Bel
o.O
É natural que uma lista que se predisponha a escolher apenas cinco exemplares seja ingrata. Sonetos excepcionais como Eu cantei, não o nego, eu algum dia de Cláudio Manuel da Costa, O Corvo de Augusto dos Anjos, Inania Verba de Olavo Bilac, 2º Motivo da Rosa de Cecília Meireles, Os poderes infernais de Carlos Drummond são apenas alguns exemplos, entre tantos e tantos outros, de sonetos que mereceriam, no mínimo, uma menção mais demorada.
CARREGADO DE MIM ANDO NO MUNDO -- Gregório de Matos Guerra.
Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passada,
Que como ando por vias desusadas,
Faço crescer o peso, e vou-me ao fundo.
O remédio será seguir o imundo
Caminho onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas juntas andam mais ornadas,
Do que anda só o engenho mais fecundo.
Não é facil viver entre os insanos,
Erra quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.
O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos
Ser louco c’os demais, que só sisudo.
Eleito um dos melhores poemas brasileiros de todos os tempos (mas com um certo exagero), este é um dos sonetos mais antológicos do poeta baiano que se caracterizava por suas críticas mordazes. Junto ao "Pequei, senhor, mas não porque hei pecado" ou ao "Horas contando, numerando instantes" (este último coevo em relação ao tom sério e não burlesco), é um de seus melhores poemas, daqueles que resumem a cosmovisão, isto é, a visão de mundo de um poeta com grandiosa habilidade.
No poema, o eu lírico diz que anda "por vias desusadas", onde, carregado de si, anda no mundo, tendo suas pisadas embargadas e ao mesmo tempo crescendo os males do mundo. A segunda estrofe continua o tema da primeira, nos revelando que outras pessoas também caminham de modo semelhante ao eu lírico, o que nos leva à terceira estrofe, onde ele diz: "Erra, quem presumir que sabe tudo, / Se o atalho não soube dos seus danos." Mas que atalho seria este? É o que o poema fecha dizendo, em que se diz que é melhor ser mudo e andar com os demais que ser justamente o contrário. Daí o fato dele carregar cheio de si no mundo, sem poder revelar sua identidade ou seus pensamentos à guisa do que ocorre no Mal Secreto de Raimundo Correia. Assim, é como se o soneto demonstrasse um momento crepuscular da existência de Gregório, ou, no mínimo, um momento de descrença para com a humanidade que apenas acentua e engrandece a dor de viver que percorre seu soneto.
IRONIA -- Alberto de Oliveira.
De cima abaixo a lâmina brilhante
Da vidraça estalou. E o vidro, agora
Fendido ao meio, espia o céu cá fora,
Com o olhar partido em dois, pisco, hesitante...
Não sei o que secreto e lancinante
Ali se esconde, — alma talvez que chora
E num esgar se estorce aflita, embora
A serena aparência do semblante.
Brinca-lhe o sol à face, a aura lhe adeja,
E o vidro, sem que alguém lhe ouça um gemido
Ou o sofrer recôndito lhe veja,
Mudo, irônico, frio e incompreendido,
Cortando anavalhado a luz que o beija,
Parece estar-se a rir de estar ferido.
O nome de Alberto de Oliveira é geralmente lembrado por sua filiação paternal ao parnasianismo. Não se trata de uma vinculação errônea, visto que, dos três parnasianistas (ele, Bilac e Correia), é correto dizer que somente Alberto possuiu uma visão mais rígida e mesmo uma obra de teor mais rígido para com a Arte pela Arte proposta pelos parnasianos (o que, naturalmente e como toda ortodoxia no campo literário, resultou em obra na maior parte perecível, datada e justamente esquecida).
No entanto, o soneto "Ironia" demonstra um Alberto de Oliveira bem diferente do que costumamos nos lembrar em poemas como "Vaso Chinês". Aqui, a partir de um recorte moderno e de metáforas singulares, o poeta demonstra uma ironia que alcança múltiplos sentidos e, não sem muito esforço, parece inclusive representar a condição humana. Começa na primeira estrofe, onde a lâmina brilhante de uma espada fende uma vidraça, como se, no mais, uma mesma substância ou duas substâncias com um mesmo resultado, juntas, se destruíssem mutuamente. E, dessa destruição, temos a vidraça, fendida ao meio, transformada na condição da lâmina brilhante, a espiar o céu lá fora, característica que ela anteriormente não parecia conseguir.
