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Bicho-papão

JLM

mata o branquelo detta walker
[align=center]BICHO-PAPÃO[/align]

I - A CARTA


[align=justify]Andréa olhava o moço ir embora. Parada na porta de casa, ainda não acreditava na história que ele lhe contara. Teve receio de pedir para repeti-la pela terceira vez. Seria declarar descaradamente que não acreditava nele. Só quando o vulto dobrou a esquina é que ela voltou a si e percebeu que tinha em mãos um envelope velho, amarelado, mas lacrado. Garranchos de caneta e umidade deformavam um nome escrito em tinta azul: Andréa Ferreira dos Santos. O nome dela. Eram palavras que, mesmo silenciosas e antigas, apontavam o dedo para uma única pessoa. Andréa Ferreira dos Santos. Ela. Precisava pensar melhor. Resolveu entrar em casa.

Deixou o envelope sobre a mesa e foi tomar o cafezinho que o visitante recusou. O jovem de roupas brancas dissera que tinha pressa em retornar à terra natal. Já estava em viagem há muitos anos e findava a sua missão em Andréa. A cada gole de café, sorvia o líquido e as palavras que ecoavam em seus ouvidos. O moço viera de longe, de Minas Gerais, somente para lhe entregar a carta. Contou que era a última de sete cartas entregues em sete cidades diferentes. E que, apesar de ter recebido instruções específicas de onde e como encontrar os destinatários, levou anos para terminar a tarefa. Cinco anos, para ser mais exato.

As sete cartas eram de um famoso médium espírita, psicografadas um pouco antes da sua morte e entregues ao fiel discípulo. Como último desejo do mestre querido, deveria entregar pessoalmente cada carta. Elas mudariam o destino de pessoas, algumas vivas, outras não. O jovem discípulo percorreu o país, procurando os destinatários somente pelos nomes escritos em cada envelope e pelas orientações fornecidas pelo vidente. Nunca teve curiosidade em ler as cartas, admitiu, mas precisou ser extremamente rígido na ordem de entrega, pois foi-lhe revelado que encontraria os destinatários em lugares e épocas específicos. Aquela seria a derradeira demonstração da fé que tinha no mestre. Uma fé que Andréa, apesar de ir à igreja todo fim de semana, invejou.

Findou o café e voltou a atenção ao envelope. O marido estava fora. As crianças, na escola. Tinha um tempo livre antes de começar a fazer o almoço. O momento era propício, mas ela estava com medo. A verdade é que não costumava receber cartas. Quase nunca. Ainda mais de um morto, ou pior, de dois mortos. Tentou relacionar quem, do além, poderia querer entrar em contato com ela. Certamente alguém falecido a mais de cinco anos. O tio Manoel do seu esposo estava descartado, morrera ano passado. A filha da Dona Rita também. Não se lembrou de ninguém mais. Com o tempo, os mortos também costumam morrer na memória. Mas, também poderia ser alguém que ela não conhecera, como os avós paternos, falecidos antes de Andréa nascer.

Além do receio sobre o misterioso remetente, Andréa também temia o conteúdo da carta. Se era algo tão importante a ponto de ser psicografado por um médium famoso e este ter incumbido um fiel discípulo de entregá-la pessoalmente, e deste último persistir por anos a fio até completar a tarefa, deveria ser uma mensagem necessária e significativa. Mas para quem? Para o falecido, para o médium ou para ela? E se fossem maldições ou coisas do além que ela não gostaria de saber? Mas, por outro lado, e se falasse do futuro, de seu marido ou dos seus filhos? E se lhe contasse como melhorar de vida ou evitar uma tragédia?

Naquele momento, Andréa sentiu-se terrivelmente sozinha. Aquela carta começava a pesar sobre os seus ombros.

II - O PAI

Escuridão. Vazio. Silêncio.

