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Açores

[align=justify][size=large]Açores[/size]
Fragmento


A vida é uma
E a dor é só
Corri na rua
Caiu a chuva
Molhei os pés
Sobrou chulé
Ama-nhe-ceu
Papai morreu


Cantivagava um gurizinho roto pela via pedregulhosa que esfolava seus pés descalços guiado pela própria melancolia da voz e trazendo consigo tamanho estranhamento ao mundo que o rodeava que se se confrontasse a sociedade para incluí-lo em seu seio dir-se-ia que seus metro-e-quarenta-e-seis não atingiam a medida requerida. Por entre as ranhuras dos paralelepípedos da Rua da Praia da Cidade Sem Mar ainda corriam tímidos riozinhos de água com barro da chuva que findara pouco antes da hora em que o Sol deveria aparecer mas não veio sobreposto por densas nuvens que permitiam ao amanhecer nada além de um pobre brilho leitoso. Os dois velhos feirantes sem os dentes da frente já montavam suas barraquinhas de frutas frescas nem sempre tão frescas e negariam uma maçã quando o menino pedisse faminto e ele então seguiria seu caminho até a próxima esquina onde um palhaço cuja pintura feliz no rosto contrastava com sua feição de tristeza fazia malabares e tocava gaita e estendia o chapéu a todos os carros que passavam mesmo que quase nenhum baixasse o vidro e muitos fingissem nem vê-lo. Duas ruas acima balouçava um ônibus trazendo lento um rapaz sonolento brigando contra as próprias pálpebras que insistiam em se fechar enquanto a cafeína corria por seus vasos carregada por células anêmicas de quem não se alimenta direito e chegava até o coração e de lá era bombeada ao cérebro e de nada adiantava. O barulho das bombas despertou o jovem assustado que olhou para os lados sem saber se estava sonhando e viu um homem queimando e ouviu duzentos gritando e tiros e mais tiros e confusão foi o que lhe restou. Uma massa trôpega e informe de corpos em desespero corria e por entre eles cavalos montados por homens uniformizados que brandiam seus cassetetes e relavam no lombo dos correntes e empinavam os equinos relinchantes ao som de tiros e mais bombas que explodiam sabe-se-lá-onde mas que se ouvia de dentro do ônibus, ah! se ouvia. A multidão avançava rápida e desgovernada em direção ao ônibus já quase parado e passava pelos lados açoitada pela brigada uniformizada e vidros se quebravam e passageiros gritavam e o jovem rapaz se agachava ao lado de uma criança que chorava e isso o desesperava ainda mais do que as bombas e os tiros e os gritos que se sucediam do lado de fora. A confusão se arrastava desde a noite passada e tomava proporções cada vez mais agravadas desde o início que foi um simples não dito semanas atrás a um bando de índios semianalfabetos que reivindicavam a posse das próprias terras e foram realocados para um lugar melhor para a construção de uma bela e nova usina hidrelétrica necessária para o bem comum e para evitar apagões que param o país como aquele de dois anos atrás em que o mesmo jovem de hoje ficou preso no trânsito por três horas no trajeto oposto ao que estava fazendo hoje de volta para casa à noite saindo da faculdade que paga trabalhando o dia inteiro no centro da cidade vendendo seguros para pessoas que normalmente não precisam deles mas quanto mais compram mais se lucra e isso é sempre bom. [/align]
 
As maçãs podres do Estado desviaram as verbas da merenda escolar dos marginalizados famintos, futuros marginais famintos de troco, enquanto as maçãs transgências enviaram verbas para a construção do foguete com ponta de satélite ou ponta estação espacial casa dos sonhos de um solitário astronauta de possuidor de um Quem Indica alto. Esse é um dos pensamentos à deriva no mar revolto dentro da cabeça caótica do jovem Agitador, invejoso dos velhos gloriosos áureos tempos das fascistas ditaduras em que o Inimigo era bem definido e cruel opositor da liberdade, agora uma liberdade vigiada devida à inclusão digital de cérebros na dieta dos zumbis da população. Mas esse agitador não tem tripas por coração, a experiência na carne viva das cicatrizes na memória produzidas por bombas de gás lacrimogênio e balas de borracha, nem o sangue das nativas índias estupradas pelos colonizadores exploradores bandeirantes, barbados bárbaros do Velho Mundo. O Terrorista era herdeiro das terras deserdadas, matas desmatadas em nome da Civilização, o beira-rio propriedade de direito da Marinha, ocupada irregularmente por miseráveis favelados sem amor pela terra imunda onde jogam seus dejetos, suas sacolas plásticas e seus pés indiferentes, a mesma terra em processo de desapropriação por justa causa para a construção do mais novo ponto turístico da cidade, uma orla cheia de quiosques e restaurantes onde o garçom pai de família enche o bolso de gorjetas para encher os buchos de seus rebentos; o flanelinha filho de mãe solteira intimida os impacientes donos de carros sem estacionamento; e os adeptos anti-sedentários da caminhada matinal e vespertina assistem ao nascer e pôr do Sol de cada dia. Voltemos ao Terrorista e seu coquetel Molotov atirado no ônibus lotado de gente suada voltando do trabalho, agora frangos em total pânico a ponto de não conseguirem encontrar a saída daquele inferno em chamas por falta de calma, coordenação, educação e altruísmo. O helicóptero sobrevoou a cena desse reality show com suas câmeras prontas para o ao vivo e a cores em carne e osso, para entregar à população indignada e passiva mais um pouco da ração diária de sangue-e-violência-que-acontece-com-o-vizinho-mas-nunca-com-você, tudo isso enquanto uma bala de grosso calibre foi atirada de um rifle de alta precisão e recebida, perfurada, alojada não, atravessada pelo crânio desse Terrorista infeliz e bem morto, e os corpos carbonizados fizeram um contagem de mau gosto ao gosto do humor negro que resultou num número insensível nas manchetes dos grandes jornais. Mas a contagem estava errada, a contagem não contabilizou o aborto da grávida, uma tragédia pessoal anônima, um ser humano que nem chegou a nascer por causa de um banal ato de terrorismo contra o sistema gerador de terror. Essa foi a única vitória da história porque não vir a esse mundo é a primeira e última vez, é vencer.
 

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