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[Paganus] Ubiquidade [L]

Paganus

Come to van, I have candy
I

As rodas deslizavam velozes por vias que sumiam de vista, a extrema velocidade do meu pensamento, o cansaço do dia que começava, o torpor do calor de fevereiro, os novos cheiros e a visão dos uniformes, novos para mim, tudo se somava na distância do olhar perdido no imanifestado. Lembro de ti como um casaco amarrado no quadril, cabelos ondulados amarrados para trás, face amarrada, braços cruzados; eu amarrava meu desgosto por ti no cangote do meu pensamento, no cabide vazio do meu coração.

II

O menino novo me olha de forma estranha, aliás, é totalmente estranho. Bonito de feições, mas amarrado de cara, nada diz nem murmura, apenas fita calado o horizonte. Ela me disse que o conhecia, que sempre foi assim, fechado, tímido e esquisito. Vejo que me olha sem me ver, não me reconhece. Por que não me reconhece? Por que não me vê, assim, especial como sou? Não o seria? Para ele... não?

III

Não gosto dela, absolutamente.
O tempo passa, veloz, o clima quente e úmido cede espaço a um tempo frio e ainda mais úmido, chuvoso. Paramos na porta do apartamento dela, por onde vem voando, sempre preparada e rígida nas formas, a feição igualmente dura, igual como sempre. Ela vai despejar seus juízos, atenção, vai julgar e determinar os destinos dos indivíduos com sua régua! Atenção. A estreiteza de espírito, a rigidez de Saturno, personificada, fala através dela. Desgosto e fastio. Não a suporto.

IV

O que pensa quando me olha assim? Me vê com desprezo ou desejo? Será que poderia ser desejada, ainda? Depois de tudo? Somos tão jovens, mas eu fui tão ferida, tão machucada, não sei se poderia amar ainda. Mas ele me olha. Vejo tédio no olhar dele para fora e certo ressentimento quando falo, parece que ele quer me responder, se dirigir a mim. Por quê? Por que não fala?

V

Dentre os seus juízos, aprecio os que louvam a força e diminuem a fraqueza, mas odeio como ela não tem empatia alguma. Como é carinhosa nos gestos e fala de forma tão dura. A desgraça dela me agrada, hoje enfrentou um grande desapontamento, mas até quando chora ela parece humilhar os demais, torná-los inferiores, e os vê como subalternos lutando de forma blasè por notas medianas enquanto ela se mata pelo topo.
Confesso que não tenho pena.

VI

Chorei, é verdade, mas foi por fraqueza. Eu deveria aceitar a derrota como a vitória, com resignação, deveria pegar o que errei e trabalhar em cima disso. Foi assim que sempre fiz, foi assim que me ensinaram. Mas não consigo, me comparar a eles, parecer pequena, e diante dele. Não sou pequena! Não sou comum! Devo vencer. Sempre. Sempre! Mas estou perdendo. Por que olha e não fala nada? Nada?

VII

Ao contrário do que ela pensa, não a odeio. Consigo sentir sua dor, sei por que ela chora, e se detesto como ela reage a isso, não a culpo. A derrota foi o monstro com o qual temos todos de nos confrontar, mais cedo ou mais tarde. O meu monstro sempre foi meu conhecido, um amigo de longa data, que domestiquei, alimentei e acostumei a ter comigo, mas o dela... é seu inimigo. Talvez eu pudesse ajudá-la... mas não sei se ela merece. Pode ser bonita, mas é detestável, é tão patético como se recusa a demonstrar fraqueza.
Hoje ouvi uma música diferente, o som do riso dela. Já ouvia visto antes, claro, mas não pensei antes em como era sarcástico, cheio de veneno e como seus olhos chispavam fogo. Que menina desagradável! Não consigo parar de olhar.

VIII

Ele não para de me olhar, e não com a mesma expressão.
A viagem parecia mais longa do que o normal, e nos sentamos distantes um do outro, só conseguia ver como ele era quando se soltava, maluco, dizia cada coisa! Era inteligente, mas irresponsável, incapaz de se dedicar com afinco e responsabilidade às coisas. Todos eles me cercavam, me faziam graças, riam das minhas críticas, das fofocas da semana passada, e a excitação da viagem tornava tudo mais doce, mas nada era mais suave que teus cabelos levados pelo vento, quando se levantava pra falar alguma besteira, quando ouvia a voz rouca, calma, doce como mel, caindo pelos meus ouvidos entre risadas estridentes. Quero pra sempre te olhar, te ouvir, te ter perto dos olhos.

IX

Senti medo de te perder quando as rodas cantavam à noite, me abandonando ao lar, lar exilado de ti, entregue à sorte de enfrentar a vida sem o som do teu riso. E me acostumava aos ritos noturnos do fechar de portas e tremeluzir de faróis que passavam, esperando o fim dos espetáculos, a liturgia da alimentação perdida em pensamentos, e me esquecia de como era viver sem pensar em ti. Na minha cabeça, estás em todo lugar.

X

A noite caía demorada por sobre os telhados vizinhos, a casa defronte, e pensei em descascar a memória do dia antes de dormir, descascar, tentar encontrar o âmago da minha perturbação do dia, e de antes, e entender porque a concentração demorava a vir. Por que teu olhar cai demoradamente sobre o meu coração? Por que me olhas assim? Ninguém me olha assim.