Um cachorro late distante. Um carro passa na rua, mais próximo. O chão frio e duro ecoa o barulho do motor da geladeira. Chão?! O despertar, a consciência, o abrir os olhos, os móveis assumindo as suas formas, a escuridão indo-se embora lentamente, tudo causa certa vertigem. Andréa demorou a perceber que estava deitada no chão da cozinha. Sentou-se no piso. O mundo ainda rodava e ela buscou equilíbrio. Começou a refazer mentalmente os passos desde onde se lembrava. Havia bebido o café, sentado à mesa, aberto o envelope, oh Deus, lido a carta. Percebeu que desmaiara ao ler aquela estranha carta. Um desespero súbito a subjugara, arrancando as rédeas da sua consciência.

A primeira frase que lera atropelou qualquer raciocínio lógico que Andréa tivesse formulado antes. Oxalá nunca tivesse aberto aquele maldito envelope. É verdade que a idéia de jogá-lo fora lacrado lhe passou pela cabeça, mas a curiosidade feminina falou mais alto. É apenas uma carta, que mal pode fazer, justificou-se. Não fazia idéia do efeito que as palavras possuem. Se elas são capazes de levantar ou derrubar impérios, imagine o que fariam na simples alma de uma mulher do interior. E foram as palavras que a faziam se arrepender da ousadia. Tentou se recuperar do baque, mas os seus olhos ardiam e a cabeça doía. Ao seu lado, também entregue ao chão, a carta mostrava o trecho inicial que Andréa havia lido.

Andréa, o seu pai foi assassinado.

Estas poucas palavras afetaram Andréa pelo mais óbvio dos motivos: ela havia visto o pai ainda cedo pela manhã. Como poderia uma carta, enviada cinco anos atrás, prever o assassinato de seu querido pai naquele dia? Só poderia ser um engano, com certeza era um engano.

Seu paizinho Cairo não poderia estar morto. De forma alguma. Aquela sentença era um equívoco ou uma mentira. Apesar disso, Andréa admitiu que ficaria em dúvida até o meio-dia, quando o pai regressaria da construção onde era pedreiro. E se ele não voltasse? Oh, meu Deus! Cairo, apesar da idade, tinha mais vigor que muitos jovens, era o que as vizinhas comentavam. De modos rústicos, sempre foi forte, enérgico e explosivo, não só no físico, mas também no temperamento. Signo de escorpião. Até mesmo os vícios – o cigarro de palha, o rabo-de-galo diário, o forró dos fins de semana – pareciam não afetar em nada a sua saúde.

A rudeza de Cairo transformou Andréa, na infância, em uma menina tímida, carente, calada, de presença quase imperceptível. Preterida em prol dos dois irmãos mais velhos, aprendeu a contentar-se com as migalhas da atenção do pai. A mãe sempre ensinava o mesmo mantra particular: teu pai gosta mais de filho homem, mas se você obedecê-lo em tudo talvez ele te ame. A sementinha de esperança plantada fez Andréa esforçar-se para superar os irmãos em prontidão, dedicação e obediência para, quem sabe, chamar para si os carinhos do pai.

Voltando da digressão, refletiu que ao invés de ficar ansiosa pela volta do pai, a solução mais rápida era continuar a ler a carta. Talvez encontrasse algo nela que comprovaria o engano. Pegou a carta e, apoiando-se na cadeira, sentou. De maneira ritual, abriu-a novamente e leu.

Mas não estou falando do Cairo. Ele não é o seu pai, eu sou. E fui assassinado por ele.

III - A MÃE

Quando eu namorava a sua mãe, Cairo era meu melhor amigo. Até o dia em que ambos me traíram. Magoado, mudei de cidade enquanto Cairo e Alessandra foram viver juntos. Mas isso foi antes de você nascer.

Soava estranho para Andréa ler revelações do passado de sua mãe e de seu pai. Eles haviam traído o namorado e amigo, respectivamente, e nunca haviam comentado sobre o assunto. Pelo menos não próximo dela. Não que ela acreditasse naquelas palavras, pois a primeira reação quando se acusa um ente querido é a negação incondicional, a proteção fraternal, a confiança pela intimidade e proximidade. Mesmo se as acusações forem verdadeiras. Confiamos e protegemos basicamente porque precisamos de alguém para confiar e nos proteger quando preciso for. Mas Andréa sabia que todos tem segredos – pequenos ou não – inclusive os seus pais, inclusive ela. Principalmente ela.

