Melian
Período composto por insubordinação.
Certa feita, eu estava lendo um ensaio do professor Jacyntho Lins Brandão, quando me deparei com os seguintes dizeres: "interessamo-nos pelos gregos não propriamente porque são o nosso passado, mas porque nós somos o futuro deles". (grifos do autor). Acredito que a mudança de perspectiva acaba por lançar luz sobre aspectos que, quase sempre, ignoramos. Na esteira da proposta de fazermos o movimento inverso, temos Calib, anagrama que não diz apenas da influência de Bilac na poesia e, por conseguinte, na vida do Lufe, mas, brilhante e sorrateiramente, instaura um campo propício para o que Harold Bloom chamou de A Angústia da Influência. Não apenas o poeta Béla foi influenciado pelo Príncipe dos Poetas, como também a leitura que, hoje, quaisquer leitores fizerem da obra bilaquiana, após terem entrado em contato com o fazer poético do Calib, será influenciada por este.
Ainda no âmbito da dinâmica entre "influenciado" e "influenciador", impossível não falar sobre O Encontro Marcado, de Fernando Sabino. O referido livro, que figura na seleção feita pelo Béla van Tesma, é influência inconteste de toda uma geração. Quando criança, na escola, por ter se apaixonado por uma colega que era a primeira aluna da turma, Lêda, Eduardo Marciano, protagonista do romance, acabou se tornando o melhor aluno da classe. No fim do ano, no último dia de aula, ele disse à menina que não queria ser o primeiro da classe. Quando ela perguntou-lhe o que queria, "não sabia o que queria, e vida afora se faria cada vez mais infeliz, agindo como se soubesse". Viver é isto: agir como se soubesse o que quer, mesmo que não saiba e, por isso, ser consumido por algo que, também, não se sabe ao certo o que é. Viver é "puxar angústia", isto é, versar sobre temas habituais, como: o sentido da vida, a tragicidade da vida, dentre outros temas que só "vemos por espelho, em enigma". Nessa perspectiva, reunidos aqui, neste fórum de literatura, ao falarmos sobre nossos livros preferidos e o porquê de eles ocuparem um lugar especial em nossas vidas, não estamos, todos, puxando angústia? A literatura é essa coisa magnânima que, mais do que reunir pessoas de lugares e gostos díspares, coloca-nos diante de pessoas, que ousamos chamar de amigas, com as quais nos sentimos à vontade para "puxar angústia" pelo resto de nossas vidas.
Ainda no âmbito da dinâmica entre "influenciado" e "influenciador", impossível não falar sobre O Encontro Marcado, de Fernando Sabino. O referido livro, que figura na seleção feita pelo Béla van Tesma, é influência inconteste de toda uma geração. Quando criança, na escola, por ter se apaixonado por uma colega que era a primeira aluna da turma, Lêda, Eduardo Marciano, protagonista do romance, acabou se tornando o melhor aluno da classe. No fim do ano, no último dia de aula, ele disse à menina que não queria ser o primeiro da classe. Quando ela perguntou-lhe o que queria, "não sabia o que queria, e vida afora se faria cada vez mais infeliz, agindo como se soubesse". Viver é isto: agir como se soubesse o que quer, mesmo que não saiba e, por isso, ser consumido por algo que, também, não se sabe ao certo o que é. Viver é "puxar angústia", isto é, versar sobre temas habituais, como: o sentido da vida, a tragicidade da vida, dentre outros temas que só "vemos por espelho, em enigma". Nessa perspectiva, reunidos aqui, neste fórum de literatura, ao falarmos sobre nossos livros preferidos e o porquê de eles ocuparem um lugar especial em nossas vidas, não estamos, todos, puxando angústia? A literatura é essa coisa magnânima que, mais do que reunir pessoas de lugares e gostos díspares, coloca-nos diante de pessoas, que ousamos chamar de amigas, com as quais nos sentimos à vontade para "puxar angústia" pelo resto de nossas vidas.
1. “Poesias” (Olavo Bilac)
Numa única frase: o livro que me fez poeta. Enquanto os professores do colégio e do cursinho insistiam em nos envenenar contra o parnasianismo, na sua simplificação tacanha, lá estava eu, devorando os sonetos românticos da Via Láctea, ou os mais filosóficos de Tarde, ou ainda os poemetos épicos de Panóplias (“o livro mais radicalmente parnasiano do autor”, nas palavras de Ivan Teixeira). Foi sobre Bilac que escrevi minha monografia, a Bilac dediquei meu primeiro livro (mesmo que jocosamente), para Bilac escrevi algumas paródias, que é também uma forma de homenagem— e em sua honra é que assumi a alcunha de Calib (que não é mais do que Bilac de trás pra frente), embora soe um tanto árabe aos desavisados, e essa era a ideia, para despistar rs. Acho que o Príncipe dos Poetas fala por si mesmo; como é possível alguém ler “O Julgamento de Frineia” [1], por exemplo, e não se arrepiar? E quem não se emociona com versos assim?
