Carlos Orsi, na
Galileu
O ateu raivoso é um mito, mas um mito prevalente, diz uma série de estudos realizada por psicólogos nos Estados Unidos. Um curioso artigo publicado no periódico “
The Journal of Psychology: Interdisciplinary and Applied” relata os resultados de sete experimentos realizados para determinar, primeiro, se as pessoas em geral acham que os ateus são bravos ou raivosos e, segundo, se são mesmo. Ao todo, tomaram parte na pesquisa mais de 1.600 pessoas.
O primeiro grupo de testes determinou que, sim, a maioria das pessoas acha que os ateus são “mais bravos” que a média da população, e mais raivosos, até, que outras minorias conhecidas por reivindicar publicamente seus direitos. Já o segundo grupo usou
avaliações psicológicas para descobrir se os ateus são mais bravos em termos pessoais – tratando a ira como uma característica intrínseca de personalidade – e também se são mais irritáveis: isto é, se reagem de modo mais explosivo que a população em geral quando provocados. Descobriu-se que acreditar ou não em Deus
não permite prever nem se a pessoa tem uma personalidade mais raivosa, nem se é mais fácil induzi-la a um surto de fúria.
Uma questão que fica em aberto, diante do resultado concreto, é de onde vem esse mito de que os ateus em geral são figuras raivosas e agressivas. Os autores do artigo publicado afirmam que “nossos estudos não foram projetados para identificar os fatores que alimentam o estereótipo do ateu raivoso”, mas acrescentam que “inúmeras notícias, postagens na internet, entrevistadores e autores têm feito uso do rótulo”.
Parte da popularidade desse estereótipo talvez possa ser atribuída à militância pública de figuras como o biólogo Richard Dawkins, que se valem de uma linguagem dura e, não raro, desrespeitosa para atacar tanto ideias religiosas quanto a influência da religião na sociedade, mas a associação simbólica entre ateísmo e fúria é mais antiga que a emergência do chamado “novo ateísmo”.
Afinal, a ideia de que o ateu é, na verdade, um “revoltado contra Deus” ou, numa formulação mais caridosa, de que o ateísmo é uma “rebelião equivocada para com o mistério do mal no mundo” está aí há séculos,
e faz parte de um estereótipo negativo amplo, que emerge tanto na linguagem coloquial (onde volta e meia se lamenta a “falta de Deus no coração” deste ou daquele malfeitor) quanto no texto bíblico, como o verso inicial do Salmo 13 – ou 14, dependendo da edição que se consulta.
Como aponta o artigo, nos Estados Unidos ateus são geralmente
vistos como indignos de confiança, imorais. Menos de 50% dos americanos votariam um ateu, diz um levantamento, e 48% dos participantes de outra pesquisa disseram que desaprovariam se seus filhos se casassem com ateus.
No Brasil, a situação não é muito diferente, senão ainda pior: uma pesquisa CNT/Sensus divulgada em 2007 indicava que
59% dos brasileiros não votariam em um ateu para presidente. No ano de 2008, levantamento da Fundação Perseu Abramo, em conjunto com o Instituto Rosa Luxemburgo, chamou atenção ao apontar que os
ateus são o grupo pelo qual os brasileiros em geral mais dizem sentir repulsa, ódio e antipatia. Usuários de drogas vêm em segundo lugar, seguidos de garotos de programa, travestis e prostitutas.
Estereótipos são sedutores, porque úteis: poupam-nos do esforço de ter de tratar cada nova pessoa que encontramos como se ela fosse um enigma, um perfeito desconhecido. Basta saber de sua filiação a um ou dois grupos (como religião, partido, nacionalidade, sexo) e já acreditamos ter uma boa ideia de o que esperar dela. Essa utilidade, no entanto, depende de uma condição crucial:
o estereótipo precisa ser verdadeiro. Alguns até são: há pesquisas que sugerem que pessoas mais bonitas são, como diz o estereótipo, mais simpáticas e agradáveis (talvez porque estejam acostumadas a ser bem tratadas pelos outros).
Estereótipos falsos, por sua vez, são problemáticos por uma série de motivos. Filosoficamente, crenças falsas são, em princípio, indesejáveis. Do ponto de vista prático, podem fornecer
justificativa para discriminação e, até, dar origem a
profecias que se autorrealizam: o exemplo clássico é o da mulher que, ao acreditar no estereótipo de que o sexo feminino não leva jeito para as ciências exatas, ignora a possibilidade de uma carreira em engenharia.
Além disso, ao colorir a percepção que a população em geral tem de um determinado grupo, falsos estereótipos acabam viciando, logo de saída, interações que, de outra forma, poderiam ser mais produtivas. Como escrevem os autores do artigo no “Journal”,
“ao documentar edes confirmar o estereótipo do ateu raivoso, então, é possível que nossas descobertas possam contribuir para um diálogo mais civilizado entre crentes e descrentes”.