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[Paganus] Descaso[L]

Paganus

Come to van, I have candy
I

A lufada de vento quente que o acariciava não o acordou, não até que o sol lhe batesse em cheio no rosto. A janela não tinha vista para a praia, mas refletia um raio de sol que inundava as enormes paredes do prédio em frente, vizinho ao seu, paredes altas, íngremes e sujas de limo permanente. O planejamento urbano da cidade não era capaz de prever o "boom" imobiliário sazonal. Isso significava, pessoalmente, que podia alugar um apartamento que não fosse longe nem da praia nem do centro, dois focos de inspiração para um artista das palavras, um lugar que podia pagar. O problema era que o prédio sujo era quase literalmente colado ao seu, bloqueando a luz do sol nas tardes modorrentas de verão e inundando seu ambiente de trabalho com o ruído insuportável dos vizinhos.

Esses problemas agora pareciam distantes da sua realidade. Precisava escrever uma crítica de uma revista de moda, para a qual devia flexionar os músculos de seu intelecto e usar toda a sua inventividade verbal e composicional para entregar algo que pudesse passar por ter sido escrito por um eminente crítico, um empregado pelo jornal local de maior circulação, seu contratante. Aliás, foi através de um funcionário de um desses jornais que fiquei sabendo de sua história, um amigo próximo dele que havia abandonado a literatura. Adoro colecionar histórias, e essa aqui é particularmente interessante. Adriano (esse é o nome dele) não entendia nada de alta culinária ou do mercado editorial dedicado àquele nicho, menos ainda dos hábitos sociais daquela ruína que ainda se chamava de classe alta, o que fazia era criar por cima de apontamentos do editor, notas mal escritas, truncadas, quase como um esquema de cola de prova de história. Ele venderia sua criação, deixaria de ser sua, mas o conteúdo não era seu mesmo. Assim, sobrevivia. No começo, se martirizava, achando que estava prostituindo suas capacidades. Agora, via isso como um bom treino para o trabalho de verdade e já era tão consciente de suas habilidades, do efeito que estas produziam nas pessoas quando liam algo escrito por ele, que achava que podia se dar ao luxo de desapegar de baboseiras que lhe pagavam para escrever. Mas era sempre um parto, ele precisava parar, sentar, pegar o notebook e começar a digitar, mas... a serenidade de espírito, condição sine qua non para seu trabalho, estava difícil de manter, de ser evocada, de estar presente.

Não conseguia parar de pensar nela.

E isso significava que olhava a todo momento para o smartphone para ver se ela lhe havia respondido. Nada. Não podia confiar nas notificações do aplicativo de mensagens, ou na própria interface do aparelho, precisava desbloqueá-lo, abrir o aplicativo. Nada. Isso não era o suficiente, talvez ele tivesse que abrir a conversa, verificar se ela não estava digitando a resposta, e talvez não pudesse confiar nos sinais que indicavam que ela tinha visualizado a mensagem dele há cinco dias atrás.

Já há algumas semanas a seguira em uma variedade de redes sociais, como uma tentativa de se manter perto da sua vida, suas atividades, as imagens de sua presença social, mas apenas no perfil público. Ela era uma digital influencer: ganhava dinheiro com anúncios que prometiam mundos e fundos às pessoas, vendiam de tudo, e sua audiência, majoritariamente masculina, nem fingia estar ali por isso, estava pelas suas fotos, mais ou menos sexualizadas. Acompanhavam suas idas ao mercado, fotos de viagens nacionais e internacionais, e vídeos dela levando o cachorro ao veterinário e coisas do tipo, uma estranha modalidade de negócio que está se tornando muito popular hoje em dia. A ideia, segundo os entendidos, era de fornecer um quadro vívido e realista da vida de uma pessoa que abdicava de sua privacidade para o deleite de fãs, com quem compartilhava os eventos de sua vida, mas... só até certo ponto. Não mostravam tudo (nem poderiam), mas apenas o suficiente para entreterem as pessoas sem sacrificarem demais.

Já o perfil mais privado, neste ela o bloqueava, o abria apenas para os rapazes mais populares da faculdade, mais ricos, das famílias com nomes grandes e difíceis, e usava o mesmo critério para as amigas. Populares, ricas, ou pelo menos as bem relacionadas com figurões da cidade. A insistência dele, porém, de aborrecimento foi se transformando em prazer, em vaidade. Não era feio e já possuía alguma fama dentre alguns círculos da alta como um redator eficiente e escritor de futuro, prestes a publicar seu primeiro livro por uma grande editora. Foi então que ela abriu seu perfil pra ele. Até certo ponto...

II

Haviam se conhecido em uma festa a bordo do transatlântico Le Tanneur, na sua partida do porto imenso. A intenção era relatar tudo que via, ouvia, tocava e provava no jornal maior da região: fora subcontratado por um repórter conhecido, o Vieira, amigo de um amigo meu, uma das fontes que gerou essa história. O rapaz, registramos que se chamava Adriano, o acompanhava, carregando sua valise e se esforçando por anotar suas impressões em um caderninho de protocolo, sujo e meio borrado de gordura, maltratado pelo uso. Em um dos momentos da festa, seu mestre foi apresentado a um médico de certo renome, que viajava com a família: a mulher e duas filhas, uma mais velha e apagada e uma na fina flor dos vinte e poucos. O pai da família era calvo como um ovo, apenas ostentando uma penugem grisalha nas laterais da grande cabeça, uma formidável cabeça que se projetava como uma ogiva branca e reluzente de um corpo franzino e inchado, envolto por um terno de festa, meio abarrotado e um pouco sujo na gola. Tinha mãos grandes, peludas e assombrosamente brancas, com unhas perfeitas, mãos de médico-cirurgião, mas o que mais chamava atenção eram seus olhos meio vesgos, desatentos, parecendo sempre estar buscando algo na multidão, mas penetrantes, o que contrastava com o tom fraco do azul que eles mostravam por baixo dos óculos de armação de metal, pequenos e discretos. A mulher, por sua vez, era uma negra alta, com cabelos alisados, deslumbrando a festa em um terno feminino bege, muito próprio, com mãos fortes de dedos longos e unhas vermelhas, vermelhas como o batom. Era juíza do Estado, o que se podia adivinhar pela postura ereta, maneiras polidas e contidas, algo cerimonial e muito correto. A filha mais velha, Simone, usava um vestido bege, mas com bem menos graça que a mãe, e uma sandália dourada como a demonstrar sua primogenitura, um bonito anel de brilhantes nas mãos magras e de unhas feias, meio roídas. A moça era bonita, mas muito magra e excessivamente alta, com os dentes um pouco projetados para a frente, olhos claros, azuis, apagados como o do pai. Não escondia ser o patinho feio da família com sua timidez, apesar de ter uma pele morena de fazer inveja a muitas celebridades.

Clara, a filha mais nova, por outro lado, era um tipo diferente de criatura. Tinha radiantes olhos verdes, uma bela cabeleira loura, bem tratada, não descuidada e quebradiça como a da irmã, uma pele clara, branca como leite morno, e dava o ar de sua graça em um vestido limpo, claro, com sandálias prateadas, amarradas até pouco abaixo do joelho, com unhas pequenas, mas tratadas. Tudo nela inspirava frescor, alegria de viver e um medalhão de bom comportamento social, do seu perfume aos seus modos, sorrisos fáceis e um dar de mãos aristocrático que fazia com que aquele que lhe cumprimentasse se sentisse como o fiel grego da época helenística, se prostrando com elegância e olímpica reverência diante de divindades de mármore. Pelo menos assim se sentiu Adriano quando aquela deusa, Clara, lhe deu a mão para beijar, com uma graça leviana: quando ele a tomou e beijou, ela a recuou depressa, sem o menor sinal de contrariedade ou fastio. Estava em seu ambiente natural e não era qualquer arroubo apaixonado ou trapalhada caipira que a tiraria de seu centro.

Não eram ricos, mas bem relacionados, a viagem fora um presente de um delegado de polícia pelos préstimos do doutor, cuja perícia em ocultamento de evidências lhe salvara a carreira. Sentaram-se à mesa da família por uns instantes, pois Vieira tinha assuntos a tratar, algo urgentes, com o Dr. Genival. Adriano trocou algumas palavras com Simone, parecia que ela estudava Direito por imposição da mãe, a qual nem lhe olhava: todas as suas atenções, como a de tantos cavalheiros e damas da festa, eram dedicadas à filha mais nova, a joia de seus olhos. O contato foi mera formalidade, sem sequer simulação de alguma sinceridade, exceto por parte de Simone, que pareceu muito interessada em Adriano, quando ele começou a lhe falar do seu ofício artístico. Enquanto se entretinha com a moça mais velha, o rapaz pode se distrair do entorpecimento que a figura angelical, o cheiro de pantera e as graças naturais de Clara lhe causavam, mas logo tiveram que se levantar, pois outros, mais importantes, vinham cortejar a família. O nervosismo dele talvez se explicasse pelo ambiente refinado, pelo fato de seu chefe entreter conversações longas e pretensamente eruditas com uma série de personalidades que embarcaram no navio, incluindo políticos, e até sumidades pseudo-literárias que Adriano desprezava do alto de seu sacerdócio nas artes verbais. As poucas horas que ali passaram foram de intenso sofrimento moral para ele, intensificado, talvez, pelo ar de autoridade cívica que a família de Clara emanava, pelo distanciamento de toda esfera que se pudesse chamar de comum.

Quando se afastaram da mesa, porém, conversando com outros convidados para o jantar no salão maior do convés principal, se sentando, apreciando a música da banda, trocando drinques e saboreando uma comida pavorosamente cara e intragável, seu olhar se desviava cada vez mais para Clara. Logo, o olhar chamou o pensamento, e este, traiçoeiro, forçava sua mente a se descuidar de reflexões e apontamentos sobre a recepção do navio e a elaborar hipóteses sobre a encantadora moça: 'Teria namorado?'; 'Teria alguma chance com ela?'; 'E se lhe falasse?' etc, etc.

