Melian
Período composto por insubordinação.
Nove anos depois de sua primeira participação no Cinco Livros Favoritos, Mercúcio nos presenteia com uma senhora lista! Não se pode dizer menos de uma seleção que conta com preciosidades como: Grande Sertão: Veredas e Cem anos de solidão. É uma lista para aquecer o coração dos latino-americanos, condenados à solidão proveniente de um ininterrupto processo de opressão, saqueio e abandono. É uma lista que, como as anteriores, apresenta-nos os meandros da personalidade de quem a construiu. É impossível olharmos para os livros selecionados sem pensarmos no Mercúcio historiador; preocupado com a construção de um mundo justo; em busca do aprimoramento da espiritualidade e, também, como fã inveterado de Nélida Piñon e Lygia Fagundes Telles. A literatura é essa coisa maravilhosa que nos permite conhecer melhor as nossas próprias veredas e, mais do que isso, ela nos permite dar um giro de 360º em nossas vidas. Por isso, peço vênia para parafrasear Nietzsche: sem a literatura, a vida seria um erro.
1. Os Miseráveis (Victor Hugo)
Aviso: não sei ser comedido ao falar desse livro.
É, de longe, o meu livro preferido da vida; o livro que mais me marcou e que passou até mesmo a integrar a minha visão de mundo. E, para além de uma dimensão afetiva, para além de uma dimensão filosófica, do sentido político e da crítica social subjacente, a obra tem também, ao menos para mim, uma forte dimensão espiritual. Nenhum texto religioso que eu tenha lido conseguiu me fazer sentir tão perto do Divino como este romance. Foi uma leitura de fascínio, de assombro, e foi também um tanto catártica — dos poucos livros que me fizeram chorar. É aquele livro que eu sempre pego na estante pra matar a saudade, pra reler as passagens que eu marquei e rever as anotações que fiz no canto das páginas. O Hugo é um escritor que eu venero, é a sensibilidade social aliada a uma erudição realmente monstruosa, no melhor dos sentidos.
Eu adoro até mesmo as longas digressões do narrador (sobre o campo de batalha de Waterloo; sobre os esgotos de Paris; sobre as gírias do moleque de Paris...), embora entenda que muita gente considere essas passagens cansativas. Tenho uma relação afetiva forte com Os Miseráveis.
Qualquer obra que traga um painel histórico bem feito tem boas chances de me cativar. Mas aqui eu preciso fazer um registro sobre a edição em que li: aquele boxzinho da Cosac Naify, com dois tomos. Cara, eu me lembro de ter xingado muito quando comprei essa edição, porque achava a qualidade do material bastante vagabunda pra um livro de mais de 120 reais (lembrando que 120 reais em 2014 era bem mais que 120 reais hoje, embora o valor nominal ainda designe o que eu chamo de “livro caro”). Fui obrigado a morder a língua. Essa edição da Cosac é a melhor referência que eu tenho hoje de uma edição bem feita! Tem umas oitocentas notas de rodapé (não me lembro o número exato), com um padrão elevadíssimo e traz um excelente texto de apresentação, assinado pelo Renato Janine Ribeiro. Fez toda a diferença ter lido nessa edição. A sensação ao final era a de que eu tinha tido quase que um curso de história da França da primeira metade do oitocentos.
Um comentário lateral: Javert é um dos meus antagonistas preferidos.
2. Cien Años de Soledad (Gabriel García Márquez)
Tinha a expectativa de que se havia um livro que, pela sua monumentalidade, pudesse rivalizar com o significado que Os Miseráveis teve para mim, esse livro seria Guerra e Paz, do Tolstói. Não chegou nem perto.
O livro que chegou mais perto — e esse mais perto, ainda assim, é um “perto-longe” — foi Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez. Coloquei o título em espanhol porque li o livro na edição da Vintage Books USA, em espanhol. Eu então já havia tido um primeiro contato com o Gabo através de O Amor nos Tempos do Cólera, numa tradução para o português, e queria ter acesso ao texto original do autor. Coincidiu com uma época em que eu estava dedicado ao aprendizado do idioma.
No meu ranking afetivo, é este livro o meu nº 2. E aqui por motivos que não dialogam tanto com os motivos alinhavados para Os Miseráveis. Cem Anos entra na lista porque é o exemplo maior que eu conheço de uma Imaginação Poderosa, superior, absolutamente magnética, arrebatadora. O Gabo é um puta contador de histórias, e o seu texto me fez mergulhar de cabeça em Macondo. A cada momento que algo de inexplicável sucedia na narrativa, eu ficava absolutamente boquiaberto, me perguntando como caralhos esse cara conseguiu imaginar isso.
Se Guerra e Paz não atendeu às minhas expectativas, Cem Anos de Solidão explodiu as que eu tinha, transcendeu e foi muito, muito além do que eu esperava - e ressalto: eu esperava muito desse livro. É um livro que vou querer reler muitas vezes.
