Jacques Austerlitz
(Rodrigo)
[align=justify][size=large]Açores[/size]
Fragmento
A vida é uma
E a dor é só
Corri na rua
Caiu a chuva
Molhei os pés
Sobrou chulé
Ama-nhe-ceu
Papai morreu
Cantivagava um gurizinho roto pela via pedregulhosa que esfolava seus pés descalços guiado pela própria melancolia da voz e trazendo consigo tamanho estranhamento ao mundo que o rodeava que se se confrontasse a sociedade para incluí-lo em seu seio dir-se-ia que seus metro-e-quarenta-e-seis não atingiam a medida requerida. Por entre as ranhuras dos paralelepípedos da Rua da Praia da Cidade Sem Mar ainda corriam tímidos riozinhos de água com barro da chuva que findara pouco antes da hora em que o Sol deveria aparecer mas não veio sobreposto por densas nuvens que permitiam ao amanhecer nada além de um pobre brilho leitoso. Os dois velhos feirantes sem os dentes da frente já montavam suas barraquinhas de frutas frescas nem sempre tão frescas e negariam uma maçã quando o menino pedisse faminto e ele então seguiria seu caminho até a próxima esquina onde um palhaço cuja pintura feliz no rosto contrastava com sua feição de tristeza fazia malabares e tocava gaita e estendia o chapéu a todos os carros que passavam mesmo que quase nenhum baixasse o vidro e muitos fingissem nem vê-lo. Duas ruas acima balouçava um ônibus trazendo lento um rapaz sonolento brigando contra as próprias pálpebras que insistiam em se fechar enquanto a cafeína corria por seus vasos carregada por células anêmicas de quem não se alimenta direito e chegava até o coração e de lá era bombeada ao cérebro e de nada adiantava. O barulho das bombas despertou o jovem assustado que olhou para os lados sem saber se estava sonhando e viu um homem queimando e ouviu duzentos gritando e tiros e mais tiros e confusão foi o que lhe restou. Uma massa trôpega e informe de corpos em desespero corria e por entre eles cavalos montados por homens uniformizados que brandiam seus cassetetes e relavam no lombo dos correntes e empinavam os equinos relinchantes ao som de tiros e mais bombas que explodiam sabe-se-lá-onde mas que se ouvia de dentro do ônibus, ah! se ouvia. A multidão avançava rápida e desgovernada em direção ao ônibus já quase parado e passava pelos lados açoitada pela brigada uniformizada e vidros se quebravam e passageiros gritavam e o jovem rapaz se agachava ao lado de uma criança que chorava e isso o desesperava ainda mais do que as bombas e os tiros e os gritos que se sucediam do lado de fora. A confusão se arrastava desde a noite passada e tomava proporções cada vez mais agravadas desde o início que foi um simples não dito semanas atrás a um bando de índios semianalfabetos que reivindicavam a posse das próprias terras e foram realocados para um lugar melhor para a construção de uma bela e nova usina hidrelétrica necessária para o bem comum e para evitar apagões que param o país como aquele de dois anos atrás em que o mesmo jovem de hoje ficou preso no trânsito por três horas no trajeto oposto ao que estava fazendo hoje de volta para casa à noite saindo da faculdade que paga trabalhando o dia inteiro no centro da cidade vendendo seguros para pessoas que normalmente não precisam deles mas quanto mais compram mais se lucra e isso é sempre bom. [/align]
Fragmento
A vida é uma
E a dor é só
Corri na rua
Caiu a chuva
Molhei os pés
Sobrou chulé
Ama-nhe-ceu
Papai morreu
Cantivagava um gurizinho roto pela via pedregulhosa que esfolava seus pés descalços guiado pela própria melancolia da voz e trazendo consigo tamanho estranhamento ao mundo que o rodeava que se se confrontasse a sociedade para incluí-lo em seu seio dir-se-ia que seus metro-e-quarenta-e-seis não atingiam a medida requerida. Por entre as ranhuras dos paralelepípedos da Rua da Praia da Cidade Sem Mar ainda corriam tímidos riozinhos de água com barro da chuva que findara pouco antes da hora em que o Sol deveria aparecer mas não veio sobreposto por densas nuvens que permitiam ao amanhecer nada além de um pobre brilho leitoso. Os dois velhos feirantes sem os dentes da frente já montavam suas barraquinhas de frutas frescas nem sempre tão frescas e negariam uma maçã quando o menino pedisse faminto e ele então seguiria seu caminho até a próxima esquina onde um palhaço cuja pintura feliz no rosto contrastava com sua feição de tristeza fazia malabares e tocava gaita e estendia o chapéu a todos os carros que passavam mesmo que quase nenhum baixasse o vidro e muitos fingissem nem vê-lo. Duas ruas acima balouçava um ônibus trazendo lento um rapaz sonolento brigando contra as próprias pálpebras que insistiam em se fechar enquanto a cafeína corria por seus vasos carregada por células anêmicas de quem não se alimenta direito e chegava até o coração e de lá era bombeada ao cérebro e de nada adiantava. O barulho das bombas despertou o jovem assustado que olhou para os lados sem saber se estava sonhando e viu um homem queimando e ouviu duzentos gritando e tiros e mais tiros e confusão foi o que lhe restou. Uma massa trôpega e informe de corpos em desespero corria e por entre eles cavalos montados por homens uniformizados que brandiam seus cassetetes e relavam no lombo dos correntes e empinavam os equinos relinchantes ao som de tiros e mais bombas que explodiam sabe-se-lá-onde mas que se ouvia de dentro do ônibus, ah! se ouvia. A multidão avançava rápida e desgovernada em direção ao ônibus já quase parado e passava pelos lados açoitada pela brigada uniformizada e vidros se quebravam e passageiros gritavam e o jovem rapaz se agachava ao lado de uma criança que chorava e isso o desesperava ainda mais do que as bombas e os tiros e os gritos que se sucediam do lado de fora. A confusão se arrastava desde a noite passada e tomava proporções cada vez mais agravadas desde o início que foi um simples não dito semanas atrás a um bando de índios semianalfabetos que reivindicavam a posse das próprias terras e foram realocados para um lugar melhor para a construção de uma bela e nova usina hidrelétrica necessária para o bem comum e para evitar apagões que param o país como aquele de dois anos atrás em que o mesmo jovem de hoje ficou preso no trânsito por três horas no trajeto oposto ao que estava fazendo hoje de volta para casa à noite saindo da faculdade que paga trabalhando o dia inteiro no centro da cidade vendendo seguros para pessoas que normalmente não precisam deles mas quanto mais compram mais se lucra e isso é sempre bom. [/align]