Melian
Período composto por insubordinação.
Rememorar, respirar, reler e rever. Rememorar os caminhos que se percorreu ao ler O Senhor dos Anéis pela primeira vez. Respirar o ar que foi negado à Olga. Reler o mundo sob a ótica científica, e tocá-lo com as mãos da compaixão. Respirar o mesmo ar que os personagens constituintes de A Sociedade do Anel respiraram. Reler as palavras, ao mesmo tempo em que se é relido, e ressignificado, por elas. Rever Gandalf na capa de O Senhor dos Anéis e sentir uma vontade absurda de conversar com o mago. Saltar para o próximo mundo fantástico. Um olho no futuro e outro no passado; no presente, apenas os pés, para não cair. E, se cair, voar nas asas do ceticismo saudável, o único jeito de perseguir a verdade, e de ser encontrado por ela, enquanto paira entre o deslumbramento fantástico e o método científico. Enquanto busca o equilíbrio que, em um piscar de olhos, lança-te no absurdo. E recomeçar. Rememorar, respirar, reler e rever. Viver é um rasgar-se e remendar-se, disse Guimarães Rosa, mas viver é, também, negociar: consigo, com o mundo e, acima de tudo, com o impossível.
Eriadan disse:Depois desta apresentação da Melian que eu espero ter sido extremamente poética e lisonjeira (afinal só para isso eu fiz a minha lista), não quero estragar com outra introdução. Até porque vocês vão ver que eu já falei demais aí embaixo, mesmo que não tanto quanto o fcm. Comentem no meu tópico, porque eu comentei no de todos vocês, eu acho. Se não comentarem eu vou lá no de vocês e apago o meu post.
1. O Senhor dos Anéis (J.R.R. Tolkien)
Foi tentador não citar nenhum dos óbvios, que já apareceram em outras listas, mas seria um grande cinismo da minha parte deixar este de fora. O Senhor dos Anéis é o livro da minha vida, e se continua sendo, mesmo eu tendo enriquecido bastante o meu repertório literário nos últimos anos, eu arrisco que dificilmente deixará de sê-lo.
É claro que a importância da obra de Tolkien para mim, de um modo geral, entra nessa conta, inclusive por este fórum e tudo que ele já me proporcionou: o amadurecimento intelectual com as discussões, o prazer diário - e frequentemente válvula de escape essencial - de interagir com vocês e todos que conheci por aqui... só que eu queria destacar o livro, mesmo: as qualidades intrínsecas de O Senhor dos Anéis.
... Mas eis que estou há cerca de 10 minutos tentando pôr em palavras aquela sensação que muitos devem compartilhar, e que também devem fracassar ao tentar exprimir - não dá, não de um jeito que faça jus! Não sei por que ainda tento.
Nunca senti nada parecido com nenhuma outra leitura. E após todos esses anos desde a primeira, e após tantas sucessivas, duvido de que ainda não farei mais algumas releituras ao longo desta vida. É como se eu sentisse uma necessidade de respirar ali dentro de tempos em tempos.
Esta capa de Gandalf é de longe a minha favorita de todas as edições, porque foi a primeira que eu conheci, e a ilustração misteriosa e o calhamaço assustador foram o que primeiro me fascinaram. Também amo as capas coloridas dos três volumes separados (verde, azul e laranja), mas não têm a mesma "pressão"...!
De última hora, acabei deixando de fora Harry Potter e O Prisioneiro de Azkaban, porque, mais ainda do que por ter me apresentado à série HP, ele é especial por ter me apresentado ao gênero - que me levou a O Senhor dos Anéis. Ainda assim, fica a menção honrosa a Rowling, porque seu universo foi o meu maior passatempo durante boa parte da minha adolescência, e até hoje, volta e meia, ainda pego a série inteira para maratonar.