3. Grande Sertão: Veredas (João Guimarães Rosa)
Durante muito tempo, tive esta dúvida, e Gabo e Guimarães Rosa se estapearam nesse meu ranking afetivo de leituras pra ver quem ficava melhor colocado. Ficou sendo o meu nº 3, mas é um quase empate com o meu nº 2.
Grande Sertão: Veredas foi um livro que, durante muito tempo, me intimidou. Até que ele venceu uma eleição no Clube e eu fui obrigado a encará-lo.
A linguagem, o aspecto formal, a estética da narrativa, por si só já eleva esse livro a um outro patamar. Mas há muito mais em Grande Sertão: Veredas. O enredo é maravilhoso e cheio de significados. Cara, que absurdo é esse livro! Com a modesta amostragem que eu tenho, nas minhas leituras, e do alto da minha ninguendade*, eu considero o Guimarães Rosa o maior dos escritores brasileiros.
De fato, não se acostuma de cara com o texto do escritor. Foram precisas algumas dezenas de páginas para que a leitura começasse a fluir melhor. Pra mim, a experiência de leitura foi análoga a uma escavação arqueológica. Você tem a superfície da narrativa, mas, pouco a pouco, munido de um pincel, com sutileza, você vai descobrindo novas camadas de sentidos subjacentes, novas teias de complexidade, sentidos filosóficos, questões existenciais. Os textos de apoio, que compõem a edição da Companhia das Letras que tenho aqui, assim como as discussões com o pessoal do Clube de Leitura Travessia, me ajudaram muito nesse relativo aprofundamento. E, mesmo assim, eu sinto que ainda há muito a aprofundar, que essa “escavação” ainda é capaz de revelar novas nuanças e significados. Digamos que o livro como que te desafia a uma futura releitura.
Para coroar essa experiência de leitura, como já relatei em outras partes desse fórum, fizemos uma viagem a Cordisburgo-MG, terra do Guimarães Rosa. Tivemos uma das nossas reuniões de discussão de leitura literalmente no quintal da casa em que viveu o escritor na infância, hoje um museu dedicado à sua vida e obra. Isso agregou um sentido quase místico à leitura e trouxe o escritor pra mais perto da gente. Aliás, recomendo muito que visitem o museu Casa de Guimarães Rosa. Para além do museu, andar por Cordisburgo-MG é tropeçar em referências à vida e à obra do escritor a cada 50 metros. E, à parte isso, é uma delícia de cidade pequena mineira.
Foi minha melhor leitura em 2019.
4. A República dos Sonhos (Nélida Piñon)
Já rasguei elogios a esse livro em outros tópicos desse fórum de literatura. Então, acho que muitos de vocês já esperavam que ele figurasse na minha lista. Foi o meu primeiro contato com a obra de Nélida Piñon e, conforme escrevi em outras partes, terminei a leitura completamente rendido ao gênio da escritora. Foi minha melhor leitura de 2020, e é o nº 4 no meu ranking afetivo.
Na edição em que li — aquela edição comemorativa de 30 anos da publicação do Romance — tem um puta prefácio foda, assinado pelo Alberto Mussa, no qual o escritor aponta A República dos Sonhos como um “romance perfeito”, um “romance total” e como um dos textos seminais da cultura ocidental. O Mussa é um cara realmente muito inteligente, e penso que a Record acertou em cheio ao trazê-lo para escrever esse texto, que efetivamente prepara o leitor para o livro.
O romance narra a saga de Madruga, um imigrante que, no início do século XX, com apenas 13 anos de idade, foge da Galícia, decidido a fazer fortuna e deitar raízes no Brasil. Na travessia atlântica, conhece o misterioso Venâncio, que se tornará seu amigo e companheiro na aventura americana, ao longo de toda a vida. Com o passar dos anos, enquanto Madruga se casa e constitui família, seus filhos e netos vão consolidando o estabelecimento da família em terras brasileiras, e o leitor, a partir do espaço orbital dessa família, se vê conduzido ao longo da história do Brasil do século XX. A modernização do Rio de Janeiro, a condição do imigrante europeu, a questão racial, as estruturas da República Velha, a Revolução de 1930, a Era Vargas, a ditadura estadonovista, a Segunda Guerra Mundial e a queda de Getúlio; as perspectivas desenvolvimentistas dos anos Juscelino, a tensão dos anos Jango, a ditadura militar, as perseguições políticas, a tortura, os exilados, etcéteras a perder de vista. Para completar, as raízes que ligam os personagens à Espanha também nos situa em face de um dramático processo histórico transcorrido no Velho Mundo: a Guerra Civil Espanhola e o advento do franquismo.