XI

As informações subiam com o vento, e sentia que não podia dar conta de todas elas, de todas as vozes, pessoas, para as quais havia um tratamento diferente e específico. Minha atenção ia e vinha, e meu desgosto pela arrogância cotidiana com que falavas e ultrapassavas as chateações de sempre se misturava com um quê de fascinação. Por quê penso tanto em ti? Assim, sem parar, sem trégua? Sem paz nem fim?

XII

Subia a fumaça do almoço de cada casa, no horário terminal em que me preparava para te reencontrar, te rever, cruzar meus olhos pequenos e firmes nos teus, grandes e moles. Durava uma eternidade cada garfada, subindo com as batidas do meu coração, esperando o rodar dos pneus, o dia que realmente começava depois do almoço, aguardando o convite que não vinha. No entanto... sempre estavas lá, a me olhar.

XIII

Aguardava a possibilidade de te ver, tremia com a incerteza, sempre certa, da tua presença. Temia te ver e o que tua presença causava dentro de mim. Abominava não te ver e pensar em ti sem parar, por toda a viagem, tentando abafar os sentimentos que me entregariam.

XIV

O tempo passa rápido demais, e não vens. Te espero onde não estás, onde não virás, penso e sonho, e não sei como parar. Só paro quando vejo, só quando te ouço meu coração, batendo forte, se aquece e esqueço de mim. Mesmo quando não me olhas, sinto tua presença colada na minha.
Falando tanto assim, quero você sempre perto. E quando está mudo, está fazendo suas coisas, lendo, escrevendo, desenhando, fazendo suas artes, exercendo essas habilidades temíveis que não domino. É quando mais te amo... amo? Isso é... amor? Não, não pode ser. Por ele, não.
Mas quero saber. Quero te ouvir falar, de línguas antigas e fictícias, de reinos perdidos, de escritas misteriosas. Será que sabes? Que te bebo em pensamento? à exaustão?

XV

A atenção que me dedicas me assusta. Não sei ser tão feliz, não consigo aguentar tamanha felicidade. Se amo teu rosto, se desejo teu corpo, se admiro tua força, tua resistência, tua determinação, o que dizer dessas conversas? Quando me vê como um igual, sinto que posso me abrir, levantar voo e revelar quem realmente sou, um pensamento profundo no abismo. Consegues ver? Como me desnudo perante ti? Como o pensamento voa, pousa em ti e se aninha nos teus braços? Agora, para qualquer lugar que olho, lá estás.

XVI

Como sempre, redimensionou a própria falta, e agora se encerra na tua concha. Típico. Mas já estou me acostumando.
Dessa vez vou te esperar, esperar você se curar, e quando a poeira baixar, quero te ver com coragem, com firmeza, me dizendo o que quer tanto dizer. Porque sei agora porque me olhas assim. É também como te olho.

XVII

Meu coração ficou ferido demais, porque não soube te valorizar, nem te respeitar. Por tempo demais.
Se te via, meu coração se enchia de culpa. Por isso, preferi não te ver. Não mais. Por um longo tempo.
Eu sei que me esperou, por tempo demais, mas eu não podia. Eu não havia entendido, ainda não entendi o que aconteceu comigo. Conosco. Não estava preparado, ainda não estou, e me pergunto se um dia estarei preparado para tanto amor, para te ferir e me desculpar, para aceitar teu perdão, para brigar de novo, para reconciliação, para remendar. É... difícil demais. Dói demais. Não, agora não dá, não. Me dá um tempo. Só um tempo... alguns anos. Para que eu possa entender.

XVIII

Eu esperei por tempo demais. E você não veio. Como você esperava e sabia, eu segui minha vida, segui sonhando, continuei na estação esperando o trem passar e embarquei para o meu próximo destino, sem medo nem pudor, mas sem nunca te esquecer. Você será sempre minha lembrança mais querida, o tesouro da época da inocência, quem eu mais amei, mais profundamente, mas sem esperança, sem intenções, só... o puro evento do amor. Espero que entenda.

XIX

Não virei.
Até muito tempo, quando o medo da morte bater, quando anos tiverem passado, quando formos outros e tivermos mudado tanto que não nos reconheceremos mais, quando eu começar a acreditar em mim, e quando esse amor tiver se tornado tão grande, inchado e poderoso que eu me cansar de ter a vida emocional articulada em torno dele. E eu te levarei ao limite, da confiança, do medo.

XX

Por que vens? Por que veio? Agora? Por quê? Por quê? Por que vem agora, quando meu castelo está tão bem alicerçado, quanto tenho tudo que preciso, quando controlo tudo? Não temos nada pra conversar.

XXI

Entendi.

XXII

Por que não vais embora? Do meu coração, do meu pensamento? Da minha memória? Eu te procuro, te vigio, nas redes sociais, e vejo o mesmo olhar, o mesmo, de anos atrás. Te procuro nas cartas, nos olhos da mãe-de-santo, nos rostos dos amigos daquele tempo, nas fotos antigas. Sempre o mesmo olhar. Por que te olho assim?

XXIII

Esqueceu? Não adiantam nada essas tuas torres.
Porque agora estou em todo lugar.
 
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