Torturou-se assim por minutos, buscando desviar o olhar da moça que nem dera mais pela sua existência, até que foi desistindo de tentar resistir. Em menos de uma hora, nada mais havia naquele navio, ou mesmo no mundo, que importasse tanto quanto o que ela dizia, ainda que inaudível, como mexia nos cabelos, como sorria faceiramente para jovens e velhos cavalheiros, como ajeitava o decote, como manejava delicadamente os talheres sobre seu prato. O jantar durou pouco mais de duas horas e o rapaz estava completamente perdido. Da sobremesa só recordaria como de um sonho, uma sombra a lhe perpassar os olhos, sombra quente e cheia de encantamento e desilusão. Indo ao banheiro, foi lavar as mãos e o rosto, mas a mão estava fria e úmida de suor, seus intestinos se desarranjavam e uma súbita vontade de morrer se apoderara de sua alma.

Adriano estava transtornado demais para ter percebido qualquer coisa no jantar além de Clara, do contrário, teria reparado no interesse genuíno com que nele reparara o pai da moça, o Dr. Genival.

III

Dessa vez, porém, mais que um belo motivo para escrever trinta páginas na madrugada quente sobre sua amada, inclusive poemas elegíacos e sonetos desesperados, a vida lhe pedia atitudes mais firmes, que fizessem valer o amor que dizia sentir. E foi o que fez: como verdadeiro homem, passou a buscá-la nas redes sociais, tentando se aproximar o máximo possível com o mínimo de aborrecimento. Errava a esmo pelas vielas paralelas ao condomínio fechado onde ela vivia e se entretinha com festas nos salões que se estendiam por dias, fofocava com as amigas trancadas no seu quarto imenso, onde recebia rapazes que... bem... eram muitos, todos mais bonitos, ricos e socialmente traquejados que Adriano. Ele, porém, deixava tudo passar, dizendo de si para si que não passavam de namorados das amigas, conhecidos, amigos de infância, e assim encontrava sua paz.

Tornou-se gregário, coisa que antes repugnava, procurando por festas, buscando por oportunidades de trabalho que lhe pudessem garantir algum convite inocente a algum baile ou festa da alta onde ela pudesse estar. Errou várias vezes, era frequente que fosse atuar como correspondente de alguma coluna social no baile de debutante da filha de um prático de navios, um lugar sem referência alguma à família de sua amada. Com o tempo, foi melhorando seus métodos, fazendo contatos, estabelecendo ligações e restringindo seu campo de atuação a eventos sociais relacionados à polícia civil e às associações e convênios de profissionais da saúde. Em um deles, reencontrou a menina de seus olhos, aquela a quem só vira uma vez pessoalmente e, depois, por fotos nas redes, mas já não teve coragem de se apresentar, ficou rondando sua mesa como um morcego, tentando não se deixar perceber. Falhou miseravelmente nisso também.

As festas foram se especializando, seu raio foi diminuindo, e ele começou a vê-la mais vezes. E foi visto, uma, dez, trinta vezes. Ele levava seu amor a picos de suscetibilidade, admirava o brilho de seus cabelos à luz de velas multicoloridas e luzes artificiais mais prosaicas, procurava seu olhar chamejante refletido na prataria dos cruzeiros ou nos espelhados das paredes de mármore dos salões, fantasiava valsas impossíveis ao se colocar no lugar dos militares e funcionários públicos que a tiravam para uma dança seca e formal, sonhava com ela nas mais diversas e românticas situações imagináveis e a visão temporária, curta, fulminante dela, um lampejo da sua beleza, formava a substância dessas visões. Já ela mal conseguia distingui-lo de qualquer empregado dos cruzeiros e dos organizadores de eventos, quando muito o confundia com algum outro infeliz das centenas que seu pai a forçava a cumprimentar, gente de baixa extração, associados a uma cobertura de péssima qualidade das festas nas mofadas colunas sociais daquela região decadente. O tempo foi passando, os encontros amiudando, e ele foi sendo capaz de captar momentos reais dela, de voz real, de conversas reais, altercações, ou silencioso contemplar, e ela aprendeu a reconhecê-lo, a temê-lo e, depois, quando percebeu do que se tratava, a desprezá-lo.

Suas relações nas redes não eram muito diferentes daquelas estabelecidas entre celebridades e seus fãs. O ídolo postava fotos e vídeos de suas noites badaladas, cruzeiros e viagens caras, geralmente internacionais, ou cenas de sua vida cotidiana em suas grandes mansões, tudo para deleite e inveja de seus curtidores. Angariavam amor e ódio, se comportando como nobres lordes medievais a quem a opinião do vulgo não interessa, mas entretendo-o mesmo assim, ora se defendendo de ataques virais, ora ignorando a massa de ódio gratuito. Em tudo, estavam acima de considerações mesquinhas, da própria vida comum do comum do povo, e, em tudo, os inspiravam a levar suas vidas.

Assim era aqui também. Clara postava fotos e vídeos de suas viagens em hotéis-fazendas, cidades turísticas, dos roteiros internacionais, das festas e baladas caríssimas às quais ia junto das amigas, das degustações de vinho, ou das tardes sonolentas de domingo na casa de praia, junto dos pais, tomando conhaque e fumando às escondidas os charutos do pai, cercada de seus bichinhos perfumados, indo e voltando da praia. Parecia, como outras influencers, que pouco ou quase nada de sua vida existia fora das redes, que tudo era gravado, registrado, capturado por lentes e disponibilizado para deleite de seus admiradores e frustração das inimigas invejosas. Mas, como se sabe, isso é uma ilusão. Os milhares de seguidores não lhe serviam mais do que de vitrine para os contatos das classes mais altas, de ambientes mais reservados e selecionados. Clara ainda não era uma influencer no sentido próprio da palavra: todos os shots, as gravações, a escolha de ângulos, o tempo dos vídeos, as paisagens a registrar, tudo era meticulosamente selecionado e cotejado com o que era praticado por colegas do ramo, pelo que era normalmente feito pelas realmente populares. E não podia ainda monetizar sua imagem, pelo menos não como desejava, precisava de um mercado fidelizado, milhares de curtidas a cada postagem, uma taxa de ascenso-descenso no número de seguidores que fosse equilibrada, precisava dar atenção individualizada aos comentários, e desigual, claro, à medida da popularidade de cada um. Isso exigia tempo, estudo, paciência, e ela apenas começava a criar uma marca para si.

Clara não tinha certeza de como ou quando passou a desejar se tornar uma influenciadora digital. Não se importava em influenciar nenhum comportamento ou pensamento reais, nada substancial, ou eticamente válido. Poderia ser influenciar a adquirir produtos, a acessar algum blog ou site que lhe pagasse por isso, poderia ser qualquer coisa que a tornasse conhecida, a viralizasse. Nem precisava ganhar dinheiro com isso, afinal, os pais tinham boas condições de vida, uma gorda poupança e bens que rendiam bem. Tudo que ela queria era ser conhecida, amada, admirada, afinal, não conheceu outra vida que não a de ser influenciada. Não gostava da irmã, mas fora influenciada a gostar, a lhe ouvir e obedecer, e aprendeu tanto a lição que se esmerou em parecer obediente e mais jovem, muito mais jovem. A escola, que ela detestava, tendo sido influenciada, se transformou em um campo de realizações e vitórias com as quais os pais jamais sonharam. Os namorados, com eles sua mãe a influenciara a ser bonita e sedutora, a lhes atrair a atenção, os olhares, a ser desejável. Aos 16 anos de idade, já era conhecida pela cidade inteira como a moça mais preciosa, a ilustre filha de arrivistas ricos, e não havia rapaz do meio social dela, um pouco acima e um pouco abaixo, que não a conhecesse.

Trocando em miúdos, a única inspiração de Clara era manter sua vida do jeito que estava, com a despreocupação e divertimentos que possuía, e queria ser recompensada pelos aborrecimentos que tivera. Boa aluna, boa filha, bom partido. De si para si, não possuía nada de muito concreto, bom ou mau, apenas impressões de desejos alheios, projeções das expectativas do pai. Este era o único que a via como ela realmente era, não projetava o fracasso de sua vida nela, como sua mulher, mas a enxergava como um produto insubstancial do meio que ele mesmo ajudara a criar e manter. Era frequente que sentisse sua sensibilidade abalada quando a via maltratar admiradores pelo telefone, a desprezar amigas já não tão interessantes aos seus propósitos, e sentia que algo de muito errado acontecia na sua vida perfeita. Tentou aconselhar a filha, lhe recomendou um psicólogo muito bom, mas só encontrou incompreensão incrédula: a filha não podia levar a sério qualquer tentativa de lhe fazer olhar para dentro de si, principalmente para lhe questionar qualquer coisa em sua vida. Para ela tudo era muito claro, devia galgar os degraus da notoriedade pelo único valor que reconhecia, o da forma esculpida pelo seu ego e pela disciplina paterna.

Foi nessa selva midiática e emocional que o pobre Adriano se perdeu. Com o tempo, com as investidas, o mundo social de Clara foi se ampliando e se tornou cada vez mais difícil para Adriano acompanhá-lo, e nem tinha tido coragem de lhe falar. Não a via mais nas festas da sociedade comum, nos cruzeiros beneficentes, e ela se retirava do país por períodos longos, até voltar, quando se enfurnava em casa. Ou então se embrenhava no interior, nas casas de famílias tradicionais do Estado e demorava semanas para retornar. Vê-la? Só era possível nos raros passeios da família toda junta, quando ela saía de casa e quando retornava à noite. Assim, deu para espioná-la, coisa que jamais imaginava que fizesse. Entocaiava-se próximo ao seu prédio, geralmente em algum quiosque, ou por detrás do prédio dos bombeiros que ficava rente à areia do mar. Dali, observava tudo, as idas e vindas dos condôminos, mal discernidos por entre a multidão que corria e caminhava pelo calçadão e pela calçada do outro lado, junto ao prédio de sua amada. Nisso levou mais algumas semanas.

IV

A oportunidade se apresentou em um estranho convite, aceito sem muita reflexão, um convite do Dr. Genival, para um evento beneficente no salão de festas do seu prédio, um salão enorme, paramentado, com um serviço de buffet de primeira linha. Ali viu e cumprimentou o anfitrião e, como não poderia deixar de ser, a sua linda filha. Tomou coragem, respirou fundo, e atravessou o Rubicão.

- Olá. - ele se dirigiu a ela, sentada só a uma mesa de canto, encostada na parede oposta à sacada do salão. Sentou-se, tremendo, suando frio, olhando fixamente para seus belos olhos claros, verdes.

- Oi. - respondeu ela, fingindo indiferença, mas manifestando uma íntima satisfação pelo estado de desamparo do rapaz. - Já nos vimos antes?