2. Crônicas Saxônicas (Bernard Cornwell)
O leitor fanático de uma obra vai sempre se decepcionar com qualquer outra, se tentar usá-la para reexperimentar as mesmas sensações. Nunca vai ser igual. Mas o leitor que for atrás de livros que, com propostas diferentes, utilizem alguns dos mesmos elementos que o arrebataram em sua obra favorita pode se dar muito bem.
Após O Senhor dos Anéis, eu passei algum tempo num estado meio ébrio em que só conseguia sentir prazer com a literatura fantástica. Aí descobri As Crônicas de Gelo e Fogo, que unia elementos de subcriação mitológica (que são a especialidade tolkieniana) com um brilhante enredo humano, em sua mais absoluta acepção (que nunca foi um destaque em Tolkien). Não precisei de muito tempo para devorar os livros disponíveis, e aqui deixo a minha menção honrosa.
Mas no vácuo de novos lançamentos, conforme o escritor foi sendo acometido por uma preguiça diabólica, e feita esta transição, continuei indo atrás de outras obras que "beliscassem" um pouco de Tolkien. Assim cheguei às Crônicas Saxônicas (série em 13 volumes), uma obra-prima da ficção histórica.
O Senhor dos Anéis, As Crônicas de Gelo e Fogo e Crônicas Saxônicas são, para mim, a tríade inabalável das sagas épicas modernas. Se Tolkien é imbatível na fantasia e Martin no enredo, Cornwell é o mestre do momento, da emoção!
Permitam-me brincar um pouco mais. O forte de Tolkien está no passado: aquele ar de que tudo que é narrado tem um plano de fundo histórico tão desenvolvido, profundo e convincente que parece incrível se tratar de um universo inventado; o forte de Martin é o futuro: a história nos prende pelos desenlaces, a gente está sempre ansioso para o que vai acontecer, e acaba se deliciando com os desdobramentos mais imprevisíveis; o forte de Cornwell é o presente: a narração vívida do clímax - os sons do campo de batalha, o medo que gela a espinha, o gosto de sangue, o cheiro da morte, a adrenalina...!
Tolkien nos cativa pelo sentimento; Martin, pela surpresa; Cornwell, pelos sentidos.
3. O mundo assombrado pelos demônios (Carl Sagan)
O livro que me fez criar um entusiasmo surpreendente pela busca de conhecimento científico. Aliás, eu acho que Sagan tenta demonstrar que não temos evidências de contatos alienígenas para ninguém sacar que ele é o ET Bilu.
Eu sempre fui um aluno ruim ou medíocre nas matérias de ciências naturais. Então, até há pouco, se viesse a cogitar, duvidaria de que pudesse despertar interesse tardio por esses assuntos, a cujo estudo sempre tive uma certa aversão.
Pois o livro operou a sua mágica. Aprender sobre o método científico criou em mim uma vontade exuberante de aprender sobre TUDO. Por que eu não fiz essa leitura quando ainda estava na escola? Quanto desperdício por não ter aproveitado aquele tempo, e pior, por ter perdido tanto tempo "estudando" sem o prazer de se descobrir a ciência?
A empolgação foi tamanha que eu desejei ter um filho, só para estudar com ele todas as matérias, para eu próprio aprender e para tentar incutir nele isso que chegou tarde para mim. Será que a gente só consegue se dar conta quando cresce?
Ah, e quantas lições! De racionalidade, de ceticismo... e de humildade, qualidade indissociável do bom cientista!
A raiz de todos os demônios que assombraram o mundo é uma só, e o remédio é a introjeção dos ensinamentos deste livro. É o único da minha lista que eu chamaria de leitura obrigatória.
4. Como chegar ao sim (Bruce Patton, William Ury, Roger Fisher)
Juro que não é para ser diferentão que eu inauguro aqui nas listas um livro de negócios. É que cada página foi um aprendizado para a vida.
Desde que comecei a me envolver com Direito eu me tornei entusiasta da solução pacífica de conflitos - que quer dizer aqui não "sem violência" (QUE SOU A FAVOR!), mas sem o Judiciário como decididor. O meu TCC foi sobre isso, e por algum período da minha longa angústia em busca de realização profissional (hoje arrefecida), eu considerei abandonar o serviço público para advogar com foco nesta área. Num dos cursos que fiz à época, recomendaram este livro.
