Obra da Vale para desviar rota da lama em Minas preocupa moradores
Máquinas trabalhando em área de mata perto do povoado de André do Mato Dentro (MG) Imagem: Programa Polos de Cidadania/UFMG
Moradores de duas comunidades rurais de Santa Bárbara (MG) que não estavam na rota da lama estão apreensivos desde que a Vale começou a fazer obras em suas terras para desviar o rejeito da barragem Sul Superior, da vizinha Barão de Cocais. A estrutura corre risco de se romper sozinha ou em consequência da queda do talude, terreno inclinado que dá sustentação à barragem e continua se movimentando.
Há cerca de 20 dias, máquinas pesadas da mineradora estão trabalhando em André do Mato Dentro e Cruz dos Peixotos, povoados distantes 14 km da mina de Gongo Soco por estrada de terra. Seus moradores e sitiantes reclamam que até agora não foram informados do que realmente está sendo feito, nem sobre consequências e possíveis riscos. Parte da lama que seguiria para Barão de Cocais, no lado oposto, agora deverá vir nessa direção.
Para piorar a situação, ao menos três famílias já tiveram que deixar suas terras, por determinação da Justiça, para que as obras sejam realizadas. Outras tantas temem receber a qualquer momento uma ordem de retirada, sob pena de ter de pagar de R$ 100 mil a R$ 1 milhão por dia caso se recusem a sair de casa.
"Vieram medir [a propriedade] aqui do lado, então a gente fica preocupado de ser o próximo, porque a gente não sabe a ideia deles, e eles não explicam nada", diz o funcionário público José Mendes de Carvalho, conhecido por Chico, que mora com a mulher e um filho em um sítio em Cruz dos Peixotos, onde cria gado e planta café. "Já falei com meu contador, e ele me disse: 'Se vierem te procurar, não assina nada'."
A região onde estão localizados os povoados de Cruz dos Peixotos e André do Mato Dentro fica na porção oeste de Santa Bárbara, a cerca de 40 km do centro histórico, que, conforme já informado pelo
UOL,
seria afetado pela lama três horas após o rompimento. Barão de Cocais, onde está localizada a mina e barragem, fica ao norte de Santa Bárbara.
Autorização para entrar dada num plantão
Em 18 de maio, cinco dias após informar as autoridades de que parte do talude se romperia e poderia afetar a barragem, a Vale ajuizou uma medida de urgência pedindo autorização para entrar em imóveis de terceiros localizados nas proximidades da mina. A intenção era construir um canal de escoamento e uma bacia de contenção.
A mineradora alegou se tratar de uma "situação de calamidade pública", por haver "risco iminente de rompimento" da barragem, e que as obras eram necessárias para minorar as consequências ambientais e sociais de um possível desastre. Disse ainda na chamada "ação de tutela antecipada" que vai indenizar os prejuízos materiais, mas que, "neste momento, a incolumidade pública deve prevalecer sobre os direitos individuais de propriedade".
Canteiro de obras da Vale na região do povoado de André do Mato Dentro, em Minas Gerais Imagem: Programa Polos de Cidadania/UFMG
A mineradora não disse no documento quais áreas seriam desapropriadas, citando apenas as coordenadas geográficas em que suas equipes iriam trabalhar, e chegou a pedir multa de R$ 10 milhões por dia para quem não deixasse sua propriedade e permitisse seu acesso.
O juiz de plantão Carlos Pereira Gomes Junior, às 23h40 do mesmo dia, um sábado, concedeu a liminar permitindo que a Vale fizesse as obras que julgasse necessárias, porém reduzindo a punição para no máximo R$ 1 milhão por dia.
A Vale confirmou ao
UOL que entrou com a medida na Justiça e que o objetivo é realizar "obras em caráter emergencial e preventivo para assegurar a segurança da população na eventualidade do rompimento da barragem Sul Superior, na mina de Gongo Soco".
Disse ainda que os imóveis necessários às obras "não possuem moradores permanentes e são utilizados para lazer", que "vai pôr em prática todos os recursos possíveis para evitar ou minorar as consequências à população" e que os proprietários serão indenizados.
Área de mata próxima ao povoado de André do Mato Dentro (MG), aberta pela Vale para obras para contenção do rejeito da barragem Sul Superior Imagem: Programa Polos de Cidadania/UFMG
"Não tenho mais esperança de voltar", diz sitiante
A funcionária pública Maria Izabel dos Santos, 59, que mora no município de Caeté e tem um sítio de 12 hectares em Cruz dos Peixotos, foi a primeira a ser notificada.
"No sábado, dia 18, me ligaram da Vale dizendo que precisavam passar com equipamentos pesados [dentro do sítio], mas não me deram muita informação. Eu falei que tudo bem. Na segunda-feira, me ligaram de novo, e um funcionário foi no meu trabalho e me deu um papel para assinar. Fiquei muito nervosa e chamei um advogado", conta Maria Isabel.
"O funcionário de novo não explicou muita coisa, mas disse que eram obras de urgência e que havia multa, e eu assinei. Entendia a necessidade, mas não sabia o que iria acontecer exatamente com o terreno. Quando fui lá no dia seguinte, na terça, já tinham arrancado cerca, minhas plantas, aberto o terreno, escavado. Fiquei sem chão", disse a sitiante.
Maria Isabel afirma que, apesar de o sítio ser apenas para o lazer de sua família, a terra tem valor afetivo, porque foi seu pai quem a comprou com o dinheiro do trabalho de toda uma vida. "Nesta semana a Vale me disse que vai usar toda a área, terá de demolir a casa, ou seja, eu não tenho mais esperança de voltar um dia", lamenta.
"De repente a gente viu um rasgo na mata"
Agricultor familiar em André do Mato Dentro, Pedro Marques diz que notou quando começaram a circular retroescavadoas pelo local, mas achou que pudessem ser máquinas em uso na construção do muro de contenção, a 6 km da barragem que a Vale havia anunciado semanas antes. "Mas, de repente, a gente viu que estavam abrindo um rasgo na mata, parecia uma praça, bem perto do rio", diz.
Foi então que ele, que também é ativista ambiental, acionou um grupo de professores e pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), que compõem o programa Polos de Cidadania e desenvolve trabalhos em áreas afetadas por ações de mineração, incluindo Mariana e Brumadinho. "Eles já estavam por aqui perto, em Barão de Cocais, conversando com os moradores, foram atrás e descobriram a decisão do juiz. Só assim que a gente ficou sabendo o que era", conta Marques.
O grupo visitou o "canteiro de obras" da Vale nos dias 28 e 29 e fez um relatório, que foi apresentado a secretários da Prefeitura de Santa Bárbara e ao Ministério Público Federal, em reuniões realizadas na segunda-feira e ontem, respectivamente. "Na Prefeitura de Santa Bárbara, ninguém estava sabendo", diz o coordenador do programa, André Luiz Freitas Dias, para quem o problema maior foi a mineradora não comunicar os moradores e proprietários de terra dos povoados de uma ação que vai gerar tantos impactos.
"A Vale nem sequer informou os moradores da região sobre a intervenção que seria feita. As pessoas, famílias e comunidades desconhecem o projeto, os mapas que foram construídos, o cronograma da ações realizadas e já estão sofrendo na pele os danos", diz o professor. Para ele, trata-se de "um terror similar ao que foi gerado em Barão de Cocais".