- S-sim. Você não deve lembrar, mas... há um ano, nos conhecemos, nos vimos, digo... Le Tanneur. Eu estava... - o desespero do rapaz crescia conforme prolongava sua própria tortura, mas foi interrompido.

- Ah, claro, você é o resenhista do Vieira. Escreve, né? - perguntou, displicentemente, girando o drink no copo, e apertando os olhinhos.

- E-exato. Eu escrevo. - balbuciou.

- Ele é um antigo amigo de papai, nos falou que está escrevendo um romance, e que está para publicar. - ela olhava de canto de olho para ele, sedutoramente oblíqua.

- É como diz, moça. Estou escrevendo, mas parei há alguns meses. Tenho tido muito trabalho nos...

- Que interessante deve ser a vida de escritor.- agora ela olhava fixamente para ele.

- N-nem tanto, é muito trabalho e pouco reconhecimento. Mas eu gosto do que faço, pra mim escrever é natural como respirar. - já agora Adriano respirava com mais folga, e se soltava. Aquilo era inexplicavelmente fácil.

- Imagino. Acho que você me segue, né. - perguntou ela, apertando de novo os olhinhos e franzindo a adorável testa.

- Sim. - conseguiu ganir.

- Olha, eu preciso sair, tenho um compromisso. Mas toma aqui meu telefone, me adiciona no aplicativo de mensagens, podemos conversar mais. - ela se levantou, apertou sua mão, convidando-o a se erguer e beijá-la no rosto, um contato que o deixou embasbacado e imobilizado. Mal pôde se despedir.

O Dr. Genival observava a cena, a poucas cadeiras de distância, enquanto beliscava seu prato.

As coisas mudaram a partir dali. Adriano adicionou o número de Clara, e passaram a conversar por mensagens. Conversavam sobre a vida um do outro, falavam de sentimentos por estranhos, e Adriano se ganhava ares de psicólogo, os ares de quem não aceita a rejeição, e Clara não fingia o desinteresse que sentia pelas aventuras literárias do amigo. Havia dias em que falavam por horas, geralmente sobre algo externo aos dois, como um filme que estivesse estreando, uma nova série de suspense, notícias da cidade, mas quando a coisa se tornava mais pessoal, uma direção para a qual Adriano se esforçava frequentemente para seguir, sua amada o cortava, desconversava ou só o ignorava. Outras vezes, ele tentava trazer seu trabalho ou assuntos pelos quais ela não ligava muito, como política, estudos antropológicos, filosofia. O máximo de interesse que existia era quando ela lhe pedia que recitasse um poema, alheio, para ela, pois gostava de sua voz fraca, feminina, entrecortada e embargada pela emoção.

Sua insegurança jogava com os resquícios de auto-estima que sua personalidade frágil lhe permitia abrigar; quando mandava mensagem, o aplicativo indicava que ela havia visto, mas não lhe respondia. No começo, demorava de quatro a oito horas, um verdadeiro suplício, principalmente porque não havia como desfazer o digitado. Ela via rápido a mensagem, para se certificar de que valia o seu precioso tempo, o que, no que se referia a ele, garantia que lhe respondesse no mesmo dia com qualquer coisinha que o aplacasse e lhe pacificasse a consciência. O máximo que ele conseguia aguentar antes de cobrar uma resposta era uma semana, e era tão tímida e atrapalhada tal cobrança que saía mais como uma súplica, bem como o pedido de desculpas era uma formalidade irritada. De formalidade, foi se tornando uma ameaça velada, até que as conversas foram se reduzindo a monossílabos, os quais não conseguia replicar com nada de muito interessante. Ele achava engraçado esse desenvolvimento, engraçado de uma forma desesperadora, porque nunca ela e sua vida deixaram de ser interessantes para ele naquela época e os assuntos com os quais ele se esforçava para entretê-la nunca haviam exigido, até então, grande trabalho. Agora, tudo era difícil, penoso, trabalhoso.

Mesmo sem as desculpas que ela dava de estar muito ocupada, ele a desculpava para si mesmo, dizia para si que ela tinha muitos compromissos sociais, tinha as amigas exigentes com seu tempo, que precisava servir ao pai nas ocasiões mais solenes, ajudar a mãe na sua auto-apresentação sempre mais brilhante. Talvez não fossem ocupações muito prosaicas, como um emprego ou exames de faculdade, mas ele também ocupava seu tempo de uma forma não muito convencional: um passeio de barco pelo mar lhe custava tão caro quanto para um estivador, mas enquanto para este era motivo de lazer, para ele era trabalho, o usava para se inspirar com ideias novas para trabalhos paralelos ou mesmo para enriquecer a narrativa do seu livro. E se culpava, acreditava estar sendo insistente, estar incomodando, e ela não lhe devia nada, nem mesmo atenção. Não julgava que um relacionamento de verdade pudesse se sustentar à base de auto-humilhação e desigualdade, então, se recusava a enxergar a verdade, interpretando a indiferença como indisponibilidade, colocando os compromissos dela em um patamar de seriedade e importância cívica que não se comparava aos seus passeios, mesmo que sua vida financeira dependesse das suas visitas ao porto à noite.

Adriano demoraria para aprender o que estava sendo esfregado na sua cara naquele momento: eles não eram iguais, e isso não tinha tanto a ver, como ele pensava, com diferença social, mas emocional. Ele era apaixonado por ela, e ela não era indiferente, mas só amava o amor dele, e o bastante para poder dispôr dele como queria.

V

É da natureza das pessoas de personalidade tíbia crer que os grandes desafios da vida são transpostos com grandes saltos, revelações bombásticas, com grandes cenas. Não é que amem chamarem a atenção, ou que se sintam capazes desses saltos, mas, ironicamente, é justamente por causa da sua incapacidade e inépcia em lidar com esses expedientes que parecem crer que podem realizar tudo. É preciso um grande sacrifício para se obter um grande prêmio. Isso é falso na vida real, ou não necessariamente verdadeiro. E mesmo que não o fosse, não podem essas pessoas exigirem de si mesmas um discernimento evoluído o bastante para saberem distinguir um prêmio grande de um insignificante, daí frequentemente ganharem a fama de descomedidos por não saberem medir suas próprias forças e necessidades, de quererem derrotar um leão por dia para conseguirem atravessar a calçada.

Foi assim que Adriano teve a típica e brilhante ideia de convidar sua amada para um encontro, uma inocente ida ao cinema. Passaria um filme ligeiramente alternativo, um suspense com um romance não convencional, bastante premiado lá fora e que, por alguma razão, estaria dando o ar da graça nos cinemas litorâneos. Seria reflexivo o bastante para lhes dar motivos suficientes de conversa, e apaixonado, de modo a sugerir alguma aproximação mais íntima. Assim delirava, mas, para sua surpresa, ela aceitou, parecendo até entusiasmada, falou de algumas pessoas famosas no meio da crítica artística, conhecidos de sua mãe, que elogiaram muito o filme, e estava bem animada para ir. Marcaram para o último sábado do próximo mês.

Os dias que antecederam o esperado 'encontro' transcorreram de forma tensa. Nos primeiros dias, fantasiava sobre a noite, sobre o cinema, a pouca iluminação da sala do filme, como estariam próximos, tão próximos, e o que poderia decorrer dessa proximidade. Depois, já imaginava a prorrogação, onde iriam jantar, um restaurante onde ele fizera uma reserva antecipada, nem muito chique nem algo exatamente comum, gastaria uma fortuna nele. Em tudo, havia muita esperança, muita ansiedade, e suas noites eram curtas e perturbadas por sonhos ruins envolvendo facas no escuro e decepções, mas ele não conseguia se lembrar de nenhum deles. Pensava que poderia ser ridículo, que seus mundos eram muito diferentes, que ela poderia ter tanta vergonha dele que não iria querer nenhuma foto daquele dia, afinal, ele era mesmo ridículo e ela precisava, por conta do trabalho nas redes, de ambientes e pessoas o menos ridículas possíveis. Martirizava-se, se autoflagelava, inseguro sobre o que devia vestir, como se portar, o que deveria dizer, sobre o que deveriam conversar. Assim passou as duas primeiras semanas...

Como geralmente fazia quando estava mal, saiu para caminhar, dessa vez pelo centro da cidade. Antes de conseguir o aluguel do apartamento onde morava, viveu em alguns buracos por ali até não conseguir mais suportar os quartos apertados, cheios de uma poeira eterna que subia das ruas abandonadas e ermas, penetrava nos casarões empoeirados e levava consigo uma infinidade de cheiros, de solventes, maconha, álcool de bebidas fortes e baratas, o perfume adocicado e barato das putas, tudo misturado mas vividamente particular. Em poucas semanas, percebeu que sua moradia mais privilegiada não o tornou mais culto ou melhorou em demasia suas relações, nem se livrou dos cheiros e da poeira, estes se lhe pegaram à pele como uma sarna e pareciam lhe chamar ao seu ambiente natural. Não era consolo, mas saía para a rua, ia caminhar, via o trabalho dos invisíveis cafetões se materializando diante dele, sentia a atmosfera de podridão moral, os hálitos de senhores respeitáveis indo e vindo de suas lojas para as casas de tolerância, sabia identificar em quais prédios coloniais os jovens e velhos se reuniam para suas orgias, para festas silenciosas que duravam dias, dias e noites de letargia, letargia do pó, dos cigarros, das garrafas, dos cachimbos espalhados pelos assoalhos imundos de excrementos...

Pensando nisso, castigava os pés atravessando um dos canais da cidade, passando por hospitais, grandiosos prédios residenciais, monumentos comerciais, igrejas famosas, a vida burguesa da cidade. Via a gradual proletarização que se assomava aos seus olhos com o sol do fim da tarde, via a luz descendo alaranjada pela cidade conforme os edifícios eram substituídos por ruínas da época colonial, por lojas onde se matava o pobrerio para comprar e vender, inclusive sua força de trabalho. Já perto do porto, entrou em um dos bares, e pediu um refrigerante. Desacostumada com pedidos tão prosaicos, tão fora da realidade do lugar, a garçonete o olhou desconfiada, lhe passando o troco, pensando se não haveria nada de oculto, críptico. Não havia. Só queria o refrigerante. Pagou, pegou o troco, bebeu ali, sentado em um dos bancos e ficou admirando a paisagem da rua ampla que dava para o porto, com seus paralelepípedos, seu silêncio, os vultos suspeitos que se escondiam perto dos grandes prédios da Receita e a estrutura da alfândega, mais ao longe. O cheiro do mar... tão diferente do mar dos ricos. Não sentia saudade da sua vida naquela época, mas gostava daqueles cheiros, daquela caminhada, sempre o despertavam como artista, como homem.

