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"A Viuvinha Louca"

Um textinho que escrevi há pouco. Sem mais comentários.

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[align=justify][align=justify]Recebeu o corpo sem chorar. Apenas com a expressão resignada de quem aceita seu destino se contestar. Disseram-lhe que tinha sido morto na guerra e puseram-no em sua cama, envolto por grossas mantas de lã. Depois, pediu que deixassem-na a sós com ele. Seus pais se opuseram, acreditavam que não seria bom para ela ver o corpo supostamente desfigurado do noivo que morrera lutando, mas ela insistiu. Queria vê-lo e o faria de qualquer forma. Sem alternativa, permitiram.
Ela entrou no quarto, trancou a porta dando duas voltas na chave, e ajoelhou-se ao pé da cama. Abriu as mantas com cuidado. Tinha receio de que ele estivesse realmente desfigurado como disseram. A cabeça, apartada do corpo, tinha a face virada para o colchão. Cuidadosamente, tomou-a entre as mãos, e virou-a, imaginando que veria um rosto contorcido pela dor da morte. No entanto, o que viu foi uma face serena.
Não havia sequer uma gota de sangue no corpo ou nas mantas. Também não havia sinais de decomposição, embora ele já estivesse morto há dias. Observou o ferimento. A cabeça tinha sido separada do corpo com um golpe certeiro, provavelmente de espada, e também a região do corte já não sangrava, parecia limpa, e a carne conservava a cor natural. Abriu o invólucro por inteiro. Ele estava despido, as roupas, dobradas cuidadosamente, e postas sobre seu peito, onde ela pôde notar alguns arranhões. Em silêncio, debruçou-se sobre o corpo e chorou. Uma moça bem educada não devia fazer escândalos nem ao lidar com a morte do homem que amava.
Foi quando sentiu um toque terno em seu ombro. Virou-se. Era ele. Mas como? Estava na cama, decapitado, mas também estava em pé, ao seu lado, tocando seu ombro. Não parecia um fantasma, era quase real. Ela acreditaria que era real, se não houvesse o outro sobre a cama. O que estava de pé sorriu como se dissesse “Não tenha medo.” Ela sorriu de volta. Ele jamais a assustaria.
– Estou bem. – ouviu ele falar sem abrir a boca, como se falasse com sua mente. Ela nada respondeu, apenas verteu mais lágrimas.
– A guerra acabou. – ele continuou. – E não se preocupe comigo. Eu morri, mas estarei sempre com você.
Ela sorriu outra vez e sentiu um calor envolver seu corpo inteiro quando ele a abraçou.
– Mesmo morto, cuidarei de você. Não nos separaremos nunca.
Continuaram a conversar sem emitir sons. Horas depois, ela reembrulhou o corpo nas mantas, ajeitando a cabeça com cuidado, e saiu do quarto, sempre acompanhada por ele, tentando não demonstrar o que acontecera ali dentro.
Pediu que o enterrassem o mais rápido possível no jazigo da família, já que ele não tinha parentes conhecidos. O pai relutou. Eram apenas noivos, e tê-lo na sepultura familiar não seria bom para um futuro casamento. Ela então bradou que o casamento, embora ainda não realizado oficialmente, já havia sido consumado, e tirou a aliança da mão direita e pôs no dedo anelar esquerdo. Pai e mãe chocaram-se com a revelação, mas diante do que já tinha acontecido, nada podiam fazer.
Na manhã seguinte, fizeram a vontade dela e enterraram-no no jazigo familiar. Durante o enterro, a mãe lamentava-se por ela não ser mais virgem, embora ainda fosse muito nova.
– Ela não vai arranjar outro noivo, homem. Vai morