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Camila (ou Sobre a construção do grande Amor)

L. Mob

Usuário
[align=justify]Não tomava banho há dois dias, foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu ao piscar lentamente, com o celular tocando em algum lugar desconhecido. Também não escovava os dentes e não sabia a aparência que tinha havia esse mesmo tempo, pensamento que lhe ocorreu ao levantar trôpega e tatear em busca da chamada. Não atendia telefonema, sequer lembrava a última refeição, se é que podia chamar o que comia de refeição. Atendeu sem olhar a quem, a voz do outro lado parecia saída de um sonho distante, difuso. Camila respondeu com alguma normalidade forjada: Bom dia. Suspiro. Não, nada planejado... Certo, eu espero, até mais. Beijo.

A água atingiu-lhe morna e mais agradável do que podia se lembrar. A cabeça agradeceu seu toque. Lembrou de quando era criança e lambia o sabonete com a ponta da língua, sem entender como uma coisa com cheiro tão bom tinha gosto desagradável. Provou o sabonete novo, ainda tinha sabor de sabão. Vão trabalhar séculos para desvendar o desdobramento espaço-temporal, gastar fortunas equivalentes ao PIB de pequenos países na fabricação de armas atômicas e continuarão a nos vender sabonetes amargos por toda a eternidade. E nós pagaremos por eles, todos. Pagaremos por essa comida enlatada nojenta, trapinhos da moda que mal escondem nossas vergonhas, design exclusivo. Nada que valha um segundo de nossa consideração às vésperas da morte ou de qualquer situação deveras importante. Para tanto, crescemos, sofremos, tomamos banho e escovamos os dentes todos os dias. Para viver mais entre tralhas inúteis. Somos todos índios colonizados, trocando nossas felicidades por espelhinhos e miçangas, cujas vidas não valem um palmo de renda francesa.

E com um palmo de renda francesa cobriu suas vergonhas, e vergonha aqui queria dizer genitálias. Enquanto o fazia, sentiu-se assassina de dois índios, um para a calcinha, um para o sutiã. Silenciosamente, desculpou-se a suas famílias. Minhas condolências à família da costureirinha que perdeu a juventude costurando todos os vestidos das moças de boa família- o que não era seu caso, nem de nenhuma delas – vestidos de sedas que nunca cobririam os corpos de costureirinhas. Calçou os sapatos esgotada, perdoem-me as crianças nos porões dos países distantes do oriente, 18 horas por dia sem ver a luz do sol quer dizer nunca ver a luz do sol. Você não conhece o processo daquilo que consome e o que você não enxerga não existe para o seu mundo, à exceção de deus. As vidas destruídas não são problema seu, deus vai cuidar delas.

Finalmente, olhou-se no espelho: não feia, não elegante, não esquisita, deslumbrante tampouco. Camila estava bonita e bonita cruzou a porta de saída de casa, ou a porta de entrada para o mundo, calculando os tantos mortos embaixo da suas solas made in china. Foi assim formado o planeta, de carcaças empilhadas, todo o sangue escoando para o seu centro para, por vezes, borbulhar em lava e começar onde tudo acabou, ou acabar onde tudo começou, mas Camila estava bonita e a tarde ensolarada prometia uma noite sobre lençóis egípcios. Acompanhada. Ela não saberia diferenciar um lençol egípcio de outro qualquer nem que sua pele fosse feita da mesma matéria.[/align]
 

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