Como homem, voltou para a casa depois de fazer algumas compras. Arranjou uma vestimenta casual, calça jeans nova, camisa polo listrada e relaxada, sapatênis pretos, e um perfume novo. Cortou o cabelo em um desses barbeiros hipsters que estavam na moda, que lhe cobrou um rim pelo cabelo e outro pela barba. Tomou sua ducha quente, se enfiou na cama e sonhou com o novo livro. Acordou renovado, e se pôs a trabalhar na obra novamente, quase sem pensar em Clara, ou no celular. Era a semana do encontro, e transcorreu com naturalidade. Sentia-se ansioso, mas nada que lhe tirasse o sono, e mesmo seus devaneios românticos pairavam mais por sobre sua mesa de trabalho que por sobre seus sentimentos; alheava-se de si, mas não deixava de nutrir a grande alegria da expectativa. Os dias que escoavam lhe passavam despercebidos, e o grande dia acabou chegando, finalmente.

Tomou um banho de duas horas, garantindo que estava mais do que preparado para o que pudesse acontecer de inaudito e maravilhoso, escovou os dentes, os cabelos, se perfumou como uma donzela, e começou a se vestir. Já arrumado, limpo e cheiroso, deixou as horas passarem. Recostou-se à cadeira de armação metálica e ripas de madeira, deitou um olhar sonhador sobre os papeis esparramados pela sua mesa, e suspirou. "Vou estar morto quando terminar de organizar essas notas, olha só pra isso." Passou a mão na nuca, enxugando o suor, característico sinal de nervosismo quando se defrontava com aquela mesa. Não de repente, mas foi sendo tomado por um sentimento estranho, inicialmente um pequeno desconforto, que foi assomando, crescendo e se ampliando até ser capaz de lhe fazer sombra, um sentimento de impotência e desespero, o sentimento de estar perdendo tempo, irremediavelmente. "O que estou fazendo da vida?"

Por volta das três da tarde, sacudiu os pensamentos ruins, fechou o apartamento, e rumou para a rua. Parecia haver uma certa comoção nas ruas, a praia estava quase deserta, uma visão rara em qualquer época do ano que encontrasse a cidade debaixo do sol de verão, e as poucas pessoas que passeavam pareciam agitadas, cochichando entre si, mas não reparou nisso. Não reparava na direção em que as pernas lhe levavam, nem mesmo que tinha pernas, àquela altura tinha os pensamentos no alto, em sua Dama, só podia pensar nos seus lábios, no sorriso que tantas vezes captara de relance, na voz doce e falsamente entediada dos áudios que recebia depois de dois dias de espera ansiosa. Seguia pensando nela quando chegou ao cinema, onde haviam combinado de se encontrar, perto da cafeteria. Não esperava que ela estivesse lá, afinal estava dez minutos adiantado, de modo que se sentou a uma das mesas depois de pedir um café. E esperou. Esperou. Esperou mais.

Quando estava na quinta xícara de café, mandou uma mensagem pra ela, morrendo de medo de parecer inconveniente, mas temendo ainda mais ser ignorado. Passados vinte minutos, mandou outra mensagem. Aguardou mais vinte, e mandou outra. Assim se passaram umas três horas, horas em que se embebedou de café, andou de um lado para o outro e para cada mensagem, não havia mais que silêncio. Porém, dez minutos depois algo maravilhoso aconteceu. Ela visualizou! Isso era ótimo, queria dizer que não tinha acontecido nada e que ele não precisaria ligar para ela, correndo o risco de enfrentar sua ira disfarçada de enfado sonolento. Isso atravessaria seu peito como um projétil. Estava bem, provavelmente algum imprevisto a impedira de comparecer e de responder às mensagens, estava tudo bem, isso já acontecera antes. Ela já chegou a visualizar uma mensagem sua e só responder no dia seguinte, ou mesmo dentro de três ou quatro dias, isso era tranquilo, tranquilamente previsível e normal.

Repetia essas coisas para si mesmo, nadava nesses pensamentos, tentando não se afogar neles como se afogava em suor, desalinhava a camisa com seu andar desvairado para lá e para cá, e bagunçava o cabelo encharcado de suor com suas mãos e braços grossos, peludos e igualmente molhados de suor. Sem saber o que fazia, o que sentia, para onde ia, saiu da cafeteria depois de pagar atabalhoadamente seus vinte cafés, e seguiu pela rua, perdendo noção da realidade, se perguntando como, conhecendo os hábitos voluntariosos dela, podia estar tão transtornado pela ausência. Isso já acontecera antes? Mas por que... por que, meu Deus, isso doía tanto? Por que ele estava ali parado, esperando uma resposta que sabia que poderia demorar dias? Mas, mas... mas, e... e, e, e o convite? O cinema? Foi então, pobre diabo, que se lembrou do convite, lembrou-se de como havia feito o convite, que ela havia aceito. Até voltou as mensagens no aplicativo para se certificar, ouviu o áudio que ela gravou, e que confirmava o passeio, para aquele sábado mesmo. Então, uma dor lancinante no peito quase o prostrou no chão, teve que se sentar. Sentou-se no meio fio, na calçada do quarteirão seguinte, sem saber como chegara ali, sem saber o que era ali, e assim permaneceu até que a escuridão da noite o abraçasse por completo, debaixo da lâmpada quebrada do poste. Mas então, sua dor deixou de preocupá-lo por um instante, por uma distração. Viu algo estranho.

Atrás de si, à esquerda, havia uma aglomeração de pessoas, conhecia até algumas. Eram em sua maioria jornalistas, repórteres e vários cinegrafistas profissionais, gente da televisão e dos jornais, todos amontoados à entrada do hotel que ficava rente ao shopping. Parecia que alguém famoso saía por ali, um jovem e classudo estilista de moda, um tal de Pardel Vanchrón ou algo do tipo, um palhaço dado a galanterias de um gosto duvidoso até para franceses boêmios, ele lembrava de ter lido no jornal que aquele falso francês estava na cidade, apresentando suas criações em uma exposição de arte que ocorria no hotel, em seus saguões dedicados, um evento fechado onde poucos foram convidados, mesmo entre a imprensa. Ele já era uma sensação brega na moda antes de decidir enveredar pelas artes plásticas, porque descobriu que ganhava mais likes no aplicativo social de fotos com suas pinturas de gosto duvidoso que com os vídeos de desfiles de suas criações de estilista.

- Monsieur Vanchrón, monsieur, por favor... escute, um momento. - dizia um.

-Uma palavrinha, uma só, para nosso jornal, o Alv... - se acotovelava outro.

E assim ia, uma balbúrdia, mas por entre os braços que se enfiavam na entrada do hotel, pode divisar a figura do grande artista, com seu terno prateado espalhafatoso, e por trás dele, um grupo de convidados o seguia. Sabia que algumas famílias abastadas da cidade haviam sido convidadas para a exposição, algumas ligadas às autoridades municipais e estaduais, além de outras bem relacionadas na indústria naval, na cabotagem, pessoas que tinham a ver com sua ascensão de um artesão fashionista do interior do Espírito Santo a um estrelato global de glamour estético. Ouviu, porém, algo que o assombrou, o fez suar frio:

- Vamos dar o fora daqui logo, Pierrito. Esses vermes não vão deixar a gente em paz. - gargalhou uma voz feminina, estridente, clara e um tanto quanto embargada, talvez devido a uma leve embriaguez de licores cerimoniais. Era ela! Adriano mal pôde virar o grosso pescoço para a limusine preta e imperial, orgulhosa, que se abria diante daquela cena caótica como um trono que elevava os homens e mulheres para realidades superiores, inacessíveis aos mortais. Para ele, porém, a única realidade que existia era a de uma ferida que não podia ser curada, não ali, não naquela luz. Fechou os olhos, enquanto a multidão se dispersava, só conseguia sentir o mais profundo e venenoso ódio.

VI

As semanas seguintes lhe permitiram esfriar a cabeça, analisar melhor sua situação, seus sentimentos, e preferiu deixar de pensar nela. Tentou se concentrar no trabalho, e teve que lidar com a circunstância de o seu texto ter se infectado com um tom, um estilo e até com um desenvolvimento narrativo radicalmente diferente do seu.

- Isso aqui está uma bela merda! - dizia, martelando com os dedos no teclado do computador.

Não era fácil consertar, porém, não sabia por onde começar. Quando tentou olhar para dentro de si, percebeu o que havia de errado. Não sabia como consertar porque estava quebrado por dentro e não sabia onde começava nem onde terminava sua ferida.

Naquela noite fatídica, veio para casa cambaleando, com os membros tremendo, sentindo os braços pesados, e os olhos estavam ressecados de tantas lágrimas silenciosas. Estava desgrenhado e bagunçado, mas nada de seu desalinho exterior poderia ser comparado ao amontoado de lixo que ia na sua alma. Sentimentos acumulados durante todos aqueles meses de verdades que não ousava verbalizar, impressões negativas que negava contundentemente para si, imagens dolorosas que doíam mesmo quando aplicava véus e mais véus de interpretação, desculpas e uma compreensão nascida do fracasso, tudo isso e mais um pouco, vinham à tona. Enveredando por uma das vielas acessíveis pelo outro lado da rua, sonhava em ser esfaqueado por um marginal e ser privado de toda aquela miséria. Quando chegou na outra rua, uma das que tinham canal, pensou em se jogar nele, acabar com tudo aquilo. De vez. Mas aí lembrou que os canais eram rasos, à exceção das épocas de chuvas de fevereiro e março, quando podiam chegar a transbordar, e que não conseguiria mais que quebrar uma perna, ou torcer um pé.

