Luciano R. M.
vira-latas
1:
Eu me sinto como um prisioneiro.
Um escravo do meu desejo, acorrentado por minhas afeições. Sinto-me como um animal enjaulado.
Porta e janela fechadas me trazem um pouco de liberdade. Mas eu queria poder sair. Eu queria poder ir lá fora e, sob a chuva, dançar nu. Selvagem. Não domesticado. Menos que humano.
Não ter de pensar, não ter de ler. Não ter de me sentir tão deprimido o tempo todo e ainda assim não poder me matar porque isso seria uma injustiça com aqueles que pensam que me amam.
Eu queria sentir o gosto do sangue, sentir o cheiro da merda, dormir sobre a pedra fria. Sinto-me como um animal enjaulado.
Eu não consigo evitar querer dinheiro, querer uma mulher, uma família. Até filhos.
Antes mesmo de nascer eu fui domesticado, castrado, arrasado.
Eu me arrasto até a cômoda e abro uma das gavetas. A terceira, de cima para baixo; ou a segunda, de baixo para cima. De lá tiro uma caixa. Branca, preta e vermelha, ‘Rivotril’ escrito em uma fonte grande e ‘Clonazepam’ um pouco menor.
Tiro minhas roupas.
Estou nu. Tiro uma garrafinha de metal- que está cheia de uísque- de dentro de um dos bolsos do casaco e depois cago sobre as roupas. Sim, eu cago sobre minhas roupas. Pois eu as desprezo- assim como eu desprezo tudo o que sou e cagaria sobre minha cabeça se pudesse.
Encho a boca com os comprimidos tirados da caixinha e os engulo com a ajuda do uísque. São muitos, eu quase engasgo. O uísque é vagabundo, eu acabo por engasgar mesmo.
Alguns dos comprimidos caíram na merda, e eu os tiro de lá e os engulo com um novo gole de uísque. Para quem rastejou a vida inteira, um pouco de merda não é nada.
Rastejei a vida inteira, tudo porque eu achava que era bom ser bom, que era bom se importar. Rastejei a vida inteira, porque isso foi decidido antes que eu pudesse escolher não nascer.
Fazendo uma careta ridícula eu bebo o resto do uísque. Ele é obviamente muito mais forte do que o que eu estou acostumado.
Pego a calça, enfio a mão em um de seus bolsos e tiro de lá um maço de cigarro. Dentro dele, apenas sete cigarros e um isqueiro. Acendo um dos cigarros e me deixo no chão, olhando para o teto. Não me preocupo em bater a cinzas, apenas deixo o cigarro entre os lábios e trago. Quando ele termina eu simplesmente cuspo o filtro para longe, coloco o novo cigarro na boca, acendo e repito a operação.
Acabam-se os sete. O gosto de merda sumiu da minha boca, sobra o gosto de bituca. Meu rosto- minha cara está coberta de cinzas e eu ainda não morri.
2:
‘Ele nada como um peixe’, mamãe costumava dizer.
Tenho pena dela. Ela acredita em coisas equivocadas. Ela acredita que eu nado bem como um peixe, ela acredita que eu sou uma boa pessoa.
Mas isso não passa de mentira.
Enquanto meus irmãos, meus primos e meus amigos lutavam, enquanto eles vertiam seu sangue velho, seu sangue sujo, sobre a terra, eu tentava escapar. Eu lutava, sim, mas com as ondas.
Eles que se matem com suas besteiras sobre nação, sobre soberania, sobre orgulho e sobre poder. Não me importa: eu quero um futuro. E ele não está nas armas.
Ele está do outro lado do oceano.
Acho que errei o caminho. Eu deveria ter ido para Atlântida.
Agora já não sei mais nadar. Afoguei-me na desilusão e acabei aprendendo a cavar. Agora eu cavo cada vez mais fundo.
Cada vez mais fundo. Cada vez mais fundo.
Minhas mãos e até meus braços estão sujos de terra. Sob as unhas o sangue começa a misturar-se com a terra. Meus olhos sequer se lembram do que é a luz do sol.
Eles que lutem, eles que sangrem, eles que morram com suas besteiras de fraternidade, de igualdade. ‘Ele cava como um verme’, ela se orgulharia agora.