Andréa sentia vergonha por sua mãe estar internada no manicômio municipal. Este foi o motivo que a fez mudar de bairro. Evitar as fofocas sobre o fatídico episódio que ela se esforçava tanto para esquecer. Envergonhava-se de ter sido atacada com uma faca num violento acesso de loucura da mãe. Carregaria pelo resto da vida a maldição de ter a própria mãe tentando matá-la. Assim como carregaria o fardo por ter assinado os papéis da internação, pois o seu pai resolveria a situação de outra maneira: daria uma coça na desmiolada até ela sarar ou piorar de vez. Os seus irmãos não ajudaram, há muito andavam perdidos pelo mundo. Ela era a única responsável pela mãe louca.

Tentara visitar a mãe algumas vezes, sem sucesso, pois era só Alessandra ver a filha para atacá-la com quaisquer objetos próximos, urrando e esbravejando ofensas. Por fim, desistiu e abandonou a mãe aos cuidados dos enfermeiros e de Santa Dinfna, protetora dos doidos varridos.

Durante anos, descontei em outras mulheres o mal que Alessandra me fez. Virei um monstro, um bicho-papão, que comia vítimas pobres e indefesas e abandonava os restos na sarjeta. Não me orgulho do que me tornei. Inocentes sofreram sem merecer. Mas isso foi antes de você nascer.


E se esta história trazer alguma verdade? Afinal, ninguém confessa os pecados a uma desconhecida a não ser para provocar uma atitude condescendente e misericordiosa. Mas quem escreveu a carta não busca absolvição, mesmo porque está morto e enterrado. Então qual é o seu propósito? Prejudicar a relação de Andréa com seu paizinho, o único que lhe restara após a mãe ter sido internada? Andréa não entendia em quê estas revelações lhe seriam úteis.

Por outro lado, abria-se diante de Andréa uma vitrine onde poderia escolher o pai que desejasse. Mas ela já conhecia Cairo. Ele habitava em sua memória como pai desde antes dela pensar por conta própria. Cairo estava vivo, morava com ela, brincava com os seus filhos todos os dias e ajudava nas despesas da casa. E quem era o outro? Ninguém. Apenas um nome em uma carta velha. E havia algo mais importante: Cairo era o único que compactuava com Andréa o segredo da loucura de Alessandra.

Certa vez, voltei e Alessandra, ainda morando com Cairo, implorou por meu perdão. Disse que sempre me amou, se humilhou e sujeitou-se a todos os meus sadismos. Mas eu não sentia mais nada por ela. Eu não sentia mais nada por ninguém. Por isso, depois de satisfazer a minha vingança em Alessandra, fui embora, desconhecendo que você nasceria pouco tempo depois.

Andréa se negava a acreditar que havia nascido como resultado de uma vingança por causa de uma traição. Era desprezível demais. Ninguém merece saber que é fruto do ódio ao invés do amor, carregar em seus genes o estigma da maldade dos pais. Desejaria mil vezes não saber se esta fosse a verdade. Não queria ter essa história na sua vida nem a sua vida nessa história. Preferia a alegre ignorância ao conhecimento que trouxesse como bônus o sofrimento. Decidiu terminar o parágrafo e jogar a maldita carta no lixo.

Depois, visitando a cidade, vi sua mãe passeando com você. Uma linda menina de cachos dourados que só podia ser minha. Apaixonei-me pelos seus olhos azuis. O amor que senti pela filha superou o ódio pela mãe. Naquele momento, morreu o monstro, o bicho-papão, o coração sádico e endurecido. Desejei ser melhor, por você e para você. Foi quando resolvi te conhecer. E foi quando morri por sua causa. Agora, preciso te ajudar a se livrar do trauma de infância que, sem querer, deixei você sofrer.