"Nesse caralho de cidade, não se pode nem morrer com dignidade." - pensou, enquanto secava as últimas lágrimas com o dorso de uma das mãos de urso. Pensou em como ela receberia a notícia da sua morte, se perguntou se faria luto por ele, se sentiria remorso, se veria a sua responsabilidade naquela morte, em ceifar tão prematuramente uma vida tão talentosa, tão cheia de possibilidades, uma vida cujo único pecado fora o de se deixar levar demais pelos encantos dela. Demais? Haveria demais? Estava cansado demais para se matar, para chorar, e de pensar, vagava há umas três horas pelas ruas escuras, esbarrando nos mendigos que se esfregavam nos cobertores sujos. Sabia que ela não sentiria remorso mesmo na remota possibilidade de saber de sua morte, simplesmente ele pararia de lhe mandar mensagens e ela interpretaria isso como desistência, e não se importaria. Tantos não tentavam chegar a ela, com ou sem aquela janela de oportunidade que ela lhe abrira, e desistiam, ou eram abandonados, e não fazia diferença?

Agora, depois de um último esforço na madrugada, conseguia se levantar e tentar chegar no seu apartamento. O caminho de volta foi de pensamentos sombrios, de ressentimento, de rememoração de ofensas passadas, de reconsiderar as coisas e enxergar como feridas mortais o que não passava, antes, de descuidos e esquecimentos de moça bonita e socialmente requisitada. O que o revoltava mais era o estado total de indiferença com que o programa fora visto por ela. Mesmo que ela o desprezasse tanto, será que não valeria nem mesmo um telefonema? Sequer uma mensagem? E não poderia ela alegar que se esqueceu do encontro, ele a lembrava constantemente, e ela visualizava as mensagens, tendo respondido a muitas. Não só isso: por que é que ela não respondeu suas mensagens? Estava tão entretida assim com seus amigos e seu querido estilista que não poderia sequer olhar para o celular? E olhou, viu, visualizou! Não tinha ciúmes dela com o dito cujo, sabia que ele era gay, mas ela duvidava muito que seu rival, o filho do prático, não estivesse junto com ela e as amigas, e que não fosse o responsável por arranjar o encontro, era tão cheio de recursos, de convites, de oportunidades sociais aquele ali... Não se deu conta de que as mesmas dúvidas que o acometiam agora já o haviam assolado antes, mas que sempre as varrera para debaixo do tapete como uma mosca incômoda. Agora sentia o ferrão de um enxame inteiro de abelhas gigantes. Pensou tanto, reviveu, remoeu tanto dos últimos meses que sua cabeça latejava, parecia que a dor do peito havia se transferido para a cabeça. Não sentia mais nada, mas a cabeça pesava toneladas, de modo que se jogou na cama, e quis chorar de raiva.

No dia seguinte, se concentrou em limpar o apartamento. Este andava em tal estado de desordem e desleixo que tudo ali o repugnava. Perguntava-se que relação podia existir entre a febre do amor e roupas jogadas sem passar nem lavar, louça suja de dias e estantes de livros cobertas de pó. Aparentemente, a noção de higiene se transfigurava com o amor, o quarto precisava tanto de faxina como seu coração, e não podia imaginar que fazendo um estava ajudando a fazer o outro. Levou uns dois dias para tirar a tralha do apartamento, espanando os móveis, jogando água no assoalho, pondo a roupa para lavar e organizando seus livros.

No final de semana, já sem ter o que derrubar ou jogar fora, para alívio dos vizinhos de andar, saiu de casa para tomar a fresca da manhã quente de verão, a fresca marítima que revolucionava todas as ideias dentro dele, sempre. Atravessou a rua, parou a um quiosque e se sentou, munido de seu caderninho surrado, uma caneta esferográfica simples e começou a organizar no papel as ideias principais da sua história, para que pudesse saber onde a coisa começara a desandar, em que sentido e o que poderia fazer para recuperar. Para tirá-la de seu pensamento definitivamente, pensou, precisaria arrancar aquela época inteira de sua vida. Enquanto rabiscava, esperando o garçom lhe trazer sua cerveja, sentiu um olhar vindo em direção à sua nuca, uma sensação quase física de estar sendo observado atentamente. Virou-se na cadeira e viu, a duas mesas de distância, o Dr. Genival, sem camisa, com sua sunga gloriosa, azul-celeste, cobrindo metade de sua pança, a lhe vigiar, mas não muito atentamente. Sorria, parecia curioso, embora houvesse mais deboche que curiosidade naquele olhar claro e penetrante. Sua careca ostentava um brilho que o atraía irresistivelmente, de modo que assobiou para avisar o garçom, pegou suas coisas e foi se sentar à mesa do homem. Ele fumava um Havana legítimo, e não pareceu reconhecer o jovem, até que arregalou os olhinhos por baixo das rugas e o cumprimentou.

- Ora, ora, se não é o grande artista! Há quanto tempo não nos vemos! Acho que a última vez foi... - ele parou, com uma das mãos na têmpora, e a outra no charuto, apertando os olhinhos.

- Naquele cruzeiro, onde nos conhecemos. - respondeu Adriano, se ajeitando na cadeira. - Fomos apresentados pelo Vieira da Gazeta Litorânea, na época ele estava cobrindo o evento e o auxiliava com a redação.

- Escrevia pra ele, quer dizer. - cortou o médico.

- Na verdade... - começou dizendo o jovem.

- Na verdade - cortou novamente o incisivo doutor - você escreve aquelas belas colunas, seus artigos, e ele ganha os louros. Não é esse o seu trabalho?

- Assim ganho a vida - suspirou o jovem.

- Mas não foi a última vez que nos vimos. - observou o Dr. Genival, pousando o charuto à mesa. - Eu o vi naquela festa beneficente dos Andrades, e não estava acompanhando nenhum desses parasitas. Estava falando com minha filha.

Adriano o olhou longamente, em silêncio. Agora estava navegando por águas perigosas, então aquele velho o estava observando, talvez até desde o cruzeiro. Saberia ele de suas investidas, da sua busca pela filha? Perguntava-se porque viera falar com ele...

- Espero que ela tenha te tratado bem. - seu tom de voz suavizou, parecia quase terno. - Ela pode ser meio dura, às vezes, com os rapazes, sabe... que a procuram.

- Muitos devem procurá-la. - disse Adriano, desviando os olhos para o chão.

- Sim, alguns ela manda passear. É a maioria. Outros, chamam a atenção dela, e ela mantém por perto.

- Mas não por muito tempo, não de verdade... - arriscou o jovem, agora olhando para o velho.

- O que é muito tempo? E o que é a verdade? - riu o velho, apontando o charuto para seu rosto inexpressivo. - Vocês são jovens. Quem tem a vida toda pela frente tem muito tempo, de modo que não vivem o tempo como nós, velhos. E a verdade geralmente não costuma incomodar os jovens.

- Exceto se você for pobre, aí o tempo tem um peso muito maior. - cortou Adriano, sem tirar os olhos dos olhos dele.

- É... Mas a verdade...

- É muito importante para um escritor. - cortou ele, novamente.

- Ah, sim. - tragou e puxou novamente o fumo. - Vocês, escritores, intelectuais, são obcecados pela verdade. Minha outra filha, Simone, é igual, vive pregando moral. Mas... você não respondeu minha pergunta. Ela te tratou... - ele não terminou a frase, esperando uma resposta.

- Bem. Nós só nos desencontramos. - respondeu, seco, após um tempo..

- Ah, sinto muito, ela tem esse mau hábito. - afastou a fumaça.

- A culpa foi minha. - ele abanou a mão, como a afastar um pensamento ruim, e recostou os braços de urso no espaldar da cadeira, olhando para o céu, pensativo.

- Isso não é desculpa.

- As pessoas usam o poder que tem, do contrário não merecem esse poder.

- O mundo está cheio de gente assim, com dons e cruzes imerecidas. - disse, olhando para o outro lado da rua. Logo, voltou a si, olhando o seu interlocutor com malícia. - Não filosofe comigo, amiguinho. Sou velho, tenho alguma educação e já vi algo do mundo. Você só está com dor. Olha...

- Doutor...

- Não, escute. Escute. Ela faz isso com muita gente, é parte da péssima educação que demos a ela. - ele soltou mais fumaça pra trás, tomo fôlego, e continuou, olhando por cima do ombro do rapaz. - É culpa da minha mulher, ela e sua maldita mania de fazer contatos, de aparecer. 'Quem não é visto não é lembrado'. E etc. Transformou ela em uma copiazinha sua, um arremedo de gente egoísta, que usa os outros. É assim desde pequena, manipulava os primos menores pra conseguir as coisas, e sempre foge das responsabilidades. A vida pra ela é uma festa. Falhei muito com ela...

- Eu... - começou a dizer Adriano, passando a mão pelos cabelos, claramente nervoso.

- Sabe por que veio falar comigo? - cortou-o, novamente, o atrapalhado médico. Talvez estivesse bêbado.

O silêncio foi total, apenas levemente atrapalhado por uma mesa ruidosa de gringos ao lado deles.

- Porque ela o magoou pela última vez, e você sabe porquê. Não quer justificativas, até porque sabe que não as tenho pra lhe dar. Você quer... o que você quer é uma confirmação.

- Confirmação? - perguntou Adriano, olhando-o fixamente.

- Você é um intelectual, procura entender as pessoas. Do contrário, como escreveria esses livros e artigos? Ouvi dizer que publicou um conto, que ganhou um prêmio por ele, ano passado. Muito bem. Eu escrevia poesias na faculdade. - o olhar do velho agora parecia mais manso, como se lembrando de algo bom de sua vida.

- O senhor foi poeta? - surpreendeu-se Adriano. De fato, a vida do Dr. Genival era de uma placidez só, vivia entre o consultório e sua cobertura, só mudando a rotina nas ocasiões sociais e viagens internacionais para as quais sua mulher lhe arrastava, como um bibelô.

- Só por um tempo. Desisti nas primeiras provas de cirurgia, não tinha tempo. O ponto é: você odeia minha filha e quer uma confirmação. Quer ser convencido de que só deve odiar a si mesmo. - disse o doutor, lhe apontando com o indicador.

- Isso vai longe...

- Não, não, nada disso. Mas você precisa entender.

- O que há para entender?

- Muita coisa. - o doutor parou com o charuto, e fixou novamente seu olhar no horizonte, por cima do ombro de Adriano, pensativo. - Imagine um belo pássaro preso em uma gaiola, imagine que ele nasceu nessa gaiola, onde sua mamãe o pariu. Sua mãe havia conhecido a liberdade, mas não se deu bem com ela, foi caçada, ferida, e até ser recolhida pelo dono da gaiola, medicada, tinha que arranjar a própria comida. Ela não sentia falta da liberdade, sabia o que custava e não queria mais pagar o preço, e não se importava em fenecer sobre cobertas confortáveis, e bem alimentada, em uma gaiola chique, cravejada de brilhantes, segura, longe dos predadores.