A par da tessitura dos contextos, os temas perpassados em A República dos Sonhos também são diversos: a dimensão da ancestralidade, o espaço das lendas e das narrativas míticas e seu sentido aglutinador, no que respeita à construção de uma identidade nacional; o estatuto social da mulher — da mulher negra, inclusive; a sexualidade e, em particular, a sexualidade feminina em face de um contexto que a oprime. Em verdade, trata-se de um romance multidimensional e a percepção dessa multidimensionalidade é reforçada pelas escolhas narrativas da autora, que torce completamente a cronologia, transitando a todo momento entre o passado e o futuro (a narrativa não é linear!), num fluxo quase desconcertante, embora tremendamente arrebatador, conduzido por três vozes narrativas que se alternam — duas delas em primeira pessoa (a narrativa de Madruga, o patriarca da família, e a de sua neta, Breta) e uma, impessoal, em terceira pessoa. Ler A República dos Sonhos é uma surpresa a cada capítulo, a cada parágrafo, porque você nunca sabe em que ponto da linha do tempo você está até que o narrador da vez te dê os elementos para se situar. É um livro para ser lido e apreciado sem pressa.
Para mim, A República dos Sonhos é dessas obras que geram, como efeito reflexo, um certo encantamento pela vida, pelas histórias, pela efemeridade do humano - inclusive no que diz respeito à sua dimensão trágica. Um livraço, que, a meu ver, infelizmente, é muito menos lido e muito menos valorizado do que mereceria.
Por fim, destaco também a maneira atenciosa como a escritora, tomando conhecimento dos comentários despretensiosos que fiz a propósito de seus livros, nas minhas redes sociais, reagiu às minhas impressões. Comentou os meus posts, entrou em contato comigo — inclusive, agendando uma conversa por telefone. Me senti realmente abraçado pela escritora e só fez crescer a minha admiração por ela.
5. Verão no Aquário (Lygia Fagundes Telles)
Neste ponto, eu quebro o critério que guiou as minhas escolhas anteriores. Todos os livros anteriores são realmente os meus 4 livros preferidos [até aqui]. Mas eu realmente não sei indicar qual seria o quinto livro nesse ranking. Por isso, decidi deslocar o foco para a escritora, e não para a obra em si. Tenho muito carinho pela obra da Lygia Fagundes Telles, e queria mesmo que ela figurasse nessa lista.
Lygia representa a minha porta de entrada para o conto — um gênero que apenas começo a explorar. Entre os seus livros de contos, os meus favoritos (até agora) são Seminário dos Ratos e A Noite Escura e mais Eu — ficam, desde já, como menções honrosas. Mas decidi escolher um de seus romances, apenas para ficar coerente com o restante da lista.
Lygia escreveu apenas quatro romances e eu decidi indicar Verão no Aquário, em parte, porque ele não é a escolha óbvia. Li em algum lugar que a própria Lygia chegou a cogitar a ideia de impedir que o livro fosse reeditado, porque é um romance que ficou muito na sombra de livros como As Meninas ou Ciranda de Pedra. Qualquer um desses dois, a meu ver, seriam as escolhas óbvias.
Mas escolhi Verão no Aquário também porque, dos romances de Lygia (eu li os quatro), ele é, mesmo, o meu preferido, seguido, de muito perto, por As Meninas.
O livro retrata um drama familiar: a relação tumultuada entre Raíza — narradora-personagem cheia de ambiguidades, carências, indefinições; órfã de pai alcóolatra, pianista frustrada, entregue a uma vida dissoluta e a uma conduta, sob muitos aspectos, autodestrutiva; no sexo, nas drogas, nos relacionamentos em geral — e sua mãe, a distante e inatingível Patrícia, escritora reconhecida, por quem a filha tem uma espécie de amarga rivalidade. A coisa se complexifica com a presença de André, um jovem e problemático seminarista em crise, consumido pela dúvida quanto à sua vocação, que arrasta a relação mãe e filha para uma tensa triangulação: Raíza acha que André e Patrícia são amantes e, talvez, inconscientemente guiada pela rivalidade que sente pela mãe, apaixona-se (ou acredita-se apaixonada) por ele.
Como é recorrente na literatura de Lygia, os personagens de Verão no Aquário são trágicos. E a condução dada pela escritora tem uma certa inclinação para a crueza das coisas. Seu texto é quase cruel, como a escancarar que a vida fora do ambiente protegido do aquário doméstico, se por um lado convive com a beleza do mar, também deve suportar a sua fúria. É um baita livro!
Mercúcio disse:___________
Menções honrosas, além das citadas no texto acima: Gabriela, Cravo e Canela (Jorge Amado); Meu Pé de Laranja Lima (José Mauro de Vasconcellos); O Sol é Para Todos (Harper Lee); 1984 (George Orwell); Grandes Esperanças (Charles Dickens); Um Conto de Natal (Charles Dickens); Os Três Mosqueteiros (Alexandre Dumas... este, inclusive, entrou na minha primeira lista); e vou parar por aqui.
*Nota da Melian: Chamou Darcy Ribeiro para o boteco. Amei! Eu realmente adoro essa ideia de que, a partir da constituição híbrida do povo brasileiro, somos, em todos os tempos, protótipos de ninguéns em busca de se tornarem alguéns.