IV - O TRAUMA

Um riso irônico alternava com suspiros apressados. Andréa tentava disfarçar as mãos suadas na calça, apesar de estar só. Dissimulou ao pensar em voz alta que trauma era coisa de gente rica. Pobre não tem estas frescuras. Seria cômico alguém afirmar que ela, justo ela, tinha um trauma de infância por causa de um desconhecido. Hilário. Ensaiou uma gargalhada, mas esta acabou não saindo tão natural como queria. Procurou racionalizar o que se lembrava da infância: sonhos, decepções, sofrimentos, brigas, enfim, coisas que existem em toda família e nem por isso são traumáticas. Traumatizada era o adjetivo que não combinava com o substantivo Andréa.

A carta começava a soar infundada e sem cabimento. Mal sabia que o pior ainda estava por vir. Quando uma carta póstuma é enviada afirmando que o verdadeiro pai foi assassinado pelo homem considerado até então o seu progenitor, que outras afirmações inimagináveis também não poderia sugerir? As palavras não conhecem limites, a imaginação sim. Se a imaginação seguir a trilha deixada pelas palavras corre o risco de conhecer lugares que não gostaria nem de ouvir.

Tentei me aproximar de você, mas Cairo não deixou. Então passei a te observar à distância na escola ou na pracinha. A minha rotina era te amar sozinho e em silêncio. Mas havia um pedófilo ameaçando a cidade. Três crianças estavam desaparecidas. Um dia, percebi um estranho te seguindo. Quando você se afastou das outras crianças, ele te atacou. E eu o ataquei. Defendi como uma fera a minha menininha daquele monstro. Rolamos pela rua. A multidão nos cercou assim que soube que se tratava do pedófilo. Mas quando nos separaram, não sabiam a quem culpar. Eu o acusava e ele a mim. A dúvida acabou quando um dentre a multidão apontou o dedo. A última cena que vi foi dedo de Cairo apontando para mim. Ali mesmo, fui linchado pela multidão ensandecida. Entre Cristo e Barrabás, venceu Barrabás, com uma pequena ajuda de Judas.

A memória de Andréa esboçava uma vaga lembrança daquela cena. Ela era pequena, contudo lembrou de assistir a multidão dando socos e pontapés no homem caído à sua frente. Mas Andréa nunca encarou o episódio como traumatizante. Nem lembrava dele. Ela não conhecia nem sentia nada pelo homem que apanhou até a morte, quem quer que fosse. Ao contrário, ela lembrou que depois daquele dia Cairo passou a tratá-la melhor que aos irmãos: deu-lhe atenção, carinho e proteção especiais que jamais tivera antes. Aquele ato violento realizou o sonho de uma menininha em saborear o amor paterno.

Mas não é esse o trauma a que me refiro, Andréa. Você sabe que é aquele que você esconde no íntimo, que sente vergonha ao lembrar, que te faz chorar quando está só. É o motivo da sua mãe ter tentado te matar. O trauma a que me refiro é você dormir desde os 12 anos de idade com Cairo, o homem que acredita ser seu pai. De criar dois filhos do pai-marido enquanto a sua mãe definha em um hospício. Cairo não se contentou em me matar, ele descontou em você todo o ódio que teve por mim e por sua mãe. E, desta vez, eu não pude salvar a minha menina do bicho-papão.

V – FINAL

A carta atingiu o ponto fraco de Andréa. Não foi um tapa no rosto, foi como sangrar sem estar ferida. Andréa realmente tinha esse segredo sujo. Ela fazia sexo com o pai, Cairo, desde a adolescência. Nunca dormiu com outro homem. Cairo não a deixara namorar ninguém. Sentia um ciúme doentio por ela até com os irmãos. Andréa, tentando fugir do sentimento de culpa, plantou a ilusão em sua mente de que a sua vida, mesmo imperfeita, seguia os caminhos que Deus havia traçado para ela. Deus escreve certo por linhas tortas, não é? E mais torta que a vida de Andréa, impossível. Então, se era para ela ser feliz como a mulher do pai, faria como nos tempos bíblicos, obedeceria resignada e lhe daria filhos. Quem não aceitou esta relação foi Alessandra, a mãe de Andréa. No dia em que flagrou o marido e a filha nus na cama do casal, Alessandra pirou. Pegou uma faca e atacou Andréa. Melhor uma filha morta que uma vagabunda. Foi preciso chamar os vizinhos naquele dia para conter a fúria de Alessandra. Ou ela matava ou ela morria. O único jeito de calar Alessandra foi interná-la no hospício como doida.