DualismoNão és bom, nem és mau: és triste e humano…Vives ansiando, em maldições e preces,Como se, a arder, no coração tivessesO tumulto e o clamor de um largo oceano.Pobre, no bem como no mal, padeces;E, rolando num vórtice vesano,Oscilas entre a crença e o desengano,Entre esperanças e desinteresses.Capaz de horrores e de ações sublimes,Não ficas das virtudes satisfeito,Nem te arrependes, infeliz, dos crimes:E, no perpétuo ideal que te devora,Residem juntamente no teu peitoUm demônio que ruge e um deus que chora.
Só quem já tem o coração de pedra…
2. “O Encontro Marcado” (Fernando Sabino)
Livro que li no fim da adolescência, início da fase “adulta”, e que me marcou demais na época. Querendo saber se ainda me marcaria depois de muitos e muitos anos, reli-o em 2019, com meus 36 anos, e o livro continua soberbo. Foi só depois que eu descobri, na verdade, que o livro era justamente sobre essa fase da vida do Sabino, os seus trinta anos, e que foi considerado o romance de uma geração. É um romance de formação, por assim dizer, inspirado na própria vida de Sabino, sem que se torne por isso uma biografia — é um romance; portanto, ficção. Para quem curte Sartre (rs), foi chamado de “A Náusea brasileira” por Ignácio de Loyola Brandão [2], que o lera à época do lançamento. Gosto de ver o que o próprio autor tem a falar sobre o romance, se me permitem colher algumas linhas de suas memórias; elas já dão uma ideia do assunto do livro e do estilo enganosamente simples que o autor adota (mas, se estiverem cansados, pulem ao próximo livro da lista):
Aos trinta anos, minha vida havia chegado a um impasse. Eu precisava saber com que contava, para finalmente começar. Foi uma espécie de “apuração de haveres” — este seria a princípio o título do livro […]. Não teria condições de sobrevivência se não escrevesse sobre o que tinha vivido até aquele momento. Tinha um encontro marcado comigo mesmo. […]Há quem considere O encontro marcado o romance de uma geração. Para mim é apenas o da minha experiência pessoal. Mas faço parte de uma geração, e naturalmente suas características se refletem nos personagens que recriei à minha imagem e semelhança. […] Mas o interesse das novas gerações pelo livro é explicável: os problemas do jovem para se afirmar e atingir a condição de adulto sempre foram e serão mais ou menos os mesmos. Quase todo mundo tem nessa época da vida um encontro marcado consigo mesmo. […]Ao todo levei dois anos para terminá-lo. Tive de reescrever tudo três vezes. Fora mil e um descaminhos. Percorri vários atalhos sem saída, escrevi 1.300 páginas para aproveitar só 320. Perdia às vezes dezenas de páginas. […]Nada mais penoso para mim que a busca da expressão adequada, da propriedade vocabular. Há mil maneiras de dizer uma coisa e só uma é perfeita. Para descobri-la, a gente pode levar a vida inteira. Levei exatamente trinta anos para encontrar o final certo da novela O bom ladrão. Acredito que escrever seja, basicamente, cortar. Cortar o supérfluo. Eliminar repetições, ecos, rimas, cacófatos, redundâncias, lugares-comuns. Mas principalmente o excesso: como diz Otto (ou Unamuno, não lembro), é preciso não duvidar da inteligência do leitor. Tenho a impressão de que, ou ele me valorizaria muito, ou passaria a ter por minha literatura o maior desprezo, se soubesse o que ela me custa: aquilo que ele levou alguns minutos para ler me custa dias, meses, às vezes anos para escrever. (O tabuleiro de damas, I, 7.)
3. “Odisseia” (Homero)
Para quem, como eu, admira na mitologia grega sobretudo os mitos que envolvem o ciclo troiano, pareceria óbvio escolher a Ilíada dentre os poemas homéricos. E nem digo que não seja melhor; certamente o é sob muitos aspectos; mas a Odisseia é a minha favorita sob outros, a começar pelo impacto de sua primeira leitura, que nunca deixa de nos assombrar pela vida afora. Li o poema lá no começo da faculdade de Letras, em 2002, e só fui ler a Ilíada mais recentemente, em 2016, com outra cabeça e outra bagagem. Se a Ilíada é um épico de guerra, a Odisseia é um épico de aventura. E aí é que está o seu maior encanto, porque está cheia de peripécias e desafios; há um homem (Odisseu) e seu objetivo (voltar para Ítaca e rever sua esposa), e há toda sorte de empecilhos e perigos no caminho. Há deuses e monstros. Há sereias e ciclopes, Carídbis e Cila, os feácios e sua tecnologia quase mágica, os companheiros de Odisseu transformados em porcos e o porqueiro que reconhece o amo em sua volta a casa, e que trama com ele sua vingança sobre os pretendentes à mão da “viúva” Penélope, numa cena antológica. Enfim, são tantas as passagens memoráveis… Para quem planeja escrever romances de aventura e fantasia, a Odisseia é um prato mais cheio que a Ilíada, certamente. E há sobretudo um protagonista inigualável, misto de herói e cafajeste. Quem conseguir vencer os quatro primeiros cantos (“Telemaquia”), onde o ritmo é lento e pouca coisa parece acontecer, há de descobrir o motivo que faz este livro ainda ser lido dois milênios e meio depois de escrito. O que não é pouca coisa, vamos convir. O Rafael Brunhara coletou o proêmio da Odisseia em 26 traduções diferentes [3]; nem todas são traduções completas, nem todas estão disponíveis no mercado, hoje. Escolha a sua e leia. Eu já li a do Carlos Alberto Nunes e a do Frederico Lourenço.
