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Cassandra

Luciano R. M.

vira-latas
[align=center]CASSANDRA[/align]
[align=right]Para Andressa M.[/align]

[align=right]“As sereias, porém, possuem uma arma ainda mais terrível que seu canto: seu silêncio.”
Franz Kafka, O Silêncio das Sereias[/align]


Lembro-me bem; era uma manhã de inverno quando eu cheguei no trabalho: o céu já estaria claro se fosse verão, mas nessa época do ano ele ainda estava cinza-azulado, como se a luz e a sombra ainda brigassem e não tivessem decidido quem permaneceria. Somavam-se a isso nuvens carregadas no céu, como se prenunciassem que algo aconteceria. Havia um bilhete sobre minha mesa. Isso não era nada incomum na realidade: como eram poucos funcionários os avisos eram todos enviados dessa forma.
Esse, no entanto, era de um conteúdo inédito. Era um convite para um funeral: senhorita Cassandra, uma jovem que trabalhava comigo, estava morta. A família convidava os amigos e colegas de trabalho para as cerimônias de adeus. Não éramos próximos. Nossa relação resumia-se a troca de cumprimentos simpáticos e a entrega dos textos, quando eu os aprovava. Além disso, sempre achei tais circunstâncias profundamente irritantes e incômodas. Não iria ao enterro.
Notei, no entanto, que não sabia como me portar diante da morte. Várias vezes minha mente se perdia entre pensamentos sobre a morte. Sobre a morte dela. Disso, ia para o nada: sabe-se lá quantos minutos eu ficava simplesmente olhando para o horizonte - obstruído por paredes, mesas e pessoas - e não pensando. Eu ficara visivelmente abalado: não pela morte em si, pessoas morrem todos os dias. Mas é que a morte de alguém conhecido - uma pessoa com um rosto e um nome, um ser tangível - sempre traz algo de incognoscível. O tempo se esvai, tudo acaba. Quando confrontados com isso, porém, é inevitável a sensação de perplexidade e de absurdo. Tudo na vida é assombroso, inclusive seu fim.
Você vai?
O que?
Ao enterro? Você vai?
Assim um colega tirou-me de tal estado de não pensar. Acho que não, não gosto dessas coisas.
Ah. Nem eu. Eu nem a conhecia direito, além do mais, tenho problemas em encarar a morte quando acontece assim.
Alguém jovem?
É. E toda a coisa do suicídio.
Ela se matou?
Foi, disseram que engoliu um monte de sementes de maçã, e isso a envenenou. Não sei se isso pode acontecer, mas é o que estão falando.
Meu silêncio decretou que cada um voltasse para seu respectivo trabalho, e para suas reflexões.
Cassandra suicidou-se. Sementes de maçã, quase como na expulsão do Éden. Mas nesse caso, foi a fruta toda. Mais difícil perder o paraíso do que a vida: consolo cristão? Foi só o que eu soube, enquanto as horas desenrolavam-se lentamente. Mas, por quê? O que a levou a tirar a própria vida? Ela era jovem, tinha um trabalho que realizava - ao menos aparentemente - com entusiasmo e que lhe garantia um bom padrão de vida. Não éramos próximos, logo não posso ter certeza... Mas seus belos olhos tão escuros não transpareciam nenhuma tristeza ou desespero.