Sempre que o silêncio aparecia, trazia para Andréa os gritos e as maldições da mãe. Ira de mãe é ira divina. A vergonha e a depressão só faziam aumentar. Pensou várias vezes em suicídio. A carta declarava uma sentença – bem maior que um trauma infantil – da pena capital que Andréa cumpria fazia tempos. Sem amigos, nem parentes, a única alegria era viver integralmente num faz-de-conta para o pai-marido e os filhos. Mas não apaziguava o desespero que ela sentia. Ela não vivia, definhava. Com o coração apertado, boca seca, pensamentos confusos, ela resolveu terminar a carta que a trouxe de volta à dura e cruel realidade.

Filha, me perdoe por não te defender quando mais precisou de mim. Eu morreria mil vezes por você se pudesse, mas não pude. Se estivesse vivo eu mataria o desgraçado. Quero que saiba que todo problema tem solução, mesmo que tardia. Só depende de você. Não obedeça aquele que sempre te enganou e se aproveitou de você. Eu torço por você e aguardo o dia em que finalmente iremos nos abraçar como pai e filha. Com um amor mais profundo que a morte e um beijo, de teu pai, Jorge.


Um lampejo de esperança brilhou nos olhos de Andréa. E se ela não fosse filha de Cairo? Ele abusara dela, se aproveitara de sua inocência infantil e a enganara, mas ela não era culpada. Os céus, através daquela carta, revelavam que ela não era pecadora e não havia porque se sentir suja. O seu verdadeiro pai se chamava Jorge e a amava como um pai deve amar. Releu o final da carta molhando o papel com algumas gotas que caíam.

Neste instante, o portão da frente rangeu. Ela olhou para o relógio: meio-dia. Perdera toda a manhã lendo a carta e esqueceu-se do almoço. Cairo ficaria muito bravo. Mas era hora de Andréa dar um basta. Foi até o quarto. A porta da cozinha se abriu. Subiu na cama e alcançou a caixa de sapatos em cima do guarda-roupa. Andréa, cadê o meu almoço, trem? - ouviu Cairo gritar na sala. Sentada na cama, Andréa colocou uma bala no tambor do revólver e engatilhou no exato momento em que Cairo entrava no quarto. Ambos se olharam sabendo o que iria acontecer.

Na rua, dois garotos com uniformes escolares apostavam corrida até o portão para ver quem chegaria primeiro, o último seria mulher do padre, quando ouviram o estampido seco dentro da casa.

VI - EPÍLOGO

Andréa,

O seu pai foi assassinado. Mas não estou falando do Cairo. Ele não é o seu pai, eu sou. E fui assassinado por ele.

Quando eu namorava a sua mãe, Cairo era meu melhor amigo. Até o dia em que ambos me traíram. Magoado, mudei de cidade enquanto Cairo e Alessandra foram viver juntos. Mas isso foi antes de você nascer.

Durante anos, descontei em outras mulheres o mal que Alessandra me fez. Virei um monstro, um bicho-papão, que comia vítimas pobres e indefesas e abandonava os restos na sarjeta. Não me orgulho do que me tornei. Inocentes sofreram sem merecer. Mas isso foi antes de você nascer.

Certa vez, voltei e Alessandra, ainda morando com Cairo, implorou por meu perdão. Disse que sempre me amou, se humilhou e sujeitou-se a todos os meus sadismos. Mas eu não sentia mais nada por ela. Eu não sentia mais nada por ninguém. Por isso, depois de satisfazer a minha vingança em Alessandra, fui embora, desconhecendo que você nasceria pouco tempo depois.