Este arroubo poético saiu sem muita vivacidade, em tom monótono, quase como se tivesse sido decorado, mas vinha de forma tão cansada que Adriano não duvidou da sinceridade de suas palavras. O talento poético, adormecido, a vocação oculta, se revelava como um oráculo profético:

- Já o seu bebê, este nunca conheceu a liberdade, não sabia como era bom poder exercitar as asas, mas não queria viver confinada entre as grades da gaiola, de modo que tentou unir o melhor dos dois mundos. Ou melhor... - o doutor puxou mais fumo, se recostou na cadeira e ficou olhando para o outro lado da rua, possivelmente para seu apartamento. - Não é que tentasse, mas ela não conhecia nenhuma outra vida, não conseguiria sobreviver na selva com a imensa liberdade, mas era preciso que a gaiola em que nascera fora expandida, ou, pelo menos, que se pudesse carregar a gaiola dela por aí.

- Então... - Adriano estava a um nariz de distância dele.

- Então, não há o que fazer. Não mais. - suspirou, largando o charuto na mesa, e finalmente tomando um trago do seu uísque.

- O senhor desistiu dela? - a expressão de Adriano era incrédula, tinha apertado os olhos, incapaz de acreditar no que ouvia.

- Jamais, eu a amo demais. Mas... ela...ela não é uma boa pessoa. - a última frase saiu quase como um latido, estava tremendo. Então, ele pegou em uma das mãos do jovem, a apertou com força e ternura. - Eu só posso te aconselhar a buscar outra coisa, em outro lugar. Ou então... pode odiar a memória do mal que ela lhe faz, mas eu te peço: não pense muito mal dela, ou... de nós. - aqui sua voz realmente falhou.

Ele lhe ofereceu um charuto, e ficaram ali, fumando em silêncio até que suas pernas os afastaram um do outro com amizade, quando seus pensamentos já se encontravam a milhas de distância dali.

Com o passar dos meses, Adriano foi aprendendo mais sobre a vida antiga do casal que gerara seu amor de verão. Era uma história de amor longo e sofrido, de uma primeira gravidez complicada, abusos da mãe contra a primeira filha, Simone, e a formação na segunda, Clara, de uma imagem de brilho social e despreocupação moral, imagem projetada, cultivada pela mãe, e suportada pelo pai, de forma estoica. A história progredia com o desenvolvimento da personalidade da filha mais velha, e a estagnação da mais nova. Com o brilho crescente da segunda, e o apagamento permanente da primeira. O resto era a história que todos sabiam, que ele já intuíra: tédio advindo de sensações fortes em uma vida sem sofrimento, uma vida que se desprezava porque nada fácil tem valor, e a gestação do descaso.

Adriano não era filósofo, mas pensou muito naquele tempo sobre esse descaso. Em alguns dos seus sonhos, parecia uma criatura feroz e sem forma, um monstro rasteiro, sombra que deslizava pelos corredores escuros de casas abandonadas e templos em ruínas, quase sem forma física, invisível, e demorou a perceber que só estava dando forma imagética aos seus medos, humilhações e dores. O descaso de que foi alvo, porém, por pior que lhe deixasse, era sentido por ele como uma coisa viscosa, algo que lhe grudava na pele, como uma máscara que caía sobre os olhos e lhe impedia de ver a realidade como ela era. Percebeu que nunca a amara, sua paixão era tão forte quanto seu amor pelo amor, pela ideia que aquele arroubo representava em sua consciência afetada de jovem e artista. Nesse momento, chegou a sentir nojo de si mesmo.

VII

Adriano possuía uma natureza resiliente, e era jovem, o que ajuda a enfrentar as maiores decepções da vida com um sorriso no rosto e poucos hematomas no peito. Não persistiu na ladeira sinuosa que levava do desapontamento ao ódio por si mesmo, ao esgotamento da esperança de se expandir, a falta de fé no futuro. Era jovem, tinha talento e sabia disso, e era um artista. A arte o acompanhara por toda a vida, e se lhe traíra por alguns breves momentos atribuía a isso um erro lógico momentâneo, uma distração sensual, algo pelo que nunca se culpava porque era capaz de se perdoar diante do altar das Musas. Mas havia sido ferido, e a ferida no artista nunca é mero percalço da jornada, um obstáculo por cima do qual se deve pular e jamais olhar para trás, e foi assim que o descaso, como um tema estético, ocupou boa parte de suas reflexões artísticas. Reformulou o tratamento de diversas questões de personagens centrais de seu romance, eliminou muito que havia de desnecessário, descrições de estados emocionais sem nome, aplicando a eles a ideia recém-descoberta do valor pessoal, e contrastando-a com o descaso. Não escreveu sobre si, mas se utilizou, a si e seus sentimentos e emoções como experimento dessa ideia e chegou a algumas conclusões interessantes.

Percebeu que realmente não amara Clara porque não havia nada amável nela, não realmente. Amou por alguns instantes a ideia de amá-la. Lembrou que ela não lhe causara uma impressão particularmente favorável no Le Tanneur, ficara mais encantado com a doçura sincera e um tanto apagada de sua irmã. Notara a falsidade no sorriso da irmã mais nova, e o primeiro sinal daquela viscosidade sedutora como a ser expelida pelo toque de suas mãos frias e úmidas, e sua exagerada sensibilidade pôde abrir um buraco no seu coração para que o líquido escorresse e pudesse transformar essa fascinação mórbida em um desejo de amar. Não poderia amá-la, mas poderia amar, desejar a ideia de amá-la, ou nem isso: não havia o 'ela'. Ela não existia positivamente, mal a conhecia, nem a desejava por nenhuma de suas qualidades, muitas das quais o repugnavam mais e mais conforme a conhecia. Não podia, inexplicavelmente, mentir para si mesmo e negar que ela era uma pessoa intragável e que era uma tortura encaminhar uma conversa com ela. Não era só que os assuntos lhe enojavam pela sua falta de sentido, pela sua futilidade, mas tudo ali era fútil, sua forma de responder, sua linguagem afetada, a vozinha modulada sedutoramente, até seu silêncio, os buracos que ela deixava de dias na conversa lhe enojavam, isso porque sabia que eram conscientes, planejados e lhe doía menos saber que era apenas mais um a sofrer com isso por parte dela que o fato dela agir assim naturalmente, um cálculo instintivo. Ele sofria com seu silêncio, mas sofria ainda mais pelo que havia de desafio neles, pelo que neles havia de convite a uma luta na qual não queria tomar parte, e se viu enredado em um jogo detestável.

Clara não conhecera o amor, ou pelo menos não amara, não sabia o que era o ato de se desprender de si mesma, de suas atividades, sua visão do mundo, para se dirigir a outra pessoa com interesse, afeição. A mãe a educara a fugir da dor a qualquer preço, à exceção da oportunidade de obter um prêmio valioso, assim, a dor precisava ser enterrada, negada, enfim. A educação sentimental, o lento desabrochar infantil da compaixão, a descoberta de afetos em flor, o verdejamento da empatia diante da dor do outro, tudo isso teve uma evolução truncada na vida dela, ou permaneceu em potência. Daí o descaso ser nela algo de natural. Enquanto sentava à sua mesa de trabalho, com o sol batendo no rosto, refletindo diante do seu texto por fazer sobre a arte, a vida e o descaso com a vida, Adriano se lembrava dos momentos em que Clara lhe dizia algo por pura obrigação, porque sabia que seria cobrada. Outras vezes, era ele quem não podia respondê-la por estar envolvido com algum trabalho surgido de última hora, e ela se comportava da mesma forma. Ele tinha sempre de estar disponível. Acontecia também de sua vida social badalada a absorver tanto que ela se esquecia completamente da existência dele. Em tudo, Adriano a sentia necessitada de atenção, não qualquer atenção, visto que a recebia abundante e frequentemente, mas de um tipo de atenção especial e única, aquela que só conhecera nos cuidados do pai, muito diferente da rígida educação social que a mãe lhe impunha.

Assim, Adriano soube que o convite que lhe havia feito para o cinema não fora encarado com seriedade, e não era por crueldade que ela assim fazia. Ela separara a sua vida virtual da real, concreta, em compartimentos estanques, sem possibilidade de comunicação um com o outro, simplesmente porque não podia deixar que ele conhecesse seu lado pior nem podia demonstrar fragilidade na vida pública. Não queria poupá-lo de seu lado pior, não se importava com ele, suas necessidades, desejos e anseios, só não queria macular a situação de vulnerabilidade em que se permitia ficar diante dele com a 'outra' vida. A exposição não foi um contratempo. Não fosse isso, seria outra coisa, ela nunca estaria pronta para se ver em um compromisso social ao lado dele, muito menos de assumir publicamente qualquer coisa com ele, porque ele e a vida pública eram realidades ônticas inconciliáveis, absolutamente distintas e incomunicáveis. Assim era o descaso que tinha com a própria vida: sem perspectiva alguma de ver na vida o palco de realizações pessoais, usou Adriano para preencher o vazio de seus anseios com um simulacro de realidade emocional, mas sem jamais se envolver, sem jamais deixar de manter aquela distância pela qual poderia manter o estado de suspensão tensa que era o relacionamento deles.

Quando Adriano se deu conta disso, teve grande pena dela, da miséria interior que era sua vida, porém, sabia, finalmente compreendeu que não poderia salvá-la. Ele também tinha um grande tesouro, e muito valioso, e não valia a pena sacrificá-lo pela sombra de um amor que não era, um delírio nascido de suscetibilidade e sugestão. Seu valor pessoal, a estima por si próprio, a consciência do próprio valor o ensinou que a melhor arma contra o descaso era lhe virar as costas. O fim dessas reflexões nunca chegou, permanecendo uma constante em seus pensamentos, no seu contato com os outros e foi sempre uma fonte rica de descobertas.