Podia ser solidão, pois todos somos sozinhos. Chega a ser opressor: tantas pessoas, tantos nomes e tantas faces indo em tantas direções. E ainda assim, ninguém tem um rumo. Não sabem aonde ir, não sabem o que fazer. Encontram-se, conversam, tocam-se, entregam-se umas as outras, mas isso não faz o menor sentido. Somos apenas almas ocas buscando um preenchimento. E uma vez que temos um breve vislumbre desse preenchimento, um segundo que seja que nos sintamos completos, a solidão - antes banal - torna-se insuportável. Só que nunca poderei perguntar se ela percebia isso ou se preferia enganar-se.
Eu nada sabia a respeito dela, mas estava cada vez mais fascinado. Não sabia se ela tinha família, namorado, um ou mais amantes. Não sabia o que ela gostava ou desgostava, não sabia o que a fazia rir ou chorar. Até o momento ela fora somente uma bela garota que trabalhava comigo. Agora, como que despertas de um sono eterno pelo clamor da morte, tantas perguntas essenciais surgiam. E eu não poderia ficar sem as respostas. O que antes era um silêncio simpático, mas de outra forma indiferente, tornou-se agitação. De súbito, senti-me tomado por um imenso carinho por aquela garota. Uma imensa vontade de chorar.
Graças a seu suicídio, apaixonei-me por Cassandra. Acho que foi isso que me fez decidir ir ao enterro.
***
É curiosa - e igualmente dolorosa - a impossibilidade da memória: não consigo lembrar de um rosto quando não o estou vendo, isto é: sou capaz de reconhecer uma face mas nunca lembro exatamente como ela é. Eu diria que é mais difícil do que comer uma madeleine.
O dia passou devagar, eu trabalhava distraído. O breve diálogo com meu colega foi a única conversa que tive, de resto me ative aos textos. Mnemósine não me sorria enquanto eu tentava fazer um retrato mental de Cassandra. Eu lembrava de seu cabelo, de sua boca, do formato de seu queixo e mesmo do castanho de seus olhos. Mas não conseguia juntar tudo e formar um rosto. Ela assombrou-me durante todo o dia, o escritório era Elsinore: a vingança aqui chamava-se compreensão.
Finalmente terminei o trabalho. Fui para casa vestir o luto, por puro respeito a família: não acho que os vivos devam mais respeito aos vivos que aos mortos, e nunca vi ninguém usar uma cor especial para um nascimento. Via de regra, os vivos é que tem o que os mortos desejam.
A atmosfera era típica: lágrimas contidas, lágrimas copiosas, lágrimas discretas - como qualquer outro morto, Cassandra recebeu todos os tipos de lágrimas. Enquanto sua mãe desmanchava-se em pranto, alguns eram quase indiferentes, mais curiosos do que tristes ou respeitosos. Eu ficava, talvez, a meio caminho: não a conhecia, mas agora a amava. Não fui até lá apenas para prestar as honrarias macabras, mas para tentar conhecê-la.
Meus sentimentos. Muito obrigado. Que Deus lhes de força. Sempre as mesmas palavras. Sinto muito, Cassandra. É o que eu queria dizer. O mundo não foi aquilo que deveria para você. Acho que ela recusaria, se pudesse me ouvir.
Tinha uma irmã. Ou tem, não sei - foi ela que deixou de existir, e não a irmã: noto agora que a gramática está despreparada para lidar com a morte. Quase tão bonita quanto. Porém de olhos menos profundos.
Você trabalhava com ela, não? O editor da revista?
Sim. Mas como sabe?
Cassandra falou. Sempre falava: um dia lhe mostraria seus poemas, queria publicá-los. E ela falou algo sobre uns textos que você publicou. Muito obrigado por vir.