Depois, visitando a cidade, vi sua mãe passeando com você. Uma linda menina de cachos dourados que só podia ser minha. Apaixonei-me pelos seus olhos azuis. O amor que senti pela filha superou o ódio pela mãe. Naquele momento, morreu o monstro, o bicho-papão, o coração sádico e endurecido. Desejei ser melhor, por você e para você. Foi quando resolvi te conhecer. E foi quando morri por sua causa. Agora, preciso te ajudar a se livrar do trauma de infância que, sem querer, deixei você sofrer.

Tentei me aproximar de você, mas Cairo não deixou. Então passei a te observar à distância na escola ou na pracinha. A minha rotina era te amar sozinho e em silêncio. Mas havia um pedófilo ameaçando a cidade. Três crianças estavam desaparecidas. Um dia, percebi um estranho te seguindo. Quando você se afastou das outras crianças, ele te atacou. E eu o ataquei. Defendi como uma fera a minha menininha daquele monstro. Rolamos pela rua. A multidão nos cercou assim que soube que se tratava do pedófilo. Mas quando nos separaram, não sabiam a quem culpar. Eu o acusava e ele a mim. A dúvida acabou quando um dentre a multidão apontou o dedo. A última cena que vi foi dedo de Cairo apontando para mim. Ali mesmo, fui linchado pela multidão ensandecida. Entre Cristo e Barrabás, venceu Barrabás, com uma pequena ajuda de Judas.

Mas não é esse o trauma a que me refiro, Andréa. Você sabe que é aquele que você esconde no íntimo, que sente vergonha ao lembrar, que te faz chorar quando está só. É o motivo da sua mãe ter tentado te matar. O trauma a que me refiro é você dormir desde os 12 anos de idade com Cairo, o homem que acredita ser seu pai. De criar dois filhos do pai-marido enquanto a sua mãe definha em um hospício. Cairo não se contentou em me matar, ele descontou em você todo o ódio que teve por mim e por sua mãe. E, desta vez, eu não pude salvar a minha menina do bicho-papão.

Filha, me perdoe por não te defender quando mais precisou de mim. Eu morreria mil vezes por você se pudesse, mas não pude. Se estivesse vivo eu mataria o desgraçado. Quero que saiba que todo problema tem solução, mesmo que tardia. Só depende de você. Não obedeça aquele que sempre te enganou e se aproveitou de você. Eu torço por você e aguardo o dia em que finalmente iremos nos abraçar como pai e filha.

Com um amor mais profundo que a morte e um beijo,

de teu pai,

Jorge.



O rapaz terminou de ler a carta em voz alta. A mulher olhava a chuva pela janela com os pensamentos longe. Demorou, mas disse:

- A carta vai cumprir o seu objetivo.

- Qual? – perguntou o rapaz todo de branco.

- Vingança. – respondeu – De um jeito que, se depender do meu santo protetor, vai acontecer.

- Existe alguma verdade na carta? O tal Jorge existiu mesmo? Ele era o pai de Andréa?

- Isso não importa. O essencial é você cumprir a sua parte no acordo. Lembra o que deve fazer?

- Sim... Entrego a carta para a moça, quando estiver sozinha... Minto sobre o tal vidente famoso falecido que psicografou para ela cinco anos atrás...

- Certo. Não se esqueça de dizer que você é de Minas Gerais e que é a última de sete cartas que está entregando. Se você cumprir esta pequena tarefa terá a sua recompensa te esperando na minha cama, quantas noites quiser ou agüentar. Farei coisas que você não imagina serem possíveis.

- Deixa comigo, Alessandra. Amanhã à noite cobrarei o meu prêmio. De manhã, irei até o endereço que me passou e faço o combinado.

