Bel
o.O
Jurava que ia colocar Martha Medeiros...
Mavericco disse:Desculpe se a mensagem ficou grande... Mas é que eu me empolguei
1) Ulysses -- James Joyce.
Naturalmente, Ulysses é um livro difícil. Mas, ao invés de difícil, talvez cumpra dizer com mais exatidão que ele é um livro desafiador. Desafiador pois, como todo desafio, ele possui a recompensa ou a esperança da recompensa: assim, o leitor que lê o Ulysses ou espera ou algo ou de fato ganha algo. No entanto, se o Ulysses é um livro clássico por ene razões que não cumpre tentar analisar (mas que posso enumerar como, basicamente, o alcance da linguagem prosaica numa extensão sincrônica à da realidade), ele automaticamente tem algo a oferecer a partir do momento em que vários leitores ao longo dos anos efetivamente encontraram algo no Ulysses a ser dito.
Assim, existem interpretações linguísticas, estilísticas, literárias, psicoanalíticas, antropológicas, folclóricas, mitológicas etc do livro, visto que, em linhas gerais, seu objetivo é o de contar um "dia comum" de uma "pessoa comum". As aspas decorrem do fato de que, na verdade, não se trata de algo tão comum assim: a primeira explicação está no fato de que neste dia a esposa do protagonista irá traí-lo com Blazes Boylan; a segunda está na própria teoria do romance, onde pessoas comuns não os protagonizam (uma pessoa comum não é, digamos, "digna" de um romance inteiro apenas para ela).
No meu caso o Ulysses nasceu com meus primórdios de leitor. Por mais altruísta que isso possa parecer, o Ulysses foi um dos primeiros livros que li, e ainda hoje não acho que isso é algo de grande espanto: na verdade, quando o leitor decide ler o Ulysses como apenas um livro de 800 páginas escrito "de maneira engraçada e interessante", ele estará interpretando o Ulysses em seu nível primário e, nem por isso, menor. Encarar o Ulysses como um livro de nosso cotidiano que retrata o caos urbano e o caos da mente humana é a primeira coisa que todo leitor deve observar antes de buscar analisá-lo como uma paródia da Odisseia ou como uma intersecção isomórfica do corpo humano, da cidade, da mente etc.
Ler Ulysses é ler o mundo.
2) A Divina Comédia -- Dante Alighieri.
Depois de lido o Ulysses, posso dizer que fiquei um pouco xiita com as coisas. Depois de ler a Divina Comédia, fiquei ainda mais, pois, por um raciocínio que ainda hoje me é difícil de explicar, eu passei a considerar apenas os extremos como sendo em verdade bons: ou seja, a literatura "empoeirada" ou a literatura "vanguardista".
Mas entender tanto James Joyce como Dante Alighieri dessa forma é entendê-los de uma forma muito limitada. Na verdade, quando li o primeiro terceto da Divina Comédia eu tive um choque. Minha concepção de poesia era a poesia de 22, e eu chegava ao ponto de senso comum de considerar que qualquer coisa metrificada era coisa embalsamada. Mas Dante me demonstrou o contrário de forma incrivelmente mágica: aquela narrativa alegórica regada a desenhos fabulosos de Gustave Doré (li a edição da Itatiaia, traduzida pelo saudoso Cristiano Martins), e com extensas notas de rodapé, me deram um prazer secreto em desvendar tudo aquilo que ali estava escrito de forma ampla e com todos os sentidos à flor da pele, exatamente como ler e decifrar o Ulysses implicara.
A diferença é que o processo de leitura de poesia, quando realmente lida, é sempre mais encantador que o da prosa. A poesia envolve transfiguração, pois sua base de partida é a subjetividade do poeta que alcança a subjetividade do leitor por intermédio da metáfora como funcionamento-motor.
Assim, ao começar a entender esse funcionamento, pude me embrenhar na leitura de um poema de proporções colossais que me deixou, como dito, extasiado, num verdadeiro frenesi. Desde que havia lido meu primeiro livro, um pocket policial (Tênue Fio da Suspeita), nunca havia experimentado de novo essa sensação de encontrar um mundo absolutamenhte novo e, ao mesmo tempo, tão promissor.
Ler Dante foi descobrir a poesia.
3) Macbeth -- William Shakespeare.
A descoberta da poesia me fez automaticamente buscar de forma voraz pela poesia. E, no meio dessas buscas, inevitavelmente caí em Shakespeare. A ocasião primeira foi a da leitura coletiva de Rei Lear no "falecido" Meia Palavra, onde havia encarado o mesmo sob as traduções em prosa de Oscar Mendes ao lado de uma edição da obra completa do bardo pela Oxford. Foi um fracasso, pois me julguei capaz de algo que hoje percebo que só pode ser realizado com disciplina e paciência: isto é, ler Shakespeare no original.
Algum tempo depois, era chegada a hora de ler Shakespeare a partir de outro poeta que mantivera sua estrutura em verso-prosa: Carlos Alberto Nunes. O encantamento e o êxtase foram tremendos. A cada peça eu podia compreender porque Shakespeare é classificado como um cânone inabalável, e isso só foi com o tempo mais e mais revelado à medida que eu evoluía como leitor e podia compreender aspectos intrínsecos do funcionamento de um texto antes desconhecidos.
Li muito Shakespeare, mas, principalmente, reli muito. Visitei muitos tradutores, alguns dos quais meu respeito será dado como imperecível, tais como Onestaldo de Pennafort ou Manuel Bandeira. Esse ano pude revisitar Shakespeare e ler algumas de suas peças em inglês; pude até mesmo tentar traduzir um pouco de Shakespeare.