Eu mal a conhecia, mas ela sabia sobre mim. Queria mostrar-me parte de seu mundo. Queria que eu levasse isso para o mundo dos outros.
A conversa parou com o começo dos ritos. Foi nada mais que uma Dodendanz clássica: o padre e suas litanias: os vivos respondendo com enfado. A morta enterrada. Nós ficamos com a memória. Acho que seria melhor se ela tivesse sido cremada: Ignus mutat res. Deus, no entanto, prefere bolotas de carniça. Quer que apodreçamos, para que os pecados lentamente escorram do caixão.
Danse macabre: ainda que eu ande à sombra do vale da morte, não temerei mal algum. Sementes de maçã foram um suicídio adequado, Dante diria que ela virará uma árvore no inferno. Apolo também transformava mulheres em plantas, mas a Cassandra ele deu o descrédito.
Talvez seja isso. Uma profecia, a qual ninguém dará ouvidos. Como ratos abandonando um navio. Assim tivemos Tróia. Mas o que Cassandra quis dizer? Quando eu deixo o cemitério, já lunou. As estrelas têm seu brilho ofuscado pela cidade, tornam-se um nada. Isso é bom em dias como esse, nos quais elas seriam tremendamente opressoras.
***
A noite escura e a luz baça dos postes. Não vou para casa: preciso algo para preencher – ao menos temporariamente – o vazio que meu coração se tornou. Mas já não o era antes? Sempre foi. Sempre será. Mas agora dói. Ruas cheias de putas e vadios, e bares dos quais o cheiro forte de pinga e de uísque saia e alcançava minhas narinas quando eu passava. Talvez seja isso que eu quero. Mas não posso ter certeza, nunca estou certo das minhas vontades: sou um homem inconstante, incompleto e indeciso. Meus desejos na verdade são chamados impulsos. O irlandês disse que para se livrar da tentação é melhor cair nela. Melhor do que a inércia.
Pedi uma dose, do mais barato. Uma puta velha me pediu uma bebida, que eu recusei. A harpia lançou-me uma chuva impropérios, aos quais não dei ouvidos. Essa noite vou me trancar em um casulo chamado dor e não sairei de lá até ter pensado em algo: uma metamorfose, não sei se em borboleta, mosca ou até mesmo barata. Não sei a respeito do que sonharei enquanto estiver envolvido pela perda, não preciso de tanto sentido: meu sentido matou-se, e foi só assim que o descobri. É um nascimento póstumo.
Nunca escutei muitas estórias assim: já ouvi falar de homens que se desviam de seus caminhos – sempre trágico. Mas nunca ouvi falar daqueles cujos caminhos desviam-se deles. Talvez seja aí que reside o verdadeiro horror. As pessoas não falam sobre aquilo que lhes inspira horror, mesmo a tragédia precisa de beleza. Enquanto jantam, contam sobre homens que se corromperam e que se perderam, mas ignoram aqueles que não puderam perder-se: sequer tinham do que se perder. Com medo, pergunto-me o que acontece com homens assim, enquanto a água da vida - uisce beatha – deixa-me cada vez mais perto de Baco.
O bar era um retrato de decadência urbana: sujo, um garçom velho e desanimado, com a face marcada por uma vida tediosa e degradante. Senhoras que dependem da desonra para viver acumulavam-se, como numa vitrine; ao lado delas os bêbados. Mas a decadência é me é especialmente atraente em alguns momentos: não quero refinamento, não quero delicadezas: quero o rude aconchego da miséria.
Fui acolhido no reino dos ébrios, e me foi tocada a tecla do sentimentalismo. Quando dou por mim, estou chorando. Em parte, é por Cassandra. Em parte, não. Essa outra parte, talvez seja por mim, ou pela humanidade: certas vezes torna-se difícil distinguir entre o próprio sofrimento e o sofrimento do mundo: é como se a culpa pelo bebê que chora fosse minha, ao mesmo tempo em que eu sou tal bebê. Na maior parte do tempo, o homem é uma criatura infeliz, e eu sou o mais infeliz de todos nesse momento: aqueles que amam e aqueles que são felizes não são os mesmos.
Tento me levantar, mas a cabeça me pesa – como todo o resto. Minhas pernas já perderam a capacidade de obedecer-me, assim como as lágrimas. Cassandra! Como pude deixar isso lhe acontecer? Você existiu tanto tempo, sem que eu soubesse que lhe amaria. Agora que morreu...
Acho que minha cabeça está sangrando. O garçom me ajudou a levantar, e disse que não me vende mais bebida nenhuma. Mostrou-me a conta. Paguei, sem me importar com o troco. Não consigo deixar de pensar nas possibilidades, caso tudo tivesse sido diferente.
Mas não sei se eu lhe amaria, se ainda vivesse. A plenitude de possibilidades sempre abre espaço para as possibilidades mais pessimistas. Ulisses não poderá saber se as sereias realmente cantaram, sem tê-las ouvido.
Quase não percebo a chuva fina. Também não percebo o caminho que tomo.
 
Gostei muito do seu conto, Luciano. Muito bom mesmo, creio que é um assunto que apela a todo humano que se proponha a pensar no que há em volta por algum tempo. Realmente, a morte torna as pessoas mais sensuais, mais íntegras; é quase como se a morte tornasse finalmente uma pessoa digna de viver.

Espero sinceramente que continue a divulgar outras obras por aqui.
 
gostei da intertextualidade. a idéia do "se" tb é chamativa: se ela estivesse viva ele teria todo aquele sentimentalismo? realidades alternativas, mesmo em nossa mente, dão sempre bons textos. borges q o diga.
 

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