A tese principal é de que a negociação bem sucedida não é necessariamente aquela em que você termina mais próximo da sua posição inicial do que o seu oponente, mas aquela em que se obtém o maior grau de satisfação possível de todas as partes envolvidas. Os autores sustentam que conhecer e trabalhar pelos interesses do seu oponente é tão importante numa negociação quanto não perder de vista os próprios. Esquecer posições: focar em interesses.
E foi dentro dessa lição que o livro transcendeu e abriu a minha cabeça. Aprendi a negociar comigo mesmo, antes de negociar com qualquer pessoa. Abandonar posições: quais são os meus interesses?
Parece uma lógica trivial, mas o nosso hábito não é aplicá-la. A gente sempre adota posições e se abraça a elas, especialmente quando estão impregnadas na nossa rotina, e com isso compra conflitos sem necessidade - e pior, perde oportunidades, porque às vezes essas posições não são as mais vantajosas para nós mesmos.
Essa ideia casou com uma filosofia pessoal que eu já tinha, e me ajudou a praticá-la: a de procurar, sempre, transformar problemas em oportunidades. Antes mesmo de partir para resolver o que se nos apresenta como um problema, procurar meios para se tirar proveito dele. Isso porque tudo que a gente interpreta como um problema nada mais é do que uma ameaça a uma posição em que a gente se sente confortável. Mas... será mesmo que eu ganho mais em sustentar essa posição, ou posso ganhar ainda mais se cedê-la, ou transformá-la? A gente raramente pensa assim: costuma se estressar com o problema e, quando não procrastiná-lo, procurar eliminá-lo o mais rápido possível, para meramente restituir o estado anterior.
As posições se estendem a opiniões formadas sobre qualquer coisa. Eu me tornei muito menos assertivo nos meus posicionamentos. Quanto do que eu afirmo e do que eu defendo vorazmente não são apenas para firmar uma posição? Quanto das demais perspectivas eu não estou deixando de ponderar quando eu planto os pés naquele "forte"? E pra quê? Pra quê "ganhar" uma discussão?
Foi o melhor livro de autoajuda que eu poderia ter lido, porque esta não foi a intenção com que ele foi escrito nem com que eu o li. Nem eu o recomendo com esse propósito. Para mim, aplicou-se como um manual inestimável de felicidade, mas para qualquer um não vai deixar de ser um manual fantástico de negociação.
5. Olga (Fernando Morais)
Eu citei livros que me ensinaram, que me transformaram ou que me entretiveram de um modo especial. Por último eu queria citar aquele que deve ter sido o que mais me emocionou. E também o incluí para recordar a mim mesmo de dar mais espaço a biografias, que é um gênero que sempre me encanta.
Eu era um adolescente idealista - e comunista - quando comecei a ler Olga, e naturalmente não foi difícil me identificar com ela, e admirá-la. E como se não bastasse se tratar da história de uma revolucionária, também estava relacionada ao nazismo, à Segunda Guerra e todos os assuntos que no colégio eram os meus preferidos (e do History Channel, e da Superinteressante). É um senhor trabalho jornalístico, e ao mesmo tempo um roteiro que nunca desanda. A gente fica preso à leitura como se já não soubesse no que as coisas iam dar.
Mas do meio pro fim, quando Fernando Morais abandona um pouco a narração e deixa as próprias cartas de Olga e Luis Carlos Prestes falarem por si, a minha garganta não parou de travar. Parece mesmo um roteiro de cinema (diga-se de passagem, não gostei do filme), feito para torcermos avidamente pelos heróis e perdermos o chão no final, com um ódio profundo pelo vilão - que é Getúlio, mais até do que Hitler. Essas cartas rasgaram o meu coração mais do que a morte de Baleia. Recomendo.