• Caro Visitante, por que não gastar alguns segundos e criar uma Conta no Fórum Valinor? Desta forma, além de não ver este aviso novamente, poderá participar de nossa comunidade, inserir suas opiniões e sugestões, fazendo parte deste que é um maiores Fóruns de Discussão do Brasil! Aproveite e cadastre-se já!

Carta ao Pai (Franz Kafka)

Lucas_Deschain

Biblionauta
[align=justify]Resumo da Wikipedia:

Carta ao Pai (em alemão Brief an den Vater) é uma das obras do escritor tcheco Franz Kafka. O livro é na verdade a publicação póstuma de uma carta que Kafka escreveu para seu pai e que nunca chegou a ser enviada.

Na carta, escrita em 1919 e revisada diversas vezes antes da morte do autor, Kafka discorre sobre sua relação conturbada com o pai, um comerciante judeu, autoritário e de personalidade forte, que sempre impôs aos filhos sua visão de mundo e que despertava em Kafka um conjunto de emoções conflitantes, do ódio pungente à mais profunda admiração. O livro é uma fascinante obra de arte, onde Kafka usa todo o seu talento em destrinchar a alma humana para mergulhar no relacionamento entre pais e filhos.

------------------------------------------------------------------------

Esse livro deveria ser a epígrafe de qualquer livro do Kafka, consegue sintetizar o sentimento que permeia toda a obra do autor. É essencial para compreender a plangência e o horror silencioso que se arrasta pelos seus livros. Vamos lá, quero muito discutir esse livro, acho que foi um dos que mais eu pirei, a cada parágrafo eu mental ou realmente dizia: "Caraca! Isso explica muita coisa!" ou "Putz, olha aí, é disso que ele estava falando!" e outras coisas nesse sentido, com mais ou menos palavrões de surpresa :dente:

P.S.: Todos podem e devem participar dessa discussão, mas os que se gastaram seus dedos e neurônios discutindo A Metamorfose no tópico aqui do Meia, tem a obrigação moral de participar XD[/align]
 
Posso estar só confundindo as coisas, mas me parece que, antes de sabermos tanto sobre a vida da PESSOA Kafka, seus contos eram "melhores": no sentido de permitirem mais leituras. Pelo menos, o enfoque "político" era sempre uma constante... Mas depois de saber seus problemas familiares, sempre acabo tentado a ver a explicação "familiar-psicológica" e vejo pouco espaço pra demais enfoques.

De todo modo, "A Carta ao Pai" é um senhor livro. Mas penso que deveria ser o último a ser lido do Kafka.
 
Acho que conhecer mais sobre o Kafka (e sobre qualquer autor) amplia a obra dele. Não me interessam sobre o Kafka, como não me interessam sobre qualquer autor, o número de leituras que se pode fazer da obra dele, até porque a interpretação de uma obra é invariavelmente um terreno poroso e especulativo.
 
[align=justify]
Zzeugma disse:
Posso estar só confundindo as coisas, mas me parece que, antes de sabermos tanto sobre a vida da PESSOA Kafka, seus contos eram "melhores": no sentido de permitirem mais leituras. Pelo menos, o enfoque "político" era sempre uma constante... Mas depois de saber seus problemas familiares, sempre acabo tentado a ver a explicação "familiar-psicológica" e vejo pouco espaço pra demais enfoques.

Também pensei isso quando li, mas foi a mesma coisa que me aconteceu quando li a biografia do Tolkien, daria para construir análises e interpretações baseando-se somente no universo particular (que vale a pena lembrar, não está descolado da teia de relações macro que o envolvem e condicionam). Conhecer o autor não significa querer interpretar ele somente a luz de suas crises pessoais e obsessões particularizadas (por mais que essas somente existam em relação ao contexto social mais amplo), mas sim complexificar a forma como podemos compreender as questões incrustadas na sua obra. No caso do Kafka, como exemplo, o pesadelo em que as obras dele se configuram não estão incrustados lá somente por causa da ação tirânica do pai (até porque essa se dá de forma social em alguma medida) mas também porque o contexto histórico-social mais amplo o influenciou também. A forma como a sociedade estava organizada, de que forma ele sorveu tradições literárias e culturais, que tipo de constructo moral e que sistemas de valores toldou sua escrita etc. e tal. Acho que essa complexidade é o que há de mais rico em aprofundar-se pelos caminhos da História e da Literatura. Fico empolgado toda vez que começo a encontrar esse nós e as amarras que se escondem por sobre a literatura. É fascinante! (tanto que torno-me verborrágico)

Zzeugma disse:
De todo modo, "A Carta ao Pai" é um senhor livro. Mas penso que deveria ser o último a ser lido do Kafka.

Talvez esteja certo ou quem sabe ele deveria vir de epílogo a todas as suas obras. Só havia lido A Metamorfose e acho que Carta ao Pai veio de encontro as minhas dúvidas em relação às questões que o livro nos leva a refletir (quem quiser tá aqui, ó) Carta ao Pai redimensiona qualquer interpretação que seja feita a respeito da obra do Kafka. É essencial (porém não absoluto) para compreender o terror e a perturbação que rastejam pela literatura kafkiana.

Rodrigo Lattuada disse:
Acho que conhecer mais sobre o Kafka (e sobre qualquer autor) amplia a obra dele. Não me interessam sobre o Kafka, como não me interessam sobre qualquer autor, o número de leituras que se pode fazer da obra dele, até porque a interpretação de uma obra é invariavelmente um terreno poroso e especulativo.

Não entendi o que você quis dizer. Acha que as leituras que se fazem da obra estão fadados ao relativismo? Acha que não interessa a quantidade mas sim a qualidade? Fiquei em dúvido Rodrigo.[/align]
 
Comecei a ler o livro e pude perceber que a relação de Kafka com seu pai é bem parecida da minha com meu velho... A diferença é que com Kafka o pavio havia estourado; comigo, estourou no passado, mas estamos muito bem amputados, obrigado.

E o que seria a família de Kafka? Seriam tão fantasmagóricos e invisíveis como estacas num pântano? O pai de Kafka reúne em sua pessoa todas as mazelas da sociedade kafkiana; ele é a unidade, é o centro dos males. É ele quem tenta, constantemente, metamorfosear o filho num inseto para melhor pisá-lo e execrá-lo; mas este filho, por sua vez, repetindo o que seu pai faz, realiza-o para com seus escritos, suas excretas e seus personagens (Kafka é um ilustre excretor :sacou:). A carta ao pai de Kafka se dá paralelamente aos personagens de Pirandello que procuram um autor; a diferença é que os personagens de Kafka procuram um autor melhor. Saem à procura dum Odisseu numa Odisseia; mas o Odisseu deles já havia, de muito, saído para outra Odisseia, de volta para casa: de volta para a casa que nunca teve.
 
[align=justify]É interessante perceber como o verbo "esmagar" é inclusive usado (o Modesto Carone comenta inclusive a respeito disso no posfácio da edição que eu li) nesse livro. Carta ao Pai é uma das possíveis chaves de leitura para a obra do Kafka. O pai tirano, que não se resume somente a vida doméstica, mas que cerceia outras dimensões da vida de Kafka (trabalho, carreira, planos futuros, relações amorosas etc.) parece ser uma figura onipresente e onipotente, não pela ação direta, mas pela incapacidade de Kafka de se desvincular de sua pessoa e de seu raio de influência.

Ao ficar preso na alçada do pai, incapaz de sair dela ou se subtrair a sua lógica, Kafka sucumbe aos poucos. Kafka fica preso entre a euforia de possibilidades que se apresentam fora das demarcações de influência do pai (o trecho em que a sombra do pai paira sobre o mapa-mundi é emblemática nesse sentido) e a incapacidade de romper com sua lei (por mais tirânica, arbitrária e egocêntrica que fosse), de modo que ele internalize a tensão que se apresenta externamente, deixando-o dividido, fragmentado, dilacerado e por fim, destruído.[/align]
 
É uma relação então conturbada mas necessária, como a de Dostoiévski e Deus ou como a do indivíduo com a sociedade. Kafka é dependente de seu pai como a família de Samsa era dependente de Samsa e como Samsa tornou-se dependente de sua família. Não seria a carta uma forma de reverter a situação? De tornar o pai de Kafka sombra de Kafka? (coisa que Kafka conseguiu com o passar dos tempos, convenhamos)
 
Mavericco disse:
Não seria a carta uma forma de reverter a situação? De tornar o pai de Kafka sombra de Kafka? (coisa que Kafka conseguiu com o passar dos tempos, convenhamos)

[align=justify]Não boto fé nessa análise, até porque o fim trágico de A Metamorfose mostraria a aporia em que ele se meteu. Parece não haver lugar para liberdade nem para escape na situação do Kafka. A sombra do pai paira por todos os cantos da sua vida, e ele não consegue simplesmente romper com ela no sentido de tomar uma decisão sem a aprovação do pai e não sentir-se culpado. A própria culpa, tão repetidamente aludida no livro, é o que Kafka sente em relação a existência tirânica do pai que lhe controla direta e indiretamente a vida.

Pode ser que a História tenha colocado a sombra de Kafka sobre o pai, mas não creio que o autor o tenha conseguido fazê-lo. Falo isso tendo lido somente A Metamorfose, OK? Por isso corrija-me se estiver falando besteira.[/align]
 
É possível que ele realmente não tenha conseguido sair da sombra familiar. Como Joyce, que, criando um personagem autobiográfico que ultrapassa a família como uma rede, Joyce, tal como Kafka, jamais conseguiu se livrar destes grilhões. É um tema recorrente na obra de ambos. Se Stephen sonhava com o espírito de sua mãe aparecendo-lhe de forma funesta; Kafka tinha consigo os vestígios do pai, como os vestidos que Vadim observa de sua primeira esposa em "Look at the harlequins!" (Vladimir Nabokov). É inegável, no entanto, que estes três artistas possuam seu passado como escopo para sua arte. O sofrimento e o amadurecimento do Artista Quando Jovem se dá apenas e exclusivamente nas sombras, como Virgílio aparecendo à Dante (I, Inferno). Tenta-se ser Dante, ainda que de forma tosca e artificial...

Se o exílio falso de Joyce era Dublin; se o exílio real de Nabokov era sua Rússia; então, o exílio falso de Kafka é seu pai, sua família, seu passado. Uma carta ao pai é uma carta ao Kafka dum passado que, na verdade, está próximo do presente...
 
[align=justify]Esse seu último post mais me confundiu do que outra coisa Mavericco, não li nenhum desses livros que tu referenciaste, foi maus.

O que quero dizer quando falo que Kafka não conseguiu escapar a alçada do pai (sendo o pai expressão restrita de um conjunto bem mais amplo de instâncias sociais tais como o trabalho, a vida regrada, a conduta burguesa de vida frugal e econômica, a moralidade que cerceava vôos mais altos e abstratos do espírito etc.) é o fato de que ele tem consciência das limitações que esse lhe opõem e lhe castra, consegue ver sentido em subtrair-se dessa lógica, porém não consegue fazê-lo, pois já internalizou os grilhões de tal forma que sua situação está mais próximo do colapso nervoso do que de quaisquer outras possibilidades de fuga.

O pai representa para ele toda uma sociedade cujos códigos ele não comunga mas não consegue desrespeitar. Essa dupla condição, que por tantos é facilmente atravessável (sem arrependimentos nem culpa) para Kafka representa uma fronteira intransponível, ou melhor, transponível, só que com um preço muito caro a ser pago, o da culpabilidade eterna, o tormento constante, de modo que ele não encontre felicidade plena (se é que ela exista) em nenhum dos dois campos: nem dentro dos domínios paternos, nem fora deles.

Esse tormento ecoa por toda A Metamorfose, uma servidão semi-depressiva, que ameaça abalroar a sanidade a cada momento, a cada nova reviravolta. O fato de Kafka ter ciência dessa sua condição é o que faz sua prosa ser tão contundente. Todos estamos enredados em grilhões de toda a sorte, uns se livram deles mais facilmente, outros não, outros nem mesmo o percebem, Kafka os viu mas não conseguiu deles se livrar de modo que sua obra (olha eu generalizando aqui de novo) foi inundada de auto-comiseração.

Putz, cada vez que posto acho Carta ao Pai mais elucidativo.[/align]
 
Então Kafka tentaria, com Carta ao Pai, se livrar destes grilhões ou, ao menos, tentar entedê-lo, tentar recapitulá-lo? Kafka é o artista sufocado! Acho que o artista que mais se aproxima dessa condição é George Orwell.

Creio que o Kafka quis mostrar, também, com seus textos, é o caráter cíclico e praticamente eterno das ciladas. Ele vê a Loteria da Babilônia (como você está lendo o Ficções, sei que pegou essa), mas quer mostrar que tudo, ou em todas as perspectivas, está no domínio dessa Loteria, como numa distopia aceitada. Se Samsa era massacrado pelas rédeas da família, como uma espécie de Ivan Ilitch; quando ele consegue, finalmente, se livrar dessa condição de cavalo e cocheiro, ele se vê inutilizado. O protagonista de O Processo é preso; e, quando ganha a liberdade, ganha a da morte. Às vezes parece que Kafka exagera nas penas que dá a seus personagens e a suas tramas. É um juíz metafórico porque condena ao nível dum absurdo nem um pouco absurdo. Chega até mesmo a ser visionário... O que nós prendíamos na ditadura e o que prendemos hoje em dia são milhares de Processos espalhados e regurgitados... Se Carta ao Pai é ao Pai, os outros livros de Kafka são cartas a todos nós. Ele não é tão direto como Orwell; mas ainda assim é um visionário...
 
[align=justify]Peraí que eu vou lá ler Loteria da Babilônia, ainda não cheguei nesse, minha leitura está interditada por falta de tempo, mas assim que lê-lo venho aqui responder.

De antemão já lhe digo que o ponto que irei aprofundar em meus próximos posts será o que você levanta aqui ó:

Mavericco disse:
Kafka é o artista sufocado!
[/align]
 
[align=justify]Não sei Mavericco, acho que não concordo contigo com respeito às comparações que fez com o texto do Borges (que, aliás, é fenomenal. Tem até uma referência velada ao Kafka, que no texto se grafa Qaphqa, maneiro). Acho que Borges (e isso é apenas minha impressão de primeira leitura) está mais para o metafísico, puxando quase para o transcendental, enquanto Kafka está atolada em níveis bem mais terrenos, se é que você me entende.

A prosa do Kafka é bem mais palpável nesse sentido. Enquanto o Borges está tentando localizar grandes horizontes a nível cósmico, o Kafka está enredado numa trama perversa em nível terreno, material, proximal. Os meandros que Kafka percorre estão diretamente ligados a sua personalidade, como você bem colocou, sufocada. Ele é o espírito acabrunhado que não chacoalhou os ombros sob o peso do ônus da sua existência, ele sucumbiu a ela.

Reitero o que disse na minha resenha de Na Colônia Penal: Kafka tinha tudo para explodir, como tantos outros escritores e pessoas já o fizeram em suas vidas, mas o que o torna peculiar é justamente sua implosão. Isso é o que faz sua literatura tão aflitiva porém tão diferente, tão memorável, tão singular: ele é o espírito que sucumbiu, não porque era menos do que se esperava que ele fosse, mas porque, por ser diferente, ele não conseguiu se fazer visível, ele foi esmagado (assim como Samsa, o oficial de Na Colônia Penal e sua personalidade angustiada de Carta ao Pai) pelas circunstâncias sociais (tanto familiares quanto históricas e societárias).

Justamente por estar desse 'lado' ou ter sido cozido em tal caldeirão é que Kafka foi o escritor que foi: seu relato é o relato do 'lado' que não conseguiu se fazer valer, que se viu afogando num mar de idéias, modos de vida, culturas, burocracia, difíceis relações familiares etc. que não o aceitava e que engoliu-o com o passar do tempo.

Conseguiste me entender?[/align]
 
Talvez possamos interpretar a obra de Kafka à luz de Carta ao Pai e chegar realmente a essas conclusões já mencionadas. Isso se levarmos em consideração o esquema psicanalítico de interpretação. Mas gostaria de provocar um pouco e propor o contrário: interpretar o texto à luz de tudo que já lemos do autor. Assim, me parece, antes de entendermos textualmente como se referindo, pode ser mais uma parte do painel que Kafka compôs. O Processo e O Castelo, dois dos meus preferidos dele, me parece que perdem o impacto se entendermos como extrapolação da relação com o pai. Parece que Kafka tem um universo muito mais abrangente que o complexo de édipo em mente. Só minha opinião...
 
[align=justify]Concordo contigo Marc, e é por isso que coloquei lá em cima que Carta ao Pai não pode ser a única chave de leitura que podemos ter. Ela representa parte importante de um painel mais amplo, é primordial mas não absoluta.

O Zzeugma sublinhou bem essa preocupação, até porque deve haver muitas análises reducionistas, que procuraram entender tudo que o Kafka publicou pelo viés da relação com o pai ou sob a luz desse livro em específico.

Mas isso não nos impede de tentar avaliar o impacto desse livro sobre o conjunto da produção kafkiana.[/align]
 

Valinor 2023

Total arrecadado
R$2.434,79
Termina em:
Back
Topo