Conseguiu terminar o livro, passando seis meses em sua revisão obsessiva, relendo, trelendo, cortando, aumentando, mudando a direção, afinando seu estilo, até que conseguiu martelar sua versão final, a de um romance sobre expectativas falsas e ilusões. Levou-o a vários editores, sem sucesso, até começar a se utilizar das credenciais de seus trabalhos de redator, o que começou a lhe abrir as portas, além do prêmio literário do ano retrasado, ganho por um de seus contos. Finalmente, fechou um contrato com uma pequena editora que mantinha contatos com livreiros da capital, publicitários de renome e alguns nomes graúdos da cidade, permitindo que fosse publicado sem delongas.

VIII

Adriano estava saindo de um encontro com o editor, de alma lavada, não parecia reparar na chuva fina que caía sobre sua cabeça desgrenhada e descoberta. Estava virando uma das esquinas de uma das ruas de canais, e nem se deu conta de que virava a mesma na qual pensara em suicídio no ano anterior, malogrado pelo estado de desleixo de sua alma e do próprio canal. Agora, a comprida vala simétrica e oblonga estava parcialmente cheia, por conta das chuvas fortes da semana, só estiando agora. Recostou-se a um banco isolado, próximo à amurada do canal, puxou um cigarro do maço enfiado no bolso direito da calça jeans que vestia, acendeu-o com o isqueiro puxado do outro bolso, e ficou a pensar na vida, fumando com tranquilidade e inquietação. Logo em frente, havia um novo bar, com uma temática meio hipster, ficava onde estava uma tabacaria velha com um dono igualmente velho, com quem ele gostava de bater papo. Olhando de relance, viu que todos eram jovens, o bartender, os garçons, e principalmente a clientela, mas viu um rosto familiar, um rosto longo, magro, de cabelos loiros cortados junto aos ombros...

- Dino! - chamou ela, o havia reconhecido da sua mesa. Estava pagando a conta e já atravessava a rua para ir ter com ele.

- Simone... - murmurou ele, meio assustado. - Há quanto tempo.

Era verdade, fazia mais de um ano que não tinha notícias dela. Estava mais bonita, com um corte de cabelo diferente e trocara as roupas de socialite com que a mãe a forçava a se embonecar com uma calça jeans, e uma camisa escura, simples. Não usava maquiagem, o que realçava os lábios finos e sobrancelhas grossas, ou seja, estava particularmente atraente. Vê-la foi doloroso de uma forma especial, ainda mais quando estava tão relaxada. Quis rir de si mesmo.

- Então, como você está?

- Eu? Eu vou bem. - disse a moça, mexendo no cabelo sugestivamente com a palma da mão, sorrindo de orelha a orelha. - Queria mesmo falar contigo. Consegui terminar!

- Conseguiu? Que maravilha! - Adriano estava entusiasmado agora, pegou nas suas mãos como um alucinado e a sentou na amurada, junto com ele. - E os problemas da focalização? Conseguiu acertar? Você disse que estava tendo problemas em seguir pela primeira pessoa.

- Sim, sim, preferi optar pela primeira pessoa mesmo, mas reformulei toda a narrativa por conta disso. - ela se sentou, mais relaxada, brincando com as mãos dele nas suas.

Na época da corte a Clara, ela não era só apagada, como se saía mal em imitar a irmã, o que fazia só para agradar a mãe. Aquelas roupas tão femininas, limpas, claras, não lhe caíam muito bem, fazendo-a se parecer com uma boneca feia com lindos vestidos. Não sabia se maquiar. E nem gostava de nada disso, mas disfarçava bem, repetimos, para agradar à mãe. Agora parecia bem mais natural, mais à vontade e, acima de tudo, mais confortável. Se havia algo de característico em Simone, quando a via naqueles eventos sociais, era seu desconforto. Parecia sempre parecer estar em um lugar onde não queria estar, onde estava cumprindo protocolo, batendo ponto.

Era muito diferente agora, parecia mais à vontade, mais livre, até seus movimentos eram mais fluidos. Mexia nos cabelos curtos, olhava por cima do ombro de Adriano como se estivesse com o pensamento ao longe, mas muito consciente de onde estava. Falou da mudança no desenvolvimento de sua narrativa, como era difícil encontrar sua voz, colocá-lo sob esquadro e, ao mesmo tempo, fazê-la se envolver com a história e fazê-la andar. Adriano concordou, realmente, seria preciso reescrever todo o livro para aplicar esse procedimento, e logo passou a dar detalhes do seu próprio desenvolvimento, e do quanto teve que reescrever. Não foi preciso, claro, detalhar a ela que isso se devia ao seu 'relacionamento' com a irmã, ela sabia, de fato, poucos sabiam mais do que ela.

- Eu tive que mudar. - disse ele, oferecendo a ela um trago do cigarro minguante. - Eu vi tanta coisa, senti tanta coisa que...

- Eu sei. É como quando eu me afastei um pouco de casa, vi algumas coisas, mas no meu caso foi principalmente o que eu deixei de ver, deixei de fazer parte daquele mundo. É como se... - ela parou, pegou o cigarro na mão, e devolveu, sem tragar. - Como se minha vida estivesse encarcerada dentro de mim, como se eu sentisse tudo, visse tudo, soubesse de tudo, mas sem poder experimentar nada. Como aquela história do Evangelho... como era...

- O rico e Lázaro. - a erudição de Adriano o obrigara a ler a Escritura, mas não tinha religião além da literatura.

- Sim, essa mesmo. Sabe, era como ver todo o mundo à sua volta se formando, se desenrolando, e você, ali... sem poder participar de nada. O mundo pendurava seus frutos doces, suculentos até à vista, ao seu alcance, mas você está paralisado, sem reação, só podendo sentir, ver, cheirar. Era uma tortura. Entende? Viver numa gaiola por tanto tempo. Eu tive que dar um basta, romper com minha mãe.

- Teu pai te deu o maior apoio. - começou ele a dizer, pois o próprio doutor lhe havia confidenciado isso, bem como a vocação da filha para a escrita, e não era de petições.

- Sim, ele deu. Ele me ajudou a montar o escritório, até captou alguns clientes pra mim, se dava melhor que ela com relação a eles, mas sabia que eu não estava feliz. O que eu amava mesmo era escrever, e não petições, aquela linguagem chata, pedante, toda formal e sem capacidade de criar... fora que lidar com a pressão dos casos era demais. - ela mordia os lábios, novamente olhando ao longe.

- Mas você ainda tem seu ganha-pão, aliás, mais do que isso, tem uma carreira estabelecida, casos que pode pegar, casos que virão. - ponderou ele. - Você tem tempo pra escrever e, ao mesmo tempo, um campo profissional que te permite escolher quanto quer trabalhar, quando e onde, sem se preocupar com horários, chefia, essas coisas que infernizam a gente...

- Pode ser, mas ainda tenho menos tempo que você. - dessa vez, ela tragava bem próximo dele, quase encostando seus narizes. - Meu pai disse que não tira muito das suas críticas, mas ainda faz o que gosta, escreve livremente, criativamente, e ganha por isso. Está fazendo um nome para si, e testando seu talento como escritor.

Ela ficou amuada, mas ele sabia que era de fachada, não era nada como a irmã. Não tinha ilusões sobre o futuro, queria publicar seu livro e ir levando a vida entre alguns processos que lhe permitissem bancar seu estilo de vida, que era até frugal pra alguém do seu círculo, e tinha muita noção de sua condição, suas limitações como escritora e seus privilégios. Por isso vivia fazendo advocacia "pro bono", ajudando as pessoas, principalmente com benefícios previdenciários.

- Esse bar é bom? - perguntou ele, virando o rosto da direção dela para o bar.

- É, mais ou menos, vou mais quando tenho algumas parcerias ou clientes pra conversar. Acho meio caro. - ela continuou olhando pra ele.

- Pra você achar meio caro é porque deve ser uma facada mesmo... - brincou ele, rindo. Era incrível como ela tinha mudado, nunca o olhara com tanta vontade assim, não sem precisar desviar o olhar quando percebia que ele estava vendo.

- Eu tenho vinho em casa, um baratinho, chileno, mas bem bom. Quer ir pra lá? - agora seu olhar era displicente, segurando o cigarro na mesma mão com que segurava a cabeça pelo lado direito, sugestivamente.

- Topo! Quero conhecer seu muquifo.

Então, foram. Ela foi, conheceu, e continuou indo e conhecendo por dias a fio, entre um intervalo e outro. Conheceu mais que o apartamento, seus livros, os vinhos, a coleção de quinquilharias, a aparelhagem doméstica. Conheceu Adriano, conheceu a si mesma. Logo, não quis ir dormir em mais nenhum outro lugar.

Epílogo

Amanda corria pela casa, tentando escapar dos gritos da mãe e das mãos grandes do pai. Agora que chegava aos 5 de idade, estava impossível, quebrava as próprias bonecas, lambuzava o chão com a tinta acrílica da mãe, e era um sacrifício para limpar aquilo, isso quando não usava os rascunhos do pai pra desenhar. Era uma artista. Era um domingo, não tinha escola, então estava mais endiabrada que o normal. Mas Adriano conseguiu finalmente pegá-la quando pulou do sofá da sala para o umbral da cozinha, e começou a pentear seus cabelos. Estavam atrasados para a festa de casamento de Clara, e a tia não gostava que se atrasassem, então, seja uma boa menina, e isso levou tempo apenas suficiente para Simone finalmente descer as escadas. Estava deslumbrante, com seus quase quarenta anos enfiados em um pequeno vestido preto, deixando à mostra suas pernas longas e magras, o tronco fino e os ombros longos. Usava um penteado curto com uma franja, que caía por sobre um dos lados da face morena, cabelos loiros como o da irmã, vestia luvas brancas, um colar de pérolas e um sapatos de salto alto, tudo negro como a noite, e que lhe caíam muito bem. Clara lhe dera tudo, saíram para fazer compras na semana anterior, e ela montara e embonecara a irmã para seu novo casamento, já era o quarto. Naquela época, Simone não usava mais as roupas formais de advogada com tanta frequência, mas parecia que trajes de gala lhe assentavam melhor. Era outra mulher.