Logo, não creio que estarei viajando demais se disser que a lâmina brilhante libertou a vidraça de algum modo. É o que a segunda estrofe parece apontar, onde o poeta fala de algo secreto que habita naquela cena e que esconde uma "alma talvez que chora". Novamente, a comparação à dor existencial humana pode ser feita, onde nos parece que a vidraça, por estar estraçalhada e, logo, liberta, só consegue ser de fato liberta quando sofre. Como diria Manuel Bandeira, só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
No final essa desconfiança é confirmada, onde vemos que o vidro, "Cortando anavalhado a luz que o beija, / Parece estar-se a rir de estar ferido." É, sem sombra de dúvidas, um grandioso final que reflete com grande perícia e grande técnica um tema, uma profundidade temática que somente obras-primas podem refletir.
VIDA OBSCURA -- Cruz e Souza.
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.
Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.
Ninguém Te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.
Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!
Um dos sonetos mais comovidos do mestre catarinense que retrata não só a condição do poeta, mas, de modo geral, a condição do negro. É uma obra que dispensa comentários, tão grande é sua emoção e tão belamente ela é trabalhada, numa fúria interior que alguns de seus críticos compararam à de Augusto dos Anjos. Talvez a diferença seja que Cruz e Souza, por ter tido um tempo de maturação poética maior, soube colocar com maiores requintes de ironia ("Embriagado, tonto dos prazeres, / O mundo para ti foi negro e duro." ou o "Te" em maiúscula do nono verso) o conteúdo plasmado e, logo, soube enriquecer semanticamente seu poema.
Mencione-se também o fato de que Cruz e Souza foi um dos maiores sonetistas da língua, conseguindo criar uma obra que se tornou um verdadeiro caminho e uma verdadeira peregrinação para com o soneto que talvez somente Camões, Bocage e Antero souberam lhe acompanhar em extensão e importância da forma poética para suas respectivas obras. Cite-se sonetos como A Dor, Acrobata da Dor, Ironia de Lágrimas, Cárcere das Almas, O Assinalado ou Espasmos para se ter uma ideia, imperfeita e incompleta, da dimensão do Dante Negro para nossa literatura.
MAL SEM MUDANÇA. -- Manuel Bandeira.
Da América infeliz porção mais doente,
Brasil, ao te deixar, entre a alvadia
Crepuscular espuma, eu não sabia
Dizer se ia contente ou descontente.
Já não me entendo mais. Meu subconsciente
Me serve angústia em vez de fantasia,
Medos em vez de imagens. E em sombria
Pena se faz passado o meu presente.
Ah, se me desse Deus a força antiga,
Quando eu sorria ao mal sem esperança
E mudava os soluços em cantiga!
Bem não é que a alma pede e não alcança.
Mal sem motivo é o que ora me castiga,
E ainda que dor menor, mal sem mudança.
Bandeira foi um perito na arte do soneto. Reza a lenda que chegou a escrever um enquanto dormia. O soneto Mal sem mudança, ao lado de Noturno no morro do encanto, fazem um coro magnífico e ímpar em nossa língua, tamanho o grau e tamanho o trabalho emocional que neles é emplastrado. Além disso, cumpre citar que esse dueto, por sua vez, faz coro com outro dueto de sonetos O lutador e Vita nuova, contemplando uma série que entrelaça livros e livros e, no final das contas, chega às raízes do poeta, a seus primórdios, fechando um ciclo feito com coerência e grandiosidade.
Mas, de todos que escreveu, Mal sem mudança é, sem dúvidas, o maior de todos. Seja pelo recorte camoniano no verso (isto é, a gravidade da sentença, o tom sentencioso, a grandiosidade do tema, a grandiosidade com que é tratado etc), seja pelo fato dele ser um acerto de contas com um tema que percorreu sua obra de cabo a rabo: a morte. Ou, no mínimo, o sofrimento.
A primeira estrofe mostra-nos um tom de partida, mas um tom de partida com a "Da américa infeliz porção mais doente", e não apenas isto: uma partida "entre a alvadia / Crepuscular espuma". Logo, compreende-se porque o eu lírico não sabia "Dizer se ia contente ou descontente."