Alessandra pegou a carta e lacrou-a no envelope que trazia o nome da filha escrito. Em seguida, entregou-o nas mãos do auxiliar de enfermagem. Deu um beijo sensual no futuro amante e retornou à janela. Enquanto ouvia o barulho da porta sendo trancada atrás de si, a sua mente insana revelava como tudo iria acontecer.[/align]


[align=right][ texto baseado em fatos reais ][/align]
 
Muito bom o conto JLM!
As reviravoltas, o ar de suspense suburbano e o fato de você usar personagens reais e brasileiros, fazem com que eu tenha gostado muito. O final é um show a parte e desacreditador da humanidade. Obrigada por nos presentear com essa boa leitura e parabéns pelo conto vencedor.
 
É JLM, seu conto tá demais.
Uma das coisas que achei muito bom foi a maneira como você vai soltando aos poucos as informações, à conta gotas, mantendo sempre o clima de suspense no ar, mas sem parecer proposital. Mesmo os pensamentos de Andréa vieram de maneira a deixar , nós leitores, perdidos e eletrizados.
Você contornou, fazendo disso uma ferramenta de suspense uma coisa que eu acho bem esquisita que ocorrem em várias histórias de vários tipos: Geralmente no inicio de um livro ou o que seja, as personagens, pra nos deixar a par da vida deles, quando pensam no passado relembram tudo até o nome da mãe e coisas básicas em que geralmente não pensamos ( os pensamentos não vêm meio que num flash?).
Como o Breno disse, seu conto dá um filme mesmo, até a maneira que você o dividiu, como se fossem atos de uma peça, sugere essa qualidade.
Parabéns... :winner:
 
obrigado pela força amigos, mas tenho de revelar q escrevi o conto a mais de um ano atrás. se v6 vissem a primeira versão dele, não dariam nada, o bom é q o conto evoluiu bem mais dq eu pensava inicialmente.

alguém disse no tópico do concurso q a linguagem estava fraca, mas isso foi proposital, para dar um ar interiorano, simplório, não só pela gramática, mas tb nas descrições de personagens e eventos. outro falou em clichê, mas acredito q foi mesmo uma coincidência com o outro conto, oq não deve ter atrapalhado mto na trama, não?

tá certo q ainda há alguns pontos a serem melhorados, mas gostei da maioria, mesmo os q não votaram no bicho-papão, disseram q estavam em dúvida entre ele e outros. e q ele deu idéias pros leitores, e isso, é o maior prêmio do concurso, pois imagine qta coisa um simples conto pode produzir?
 
Parabéns, JLM, o conto realmente está incrível. Me deixou boquiaberto na primeira vez que li . O legal é que, como era o primeiro no tópico do concurso, fiquei bem animado para ler o restante dos textos. Putz, o pessoal não veio aqui à brincadeira, pensei. :timido:
Como o Vail falou, o efeito "conta-gotas" é um dos grandes fortes do texto, o que mantém o suspense e nos deixa vidrados até o final. A história flui tão bem que o leitor nem se preocupa como o tamanho do conto. E o final foi surpreendente, fiquei mesmo impresionado.^^
Congrats pelo primeirão no concurso. Espero escrever assim um dia. XD
 
Não foi o que eu votei mas ficou entre meus preferidos. O que eu mais gostei nele foi justamente isso de ir liberando a informação aos poucos, à medida que a personagem ia lendo a carta e relembrando eventos do passado. Mto bom cara, e a divisão em partes ajudou bastante no ritmo.
 
Puxa!!!
Um enredo que prende, fatos novos que parecem não ter relação, mas que se completam...
Parecia de início mais uma historinha daquelas que mexem com as crenças implantadas, depois toma rumos que vão provocando sentimentos que não sabíamos dentro de nós tão aflorados... Vieram o medo, a revolta, a dor... E por fim, o susto! Uma mãe!!!
No tocante ao nome, colocado em outro post, agradeço! Particularmente, ao escrevê-lo, penso não existir outro que me melhor me traduza!!!
Você escreve muito bem, deve ter sido o orgulho de seus professores (rsrsr).
Mais um abraço, mérito pelo texto!
Andréa
 

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