Muitas coisas evoluíram. E, de todas as peças do Bardo que tive contato, aquela com a qual minha permanência e conhecimento se alastrou pela variedade foi Macbeth: para esta, pude ler todas as traduções em língua portuguesa disponíveis.
É que a peça é fantástica, apesar de sua concisão e de suas partes aparentemente disparatadas. Seu clima noturno é aterrorizante, de uma forma de terror que nos penetra a espinha para melhor alcançar a alma. Já tive a oportunidade de ler a peça numa madrugada, e posso dizer que dificilmente poderei sentir uma sensação tão sufocante quanto imaginar junto com Macbeth uma adaga que, algum tempo depois, será real e será manchada de sangue.
Ler Macbeth é sempre um sinal de cumplicidade.
4) Ficções do Interlúdio -- Fernando Pessoa.
Lembro-me de Fernando Pessoa das aulas de português, onde seu nome me era tão emaranhado e indissociável quanto Tomás Antônio Gonzaga, Luís de Camões ou Oswald de Andrade: ou seja, a mesma coisa. Quando pude ler Fernando Pessoa com olhos não diria críticos, mas olhos necessariamente curiosos para que possamos ao menos entrar sem pensar na saída; então, quando li Fernando Pessoa com esses olhos, eu de fato li Fernando pessoa.
Foi assim que o caso insólito "Fernando Pessoa" se iniciou em minha vida. E, como todo leitor de Pessoa sabe, quando ele se inicia, ele nunca acaba.
É que Fernando Pessoa se confunde com o universo pois ele é por si só o universo. É o maior nome da poesia portuguesa desde Camões, iniciando um ciclo e fechando outro. E, das muitas formas que Pessoa criou para combater esse exército da tradição poética, posso citar com admiração cada um deles e, para cada um, tentar tecer comentários que busquem condizer com a admiração que sinto.
Mas eles seriam poucos, pois, para elogiar uma coisa múltipla, é-se necessário ser múltiplo: e isso é uma coisa difícil sobremaneira para qualquer leitor de Pessoa, pois a paixão pelo poeta é apenas uma. Amamos Álvaro de Campos por todo seu vigor épico de poesia; amamos Ricardo Reis pela serenidade que seus ensinamentos, mesmo que falsos ou impraticáveis, nos trazem; amamos Alberto Caeiro por... certo. Confesso que não gosto do Caeiro. Prosseguindo. Amamos Bernardo Soares não pelo que ele diz de si mesmo, mas pelo que ele diz de nós: ou seja, pelo que ele é capaz de dizer da condição humana (na verdade, toda a obra de Fernando Pessoa tem esse escopo...).
E, é claro, amamos o ortônimo pois ele é o baricentro universal de um universo que é lido porque é amado e que é amado porque é lido.
(E, como parêntesis, deixo aqui toda minha admiração pelos Pessoas na surdina que se multiplicam como uma cultura de culturas: isto é, o Primeiro Fausto, os contos, as páginas de interpretação pessoal, de interpretação filosófica etc.)
5) No Caminho de Swann -- Marcel Proust.
Li esse livro esse ano e, atualmente, sigo a sugestão de alguns camaradas de ler o "Em Busca..." com um espaço de um ano por livro: ou seja, ler um livro da saga esse ano, outro ano que vem etc.
E, se apenas o primeiro foi o suficiente para que Proust conseguisse encantar um leitor com o coração quase que todo voltado para a poesia, imagino o que serão os outros, quando a iluminação retrospectiva estiver funcionando a todo vapor!
Ou talvez eu imagine: para além da prosa proustiana, com seu estilo indescritível, encontrarei a análise psicológica a níveis abissais onde qualquer fonte de luz é capaz de revelar uma plêiade de outros aspectos que se interconectam e parecem sair de apenas um ponto em comum. Desse modo, quando observamos Charles Swann no primeiro livro da série, acompanhamos não apenas o que Charles Swann é, mas o que ele representa a seu redor e o que o seu redor na sequência narrativa lhe impinge. Isso causa talvez a intersecção a que me referi, que poderia ser exemplificada na figura de Odette Swann (que traz consigo uma série de outras ramificações) e que, com a evolução do ciúme de Swann, encontra conforto na música que funcionaria como aquele ponto em comum, isto é, aquele ponto onde todas as paixões e fluxos espirituais do ser humano se fundamentam e podem ser lançados e ressignificados. Por isso a música aumenta o amor de Swann e ao mesmo tempo o diminui, pois a significância da música talvez não seja uma significância interna, isto é, a música é capaz disso porque algo dentro dela o é, mas sim porque a música ocupa naquele contexto chamado Charles Swann uma função preponderante (uma função de formação, uma função antropológica).
Claro que o leitor, ao acompanhar o primeiro volume, observará que em verdade se trata da arte como fator preponderante de conexão como, ao que tudo indica, o será para o narrador ao longo da série; mas, modo geral, o tema e o escopo da saga "Em Busca..." parece ser justamente esse: o de se encontrar esse nó e o de compreendê-lo sob a luz da memória como funcionamento de luzes e espelhos.
Em suma, ler Proust não é ler Proust: é assinar um termo de acordo para sete anos, de modo que ler Proust será ao mesmo tempo ler a si mesmo, como, ademais, qualquer bom livro é capaz de repercutir.