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Autoficção e mamadeira, por Michel Laub

Bruce Torres

Let's be alone together.
15/08/2014 02h00
Muito se fala da chamada autoficção, ou da tendência de escritores contemporâneos a usar elementos de aparência autobiográfica em suas obras. A Cosac Naify lançou há pouco dois possíveis e ótimos exemplares da vertente: "Formas de Voltar para Casa", de Alejandro Zambra, romance que se lê como memória, e "O que Amar Quer Dizer", de Mathieu Lindon, memória que se lê como romance.

O debate me interessa menos pelo que tem de estético do que por seus desdobramentos éticos. Ou seja, não importa literariamente o que é fato ou criação. A fronteira é sempre porosa em algum nível. Se conto uma história de 20 anos atrás, ela vira parte de uma narrativa que, ao contrário da vida, aponta para um sentido: acontecimentos serão distorcidos, inclusive no nível mais básico da linguagem, para soarem dramáticos, trágicos ou cômicos.

É parte do jogo, assim como dar de barato que a noção de "realidade" é subjetiva. Pergunte a duas testemunhas sobre a mesma cena, e cada uma apresentará uma versão. Só que é preciso partir de algum ponto para não dar bom dia ao Onan relativista. Se digo "nasci em Porto Alegre e hoje vivo em São Paulo", há dois dados concretos e verificáveis na frase.

Da mesma forma, se tenho um tio médico que sofreu um acidente de barco na Amazônia e escrevo um romance sobre um tio médico que sofreu um acidente de barco na Amazônia e abusa de crianças, crio um juízo que transcende a ficção. Parte do público achará que é tudo verdade. Ou que sou mentiroso e estou difamando o meu tio. Ou que houve uma briga entre nós e o texto é uma vingança.

Quando se diz que literatura não muda o mundo, é interessante pensar no exemplo do parágrafo anterior. A Bovespa, a Cantareira e a Papuda não se abalarão pelo eventual sucesso do tal romance. O mesmo não dá para dizer do meu tio hipotético, da mulher dele, dos filhos, dos amigos, dos pacientes, do administrador do hospital onde ele trabalha.

Sempre que o assunto vida versus obra é discutido, lembro o que Zadie Smith disse sobre T.S. Eliot, um dos defensores da separação total entre as duas esferas: será que o grande poeta e crítico americano não pensava assim, entre outros motivos, porque em sua biografia constava a decisão de abandonar a mulher num hospício?

Como escritor que já se baseou em fatos identificáveis por pessoas vivas -família, amigos de infância-, é inevitável me deparar com a pergunta. Ela nada tem a ver com o direito de cada um publicar o que quiser. Nem com o resultado estético dos livros: este será o que o leitor decidir.

Estou falando do que vem depois. Quando Zambra usa um narrador com a sua idade e sua profissão, evocando uma infância que parece ter sido a sua, num país —o Chile dos anos Pinochet— semelhante ao que conhecemos de relatos históricos, nos induz a uma interpretação que não é exclusivamente literária.

De modo análogo, ao tratar de personagens verdadeiros como Michel Foucault e Hervé Guibert, ambos de uma turma dizimada pela Aids na França dos anos 1980/1990, Lindon acena com a autoridade de quem estava presente nos acontecimentos descritos, ou quem sabe recriados, num contrato em que aceitamos a condição incômoda —e ao mesmo tempo vantajosa —de voyeurs.

Livros como "Formas de Voltar para Casa" e "O que Amar Quer Dizer", é óbvio, têm vantagem mercadológica frente a tantos outros que disputam os mesmos e escassos canais de divulgação e vendas. Afinal, estamos na era da narrativa confessional, do interesse mórbido na intimidade alheia.

Quem publica algo do gênero precisa assumir as consequências de suas escolhas. No caso do romance sobre o meu tio, dar entrevistas dizendo que o tema abordado é a medicina, a infância ou a questão da segurança dos equipamentos náuticos no Brasil —o que poderá ser nas três hipóteses, sem tornar menos importante a pessoa real que usei para chamar a atenção- é querer ficar apenas com a parte boa da mamadeira.

Leitores não são tão manipuláveis assim. Achar o contrário é desconhecer a própria natureza humana. Uma ilusão, onipotência ou ingenuidade pouco lisonjeira para quem vive -justamente- de observar e retratar o comportamento dos homens.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/michellaub/2014/08/1500413-autoficcao-e-mamadeira.shtml
 
Eu sou do tipo de leitora que se deixa influenciar por esses livros "meio" autobiográficos.

Sempre fico pensando: "será que isso aconteceu mesmo com o(a) autor(a)?"
"Como será que era a mãe/o pai /a tia/o avô/ex-cônjuge dele(a)?"
E vou no gugol em busca de maiores detalhes.

É claro que qualquer coisa que nós (e os autores profissionais) escrevemos sempre vai ter coisas da nossa vivência, da nossa história e tal.
Mas eu concordo o que teria dito o poeta T.S. Eliot (conforme o texto) de que a ficção e a realidade devem sim ser separadas.
E que isso deve ficar bem claro pros leitores.
 
Recentemente teve um bafafá envolvendo "Divórcio", do Ricardo Lísias - diziam que ele tinha se inspirado-além-da-conta no próprio pra conceber o livro. Não sei onde vi, mas alguém escreveu algo sobre autores introjetando a autoficção - um risco, infelizmente.
 

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