4. “Duna” (Frank Herbert)
O primeiro livro que me causou raiva e tristeza pelo desfecho de uma personagem, ainda antes da metade, tal era o meu envolvimento com o enredo. É uma obra incontornável para amantes de sci-fi. Na verdade, acho que é uma excelente porta de entrada para quem acha que ficção científica se resuma a naves e robôs e tem preconceito com o gênero. Porque, vejam bem, em Duna não há naves nem robôs. É verdade que o homem coloniza diversos planetas e transita no espaço usando naves, mas isso não chega a aparecer na trama; é apenas mencionado de passagem, como pano de fundo. O robôs, por sua vez, estão proibidos no mundo; isto é, a inteligência artificial está proibida, devido a um evento traumático no passado. Então existem homens treinados para processar grandes quantidades de informação, como um computador humano: os mentats. E as tais naves, não podendo contar com o auxílio de uma IA, navegam pelo espaço em alta velocidade com a ajuda de um navegador humano embebido de especiaria (mélange), uma espécie de narcótico que lhe dá uma “visão além do alcance”®, permitindo traçar rotas e evitar colisões pelo caminho. É por essa razão que a tal especiaria é uma coisa tão útil e desejada: sem ela, não haveria comércio e exploração espaciais. E é por ser cultivada unicamente no planeta Arrakis que ela é tão rara e preciosa. E o planeta, claro, é tão cobiçado. Aí nesse planeta é que se desenrola a ação do livro. Um planeta desértico, habitado por minhocas gigantes [4] e disputado por facções rivais na política imperial, que também entram em conflito com o povo autóctone, os Fremen. Não tem erro, gente: é só ler para curtir. (A menos que a memória esteja me pregando uma peça, é basicamente esse aí o pano de fundo da obra.)
5. “Frankenstein, ou o Prometeu Moderno” (Mary Shelley)
É preciso cumprir a cota feminina, para não ser cancelado. Brimks. Foi o primeiro livro em que — lembro-me bem! —, quando ia lendo, me assaltaram as palavras de Italo Calvino, então bem frescas na memória pelas leituras da faculdade, definindo um clássico: “Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados, inéditos”. A gente pensa que conhece o livro, e o próprio “monstro” da Shelley, de tanto ouvir falar, de tanto ver em filmes ruins, adaptações medíocres (como a do videogame para Super Nintendo [5] ) — mas, quando pega a obra e vai conhecê-la em primeira mão, percebe que não era nada do que imaginava. Nem o monstro é tão monstruoso, nem o mocinho é tão livre de culpas. Um misto de sci-fi e horror, um clássico da literatura gótica. Nem muito curto, nem longo demais; do tamanho certo para o que pretende nos contar. Elegante, atmosférico, envolvente, emocionante. Eu poderia ter incluído aqui, neste lugar, o Drácula, de Bram Stoker, mas quis evitar a repetição de outras listas, e ainda mais porque, quando o li, já tinha visto o filme de Coppola, que lhe é fiel o bastante para anular essa epifania que o Frankenstein me deu na época, e que me marcou tanto que ainda a lembro.
Menções honrosas:
“O Evangelho Segundo Jesus Cristo” (José Saramago) — Em respeito ao autor que eu mais li na vida (cerca de uns vinte livros), acho que lhe devo esta menção. Foi também quem me ensinou a manusear o idioma sem nenhuma cerimônia e com grande intimidade.
“Hamlet” (William Shakespeare) — A peça que me inoculou o amor pelo teatro; depois é que viriam os gregos, os franceses, os americanos… E isso mesmo numa tradução em prosa meia-boca, do Millôr. O texto de Shakespeare é tão potente que sobrevive a esses percalços.
“As Cidades Invisíveis” (Italo Calvino) — Uma pequena joia da literatura do século XX; para ler em um dia e digerir por muitos outros.
“Cem Anos de Solidão” (Gabriel García Márquez) — Ainda acho que tem, na sequência final, algumas das mais belas páginas da literatura; devorei-as com sofreguidão. O livro todo é um primor.
“O Perfume” (Patrick Süskind) — Não me canso de recomendar este romance para todo mundo que eu posso. A premissa é genial, e o estilo do autor é uma delícia. Final surpreendente. Não acredite naquela merda de filme, por favor. É o tipo de livro instransponível para as telas. Leia o livro. Me agradeça depois.