Na estrofe seguinte ele nos diz que não se entende mais, que o íntimo de seu ser já não consegue mais aplacar sua dor, que já não consegue mais lhe servir fantasia ou imagens. Assim sendo, seu passado, que se vincula e sempre se vinculou para Bandeira como uma fonte de carinho e de afeto, se torna em "Sombria pena", ou, observando sob outro viés, seu presente vai se tornando num passado ruim, num passado que lhe dói o peito. Naturalmente, agora, que ou o passado ou o presente estão submersos nesse clima crepuscular, ou os dois juntos, que o poeta já não consegue mudar seus soluços em cantiga, o cômputo geral é o de um soneto desesperador e grande, grandiosamente desesperador, tamanha a força emocional que ele consegue aprisionar e tamanha a habilidade com que ele consegue trabalhá-la, lembrando, conforme já citado, o maior de todos os sonetistas da língua: Luís de Camões.
SONETO DE FIDELIDADE -- Vinicius de Moraes.
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Pouquíssimo há que ser dito sobre este poema. Não tanto pelo fato dele já ter sido muito bem estudado, mas sim pelo fato dele conseguir se comunicar com uma impressionante clareza e vivacidade para com seu leitor.
Creio que bastaria apontar alguns aspectos que se costuma protelar durante a análise do poema: o adjetivo "vã" que caracteriza momento (verso cinco); os ecos camonianos, que explicam em parte tanto a popularidade quanto a naturalidade com que Vinicius criou seus sonetos (veja-se, em especial, o oitavo verso ou a construção em antíteses); o significado do verso onze, que demonstra a tônica geral dos poemas de amor de Vinicius (amar para, depois, separar-se); a definição do amor como chama, que remete a Camões e a muito antes de Camões; e, por fim, a ideia que fecha o poema, que já possuía ecos em outros autores como Fernando Pessoa.
De resto, acentue-se que o papel de Vinicius de Moraes para o soneto no Brasil é de enorme preponderância, de modo que a imortalidade do Poetinha enquanto sonetista é uma justíssima homenagem ao mesmo.
Obs da Bel: não coloquei como quote por causa dos itálicos =)
CARREGADO DE MIM ANDO NO MUNDO -- Gregório de Matos Guerra.
Carregado de mim ando no mundo,
E o grande peso embarga-me as passada,
Que como ando por vias desusadas,
Faço crescer o peso, e vou-me ao fundo.
O remédio será seguir o imundo
Caminho onde dos mais vejo as pisadas,
Que as bestas juntas andam mais ornadas,
Do que anda só o engenho mais fecundo.
Não é facil viver entre os insanos,
Erra quem presumir que sabe tudo,
Se o atalho não soube dos seus danos.
O prudente varão há de ser mudo,
Que é melhor neste mundo, mar de enganos
Ser louco c’os demais, que só sisudo.
Eleito um dos melhores poemas brasileiros de todos os tempos (mas com um certo exagero), este é um dos sonetos mais antológicos do poeta baiano que se caracterizava por suas críticas mordazes. Junto ao "Pequei, senhor, mas não porque hei pecado" ou ao "Horas contando, numerando instantes" (este último coevo em relação ao tom sério e não burlesco), é um de seus melhores poemas, daqueles que resumem a cosmovisão, isto é, a visão de mundo de um poeta com grandiosa habilidade.
No poema, o eu lírico diz que anda "por vias desusadas", onde, carregado de si, anda no mundo, tendo suas pisadas embargadas e ao mesmo tempo crescendo os males do mundo. A segunda estrofe continua o tema da primeira, nos revelando que outras pessoas também caminham de modo semelhante ao eu lírico, o que nos leva à terceira estrofe, onde ele diz: "Erra, quem presumir que sabe tudo, / Se o atalho não soube dos seus danos." Mas que atalho seria este? É o que o poema fecha dizendo, em que se diz que é melhor ser mudo e andar com os demais que ser justamente o contrário. Daí o fato dele carregar cheio de si no mundo, sem poder revelar sua identidade ou seus pensamentos à guisa do que ocorre no Mal Secreto de Raimundo Correia. Assim, é como se o soneto demonstrasse um momento crepuscular da existência de Gregório, ou, no mínimo, um momento de descrença para com a humanidade que apenas acentua e engrandece a dor de viver que percorre seu soneto.
IRONIA -- Alberto de Oliveira.