Eu me sinto como um prisioneiro.
Um escravo do meu desejo, acorrentado por minhas afeições. Sinto-me como um animal enjaulado.
Porta e janela fechadas me trazem um pouco de liberdade. Mas eu queria poder sair. Eu queria poder ir lá fora e, sob a chuva, dançar nu. Selvagem. Não domesticado. Menos que humano.
Não ter de pensar, não ter de ler. Não ter de me sentir tão deprimido o tempo todo e ainda assim não poder me matar porque isso seria uma injustiça com aqueles que pensam que me amam.
Eu queria sentir o gosto do sangue, sentir o cheiro da merda, dormir sobre a pedra fria. Sinto-me como um animal enjaulado.
Eu não consigo evitar querer dinheiro, querer uma mulher, uma família. Até filhos.
Antes mesmo de nascer eu fui domesticado, castrado, arrasado.
Eu me arrasto até a cômoda e abro uma das gavetas. A terceira, de cima para baixo; ou a segunda, de baixo para cima. De lá tiro uma caixa. Branca, preta e vermelha, ‘Rivotril’ escrito em uma fonte grande e ‘Clonazepam’ um pouco menor.
Tiro minhas roupas.
Estou nu. Tiro uma garrafinha de metal- que está cheia de uísque- de dentro de um dos bolsos do casaco e depois cago sobre as roupas. Sim, eu cago sobre minhas roupas. Pois eu as desprezo- assim como eu desprezo tudo o que sou e cagaria sobre minha cabeça se pudesse.
Encho a boca com os comprimidos tirados da caixinha e os engulo com a ajuda do uísque. São muitos, eu quase engasgo. O uísque é vagabundo, eu acabo por engasgar mesmo.
Alguns dos comprimidos caíram na merda, e eu os tiro de lá e os engulo com um novo gole de uísque. Para quem rastejou a vida inteira, um pouco de merda não é nada.
Rastejei a vida inteira, tudo porque eu achava que era bom ser bom, que era bom se importar. Rastejei a vida inteira, porque isso foi decidido antes que eu pudesse escolher não nascer.
Fazendo uma careta ridícula eu bebo o resto do uísque. Ele é obviamente muito mais forte do que o que eu estou acostumado.
Pego a calça, enfio a mão em um de seus bolsos e tiro de lá um maço de cigarro. Dentro dele, apenas sete cigarros e um isqueiro. Acendo um dos cigarros e me deixo no chão, olhando para o teto. Não me preocupo em bater a cinzas, apenas deixo o cigarro entre os lábios e trago. Quando ele termina eu simplesmente cuspo o filtro para longe, coloco o novo cigarro na boca, acendo e repito a operação.
Acabam-se os sete. O gosto de merda sumiu da minha boca, sobra o gosto de bituca. Meu rosto- minha cara está coberta de cinzas e eu ainda não morri.
2:
‘Ele nada como um peixe’, mamãe costumava dizer.
Tenho pena dela. Ela acredita em coisas equivocadas. Ela acredita que eu nado bem como um peixe, ela acredita que eu sou uma boa pessoa.
Mas isso não passa de mentira.
Enquanto meus irmãos, meus primos e meus amigos lutavam, enquanto eles vertiam seu sangue velho, seu sangue sujo, sobre a terra, eu tentava escapar. Eu lutava, sim, mas com as ondas.
Eles que se matem com suas besteiras sobre nação, sobre soberania, sobre orgulho e sobre poder. Não me importa: eu quero um futuro. E ele não está nas armas.
Ele está do outro lado do oceano.
Acho que errei o caminho. Eu deveria ter ido para Atlântida.
Agora já não sei mais nadar. Afoguei-me na desilusão e acabei aprendendo a cavar. Agora eu cavo cada vez mais fundo.
Cada vez mais fundo. Cada vez mais fundo.
Minhas mãos e até meus braços estão sujos de terra. Sob as unhas o sangue começa a misturar-se com a terra. Meus olhos sequer se lembram do que é a luz do sol.
Eles que lutem, eles que sangrem, eles que morram com suas besteiras de fraternidade, de igualdade. ‘Ele cava como um verme’, ela se orgulharia agora.