Adriano também era outro homem, estava mais magro, forte, com os cabelos encaracolados caídos até os ombros, uma espessa barba negra que não escondia o brilho jovial do sorriso e o charme dos olhos pequenos e calorosos. As mulheres ainda se incendiavam com aquele olhar, mas já fazia oito anos que a nenhuma delas ele lhes dirigia com intenções do tipo, exceto sua mulher. Vestia um terno simples, claro, sem gravata, parecendo mais despojado do que realmente se sentia. Eram casados há dez anos, dez longos anos de companheirismo à toda prova, provas de dificuldades financeiras, de primeiros anos de maternidade e depressão pós-parto, de um ano de bloqueio criativo que correu o risco de estagnar a carreira de Adriano, de uns golpes imobiliários dos quais mal se recuperavam hoje, do rompimento definitivo deles com a mãe de Simone, dos churrasco em família na fazenda que Adriano comprara para os pais no interior, dos casamentos desastrosos de Clara, nos quais sempre haviam repetidas cenas de ciúme, agressões físicas e verbais, e a intermediação vigorosa de Simone. Adriano virou seu conselheiro naqueles tempos, mas parecia que agora as coisas finalmente se aquietavam na sua vida.

Moravam em uma casa pequena perto do centro da cidade, afastados dos olhares curiosos dos leitores de Adriano e dos fãs de Simone. Não se expunham nas redes sociais, apenas divulgavam suas obras. Simone largou a advocacia e a escrita quando se casaram, e pintava aquarelas há cerca de três anos como uma terapia indicada para os momentos difíceis da gravidez, e não parou desde então, descobriu que a escrita não lhe permitia se expressar tão bem como as artes plásticas, uma ideia que Adriano achava tola e engraçada. Chegou até a expor alguns quadros em exposições, usava um pseudônimo e nunca dava o ar de sua graça. Era simplesmente o jeito dela. E era o jeito do marido também, que já estava no seu quinto romance, e em situação bem diferente de quando se casou. Seu primeiro romance, após ser publicado pela pequena editora do Sr. Moreira, vendeu bem, mas nada extraordinário. Já o segundo, após ganhar uns cinco prêmios literários importantes, o lançou no mercado editorial com força, bombardeando-o com uma enxurrada de convites para simpósios, palestras, aulas de escrita criativa, trabalhos de crítica... Podia abandonar o ramo da tradução e revisão, e outros subalternos para se dedicar unicamente ao seu sonho de escritor, e escreveu um sucesso atrás do outro. Só o último bloqueio lhe pareceu assustador, mas sem razão.

Entre esses sucessos literários e atividades artísticas, o casal passou por imensas dificuldades, muita infelicidade, decepções, até se convencerem de que não levavam uma vida plena. Sempre faltava algo, o dinheiro nunca dava, tinham que se arriscar em vários negócios e empreendimentos para tentar manter um padrão de vida que mal se podia chamar de confortável, até que... sem perceberem, viram que estavam se acostumando àquilo. Amanda estava em uma pré-escola boa, paga com seu dinheiro, as contas estavam sendo liquidadas, e processos antigos de Simone, dos quais ele nem se lembrava mais, começavam a render alguma coisa. O quarto livro de Adriano foi traduzido para mais de 20 idiomas, fazendo um sucesso estrondoso na Europa e nos Estados Unidos, e isso lhes tornou a vida, finalmente, confortável. Convenceram-se de que nunca teriam uma vida tranquila, de que sempre faltaria alguma coisa, mas nunca trabalho. Simone acabou voltando a advogar, pegando poucas causas aqui e ali, e se tornou uma mãe formidável, sem desistir das artes. Adriano fazia vários trabalhos de tradução porque julgava que ler tanta coisa lhe dava inspiração, mas era só porque detestava ficar parado esperando que as musas lhe abençoassem com ideias para um novo romance. Em todos aqueles anos, sempre ajudou a mulher com a gravidez e a educação da filha, e ela lhe ajudava com a escrita: tinha um olho cirúrgico para erros ortográficos e um outro olho, este artístico, para problemas no estilo. Ela repassava os originais com ele, reescrevia as reescrituras dele, revisava, e por vezes ficavam madrugada adentro discutindo sobre as melhores soluções, o que cortar, o que deixar... Levariam essa vida ainda por muitos anos, e veriam que não faltou muita coisa durante aqueles anos, afinal.

Clara ia se casar com um famoso escritor português, riquíssimo e dono de uma rede de restaurantes finos que abrira sua primeira franquia no Brasil ano passado, quando foi mais um cativado pelas redes da bela moça, agora já entrando nos seus 36 anos. O casamento foi realizado no civil, discretamente, já que era seu quarto casamento. Fazia questão que seus muitos amigos, sua família e uma legião de personalidades importantes comparecessem à festa, e todos seriam objeto da máxima atenção e consideração. Chamou diversos sujeitos da cena literária parisiense e norte-americana, estudiosos do trabalho de Adriano, muitos críticos, queria que essa festa fosse um verdadeiro sarau literário para honrar seu antigo admirador e cunhado dedicado, o homem que rejeitou cruelmente e que tinha um coração capaz de lhe acolher e oferecer os conselhos mais valiosos, para não falar das vezes que lhe salvara de tirar a própria vida.

Os seus casamentos passados, os três, não foram felizes. Um playboy do seu meio social, aquele filho de prático e um empresário com o dobro de sua idade. Todas a fizeram sofrer terrivelmente, de algum modo: agressões físicas, ameaças, chantagem emocional, manipulação, ciúme doentio, e todos se esforçaram para dilapidar a fortuna dos pais dela, que morreram cedo. Adriano a retirava de seus abismos de depressão, mania e ataques histéricos, e a irmã lhe salvava o patrimônio, o que dava para salvar. Chegou até a morar na casa deles por um tempo, esperando a ordem judicial que Simone lutou tanto para conseguir, que colocou o último marido na cadeia. Não tinha mais nada naquela época, exceto a casa dos pais. Sobre estes, basta que se diga que morreram afogados debaixo dos destroços de um avião que os levava de volta para casa depois de um ano sabático em Paris. Clara estava sofrendo horrores com as agressões do filho do prático, de modo que a única reação dela diante da morte dos pais foi uma perplexidade muda parecida com choque, que durou anos, o que só enfurecia mais o marido. Simone chorou por semanas seguidas, e ainda hoje, em alguns intervalos, Adriano sabia que ela chorava, principalmente pela mãe. A vida é engraçada.

O escritor se surpreendeu quando chegou com seu velho carro de passeio ao Clube de Regatas, com a mulher e a filha. Esperava um baile de gala, e o que viu foi um pequeno punhado de pessoas, muitos deles estrangeiros, sentados em uma roda, com Clara no centro, dedilhando uma harpa antiga, enorme, com suas longas e magras mãos de dedos esqueléticos de ninfa. Muitos conversavam sobre arte, literatura, filosofia, e haviam alguns fotógrafos, e figurões do comércio naval, mas era uma nata muito reduzida, só os poucos amigos que restaram a Clara e uma comitiva modesta de Raul, seu noivo. Atrás deles, ao fundo do longo salão de chão envidraçado, na sacada enorme que dava para o mar infinito, ficava uma orquestra tímida, mais preocupada em beber vinho e comer os salgados que com música. Quando os viu, Clara pôs de lado a harpa, e correu para recebê-los, beijou a irmã e abraçou o cunhado. Apresentou-lhes seus conhecidos, os amigos do esposo e o próprio esposo, Raul, um homem nos seus cinquenta anos, magro e mirrado, mas com olhos brilhantes, barbicha e mãos firmes, rosto um tanto balofo e uma barba rala. Adriano gostou do seu aperto, sabia quando podia confiar em um homem ou não pelo seu aperto de mão, mas nem isso livraria Raul de sua vigilância atenta.

Sentaram-se. Conversaram longamente, sobre o passado, as dificuldades e sofrimentos, as novidades e ficavam de olho em Amanda brincando com as poucas crianças que estavam ali. Ela não parava quieta, e mais de uma vez o pai teve que lhe pegar para comer alguma coisa antes que saísse no soco com uma das meninas. Raul apenas ouvia, olhava sua mulher como se não houvesse nada de mais belo no mundo, e sentia dor com a narrativa de suas desventuras conjugais. Adriano podia sentir seu sofrimento, bem como seu amor, conhecia bem demais aquilo tudo. Quase teve pena dele, mas balançou a cabeça e ficou feliz pela cunhada, talvez agora... quem sabe? Clara parecia mais velha que a irmã, muito marcada por sofrimentos físicos e psíquicos, sua pele estava macilenta, haviam muitas rugas no seu ainda belo rosto, e o último casamento roubou o brilho de seus olhos, agora opacos, e os cabelos nunca foram mais quebradiços. Felizmente, o senso estético e uso de maquiagem estavam intocados, diferente das olheiras sob seus olhos.

Já tarde da noite, com Clara embriagada e dormindo no regaço do esposo amoroso, que acariciava seus cabelos, Adriano se levantou e foi para perto da sacada. Deixou a mulher na poltrona maior, dormia a sono alto, com a filha no colo, pareciam estar em uma paz absoluta. Debruçou-se na sacada de metal. Bebeu demais também, e conversaram tanto... parecia que a vida se desenrolava, voltava a se enrolar, e todos os sentimentos antigos voltavam.

Ele é que não era uma boa pessoa na juventude. Era fraco de caráter e seu coração, inconstante. Usava o aplicativo de mensagens para afirmar sua fé em si mesmo, e era extremamente carente, tão desejoso de atenção e afagos permanentes no seu ego quanto acusou Clara de ser. E as justificativas que usava para defender o descaso de que era vítima eram movidas por orgulho, pela vaidade de não poder se confessar como um perdedor no jogo do amor. Sua recusa em continuar a participar daquele jogo eram as desculpas de um mal perdedor.

Via isso agora, vendo as ondas baterem, furiosas e serenas, contra a barreira da calçada, os navios ao longe, mal discerníveis na névoa noturna, e uma mão ossuda e forte, com longas unhas postiças lhe apertando o braço...

Tirou o cigarro da boca dela. E mergulhou a sua na dela, em um beijo longo, um abraço apertado. A vida ainda era jovem para eles. Havia tempo para se arrepender depois, o horizonte ainda era quente e largo.

Quanto a mim, não fiquei mais jovem. O tempo passa, eu envelheço, me movimento mais devagar e até já me aposentei, mas não consigo ficar parado. Entre essas idas e vindas, vou colecionando histórias como essa, e não sei dizer se possuem uma moral ou um final feliz. Elas... ainda estão acontecendo. É como o mar, sinto que Adriano e Simone ainda o contemplam hoje, e já sem ansiedade, já sem temer pelo futuro, só esperando que sua onda passe.
 

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