De cima abaixo a lâmina brilhante
Da vidraça estalou. E o vidro, agora
Fendido ao meio, espia o céu cá fora,
Com o olhar partido em dois, pisco, hesitante...
Não sei o que secreto e lancinante
Ali se esconde, — alma talvez que chora
E num esgar se estorce aflita, embora
A serena aparência do semblante.
Brinca-lhe o sol à face, a aura lhe adeja,
E o vidro, sem que alguém lhe ouça um gemido
Ou o sofrer recôndito lhe veja,
Mudo, irônico, frio e incompreendido,
Cortando anavalhado a luz que o beija,
Parece estar-se a rir de estar ferido.
O nome de Alberto de Oliveira é geralmente lembrado por sua filiação paternal ao parnasianismo. Não se trata de uma vinculação errônea, visto que, dos três parnasianistas (ele, Bilac e Correia), é correto dizer que somente Alberto possuiu uma visão mais rígida e mesmo uma obra de teor mais rígido para com a Arte pela Arte proposta pelos parnasianos (o que, naturalmente e como toda ortodoxia no campo literário, resultou em obra na maior parte perecível, datada e justamente esquecida).
No entanto, o soneto "Ironia" demonstra um Alberto de Oliveira bem diferente do que costumamos nos lembrar em poemas como "Vaso Chinês". Aqui, a partir de um recorte moderno e de metáforas singulares, o poeta demonstra uma ironia que alcança múltiplos sentidos e, não sem muito esforço, parece inclusive representar a condição humana. Começa na primeira estrofe, onde a lâmina brilhante de uma espada fende uma vidraça, como se, no mais, uma mesma substância ou duas substâncias com um mesmo resultado, juntas, se destruíssem mutuamente. E, dessa destruição, temos a vidraça, fendida ao meio, transformada na condição da lâmina brilhante, a espiar o céu lá fora, característica que ela anteriormente não parecia conseguir.
Logo, não creio que estarei viajando demais se disser que a lâmina brilhante libertou a vidraça de algum modo. É o que a segunda estrofe parece apontar, onde o poeta fala de algo secreto que habita naquela cena e que esconde uma "alma talvez que chora". Novamente, a comparação à dor existencial humana pode ser feita, onde nos parece que a vidraça, por estar estraçalhada e, logo, liberta, só consegue ser de fato liberta quando sofre. Como diria Manuel Bandeira, só é verdadeiramente vivo o que já sofreu.
No final essa desconfiança é confirmada, onde vemos que o vidro, "Cortando anavalhado a luz que o beija, / Parece estar-se a rir de estar ferido." É, sem sombra de dúvidas, um grandioso final que reflete com grande perícia e grande técnica um tema, uma profundidade temática que somente obras-primas podem refletir.
VIDA OBSCURA -- Cruz e Souza.
Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto dos prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.
Atravessaste num silêncio escuro
A vida presa a trágicos deveres
E chegaste ao saber de altos saberes
Tornando-te mais simples e mais puro.
Ninguém Te viu o sentimento inquieto,
Magoado, oculto e aterrador, secreto,
Que o coração te apunhalou no mundo.
Mas eu que sempre te segui os passos
Sei que cruz infernal prendeu-te os braços
E o teu suspiro como foi profundo!
Um dos sonetos mais comovidos do mestre catarinense que retrata não só a condição do poeta, mas, de modo geral, a condição do negro. É uma obra que dispensa comentários, tão grande é sua emoção e tão belamente ela é trabalhada, numa fúria interior que alguns de seus críticos compararam à de Augusto dos Anjos. Talvez a diferença seja que Cruz e Souza, por ter tido um tempo de maturação poética maior, soube colocar com maiores requintes de ironia ("Embriagado, tonto dos prazeres, / O mundo para ti foi negro e duro." ou o "Te" em maiúscula do nono verso) o conteúdo plasmado e, logo, soube enriquecer semanticamente seu poema.
Mencione-se também o fato de que Cruz e Souza foi um dos maiores sonetistas da língua, conseguindo criar uma obra que se tornou um verdadeiro caminho e uma verdadeira peregrinação para com o soneto que talvez somente Camões, Bocage e Antero souberam lhe acompanhar em extensão e importância da forma poética para suas respectivas obras. Cite-se sonetos como A Dor, Acrobata da Dor, Ironia de Lágrimas, Cárcere das Almas, O Assinalado ou Espasmos para se ter uma ideia, imperfeita e incompleta, da dimensão do Dante Negro para nossa literatura.
MAL SEM MUDANÇA. -- Manuel Bandeira.
Da América infeliz porção mais doente,
Brasil, ao te deixar, entre a alvadia
Crepuscular espuma, eu não sabia
Dizer se ia contente ou descontente.
Já não me entendo mais. Meu subconsciente
Me serve angústia em vez de fantasia,
Medos em vez de imagens. E em sombria
Pena se faz passado o meu presente.
Ah, se me desse Deus a força antiga,
Quando eu sorria ao mal sem esperança
E mudava os soluços em cantiga!
Bem não é que a alma pede e não alcança.
Mal sem motivo é o que ora me castiga,
E ainda que dor menor, mal sem mudança.
Bandeira foi um perito na arte do soneto. Reza a lenda que chegou a escrever um enquanto dormia. O soneto Mal sem mudança, ao lado de Noturno no morro do encanto, fazem um coro magnífico e ímpar em nossa língua, tamanho o grau e tamanho o trabalho emocional que neles é emplastrado. Além disso, cumpre citar que esse dueto, por sua vez, faz coro com outro dueto de sonetos O lutador e Vita nuova, contemplando uma série que entrelaça livros e livros e, no final das contas, chega às raízes do poeta, a seus primórdios, fechando um ciclo feito com coerência e grandiosidade.
Mas, de todos que escreveu, Mal sem mudança é, sem dúvidas, o maior de todos. Seja pelo recorte camoniano no verso (isto é, a gravidade da sentença, o tom sentencioso, a grandiosidade do tema, a grandiosidade com que é tratado etc), seja pelo fato dele ser um acerto de contas com um tema que percorreu sua obra de cabo a rabo: a morte. Ou, no mínimo, o sofrimento.
A primeira estrofe mostra-nos um tom de partida, mas um tom de partida com a "Da américa infeliz porção mais doente", e não apenas isto: uma partida "entre a alvadia / Crepuscular espuma". Logo, compreende-se porque o eu lírico não sabia "Dizer se ia contente ou descontente."
Na estrofe seguinte ele nos diz que não se entende mais, que o íntimo de seu ser já não consegue mais aplacar sua dor, que já não consegue mais lhe servir fantasia ou imagens. Assim sendo, seu passado, que se vincula e sempre se vinculou para Bandeira como uma fonte de carinho e de afeto, se torna em "Sombria pena", ou, observando sob outro viés, seu presente vai se tornando num passado ruim, num passado que lhe dói o peito. Naturalmente, agora, que ou o passado ou o presente estão submersos nesse clima crepuscular, ou os dois juntos, que o poeta já não consegue mudar seus soluços em cantiga, o cômputo geral é o de um soneto desesperador e grande, grandiosamente desesperador, tamanha a força emocional que ele consegue aprisionar e tamanha a habilidade com que ele consegue trabalhá-la, lembrando, conforme já citado, o maior de todos os sonetistas da língua: Luís de Camões.
SONETO DE FIDELIDADE -- Vinicius de Moraes.
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Pouquíssimo há que ser dito sobre este poema. Não tanto pelo fato dele já ter sido muito bem estudado, mas sim pelo fato dele conseguir se comunicar com uma impressionante clareza e vivacidade para com seu leitor.
Creio que bastaria apontar alguns aspectos que se costuma protelar durante a análise do poema: o adjetivo "vã" que caracteriza momento (verso cinco); os ecos camonianos, que explicam em parte tanto a popularidade quanto a naturalidade com que Vinicius criou seus sonetos (veja-se, em especial, o oitavo verso ou a construção em antíteses); o significado do verso onze, que demonstra a tônica geral dos poemas de amor de Vinicius (amar para, depois, separar-se); a definição do amor como chama, que remete a Camões e a muito antes de Camões; e, por fim, a ideia que fecha o poema, que já possuía ecos em outros autores como Fernando Pessoa.
De resto, acentue-se que o papel de Vinicius de Moraes para o soneto no Brasil é de enorme preponderância, de modo que a imortalidade do Poetinha enquanto sonetista é uma justíssima homenagem ao mesmo.
Obs da Bel: não coloquei como quote por causa dos itálicos =)