levados à destruição por sua influência. O primeiro exemplo é o mago Saruman, que originalmente era um sábio aliado dos elfos e de seu colega Gandalf, mas eventualmente se corrompe, levanta seu próprio exército de orcs e se torna uma espécie de mini-Sauron. (Saruman? Sauron-man? Pegou a referência?) O ponto de virada em sua queda moral acontece quando ele, por arrogância, decide começar a usar um palantír—apenas para descobrir que:

  • A) Ele gosta da ideia de espionar quem quiser e passa a desejar ainda mais poder;
  • B) Ele está agora em contato direto com a mente de Sauron, que também tem um palantír e o convence a se aliar a Mordor.
Depois há Denethor, o governante humano do reino de Gondor. Como Saruman, ele consegue um palantír e decide começar a se envolver com vigilância em massa. Mas seu destino é um pouco diferente: ele fica tão aterrorizado com visões de Mordor e seus exércitos que se torna uma figura patética e covarde, recusando-se a participar da luta contra Sauron, até finalmente enlouquecer completamente e se queimar até a morte em uma pira:

Então Denethor saltou sobre a mesa e, de pé, envolto em fogo e fumaça, pegou o bastão de seu governo que jazia aos seus pés e o quebrou sobre o joelho. Lançando os pedaços na chama, ele se curvou e deitou-se sobre a mesa, segurando o palantír com ambas as mãos sobre o peito. E dizia-se que, dali em diante, se algum homem olhasse para aquela Pedra, a menos que tivesse grande força de vontade para usá-la com outro propósito, veria apenas duas mãos envelhecidas murchando em chamas
Por fim, há o hobbit Pippin, que encontra o palantír de Saruman após sua morte e quase enlouquece ao usá-lo, até ser resgatado por Gandalf. Em todos os três casos, o palantír é um objeto amaldiçoado e traiçoeiro—e, mesmo assim, Peter Thiel aparentemente leu tudo isso e achou que seria interessante possuir um. A piada do escritor de comédia Alex Blechman sobre os cientistas que criam com sucesso “o Torment Nexus do clássico romance de ficção científica Não Criem o Torment Nexus” se encaixa perfeitamente.

Esse tipo de tragédia, em que o desejo por poder ou riqueza leva diretamente à queda de um personagem, é um dos temas recorrentes mais fortes na obra de Tolkien. Isso acontece no clímax de A Sociedade do Anel, quando Boromir (filho de Denethor e membro do grupo titular) decide que pode roubar o Um Anel e usar sua magia para restaurar a antiga glória de Gondor. Em vez disso, ele acaba se tornando paranoico, voltando-se contra seus amigos, fugindo para a floresta e sendo morto por um orc à espreita. Outro exemplo é o anão Thorin Escudo-de-Carvalho, em O Hobbit, que lidera um ataque bem-sucedido para matar o dragão Smaug na montanha de Erebor, mas acaba obcecado pelo ouro que encontra lá. Tolkien escreve:

“Durante longas horas nos últimos dias, Thorin havia passado no tesouro, e o desejo por ele pesava sobre ele.”
Seu orgulho e ganância eram tão grandes que ele se recusou a compartilhar qualquer parte do tesouro com os povos das terras vizinhas, que Smaug havia saqueado e pilhado por anos:

“Você colocou sua pior causa por último e em primeiro lugar,” respondeu Thorin. “Ao tesouro do meu povo, nenhum homem tem direito, porque Smaug, que o roubou de nós, também o privou de vida ou lar. O tesouro não era dele para que suas ações malignas fossem remediadas com uma parte dele.”
Inevitavelmente, isso leva à guerra, e Thorin morre. Suas últimas palavras são dirigidas ao hobbit Bilbo Bolseiro e, como convém a um livro originalmente escrito para crianças, elas expressam diretamente a moral da história:

“Se mais de nós déssemos valor à comida, à alegria e à música, em vez do ouro acumulado, o mundo seria mais feliz.”
Não poderia ser mais claro. E, no entanto, mais uma vez, Thiel e companhia parecem ter ignorado essa lição. Eles continuam acumulando riqueza em seus fundos ocultos e contas de aposentadoria, sentados sobre ela como dragões. Talvez a próxima empresa deles se chame “Smaug Capital”.

Claramente, Thiel, Vance e Yarvin não entendem o mínimo sobre Tolkien. Eles pegaram um autor que — apesar de ser suscetível ao racismo e ter um apreço excessivo por reis — sempre foi profundamente desconfiado de riqueza, poder e daqueles que os buscam, e transformaram suas palavras e símbolos em celebrações exatamente dessas coisas. “Palantir Technologies” é uma piada de mau gosto, exceto pelo fato de que é real. Mas isso não deveria ser surpreendente, pois esse tipo de pessoa do setor de tecnologia e finanças conservador geralmente tem grande dificuldade em compreender arte ou qualquer coisa que não seja um algoritmo voltado para maximizar lucros. Afinal, entender arte e literatura exige um certo nível de empatia, e eles não parecem acreditar nisso.

Em um caso semelhante, o tabloide conservador britânico The Sun ficou indignado ao descobrir, em 2018, que estudantes “sensíveis” simpatizavam com o monstro de Frankenstein, de Mary Shelley, e acreditavam que ele era “incompreendido”—o que, na verdade, é exatamente a ideia central do livro. Hoje, algo parecido aconteceu com Tolkien, cujas obras estão sendo distorcidas e mal utilizadas por algumas das piores pessoas da atualidade. É uma pena, porque ele tem muitos conselhos valiosos para oferecer a elas—se ao menos colocassem de lado seu ego e sua ganância por tempo suficiente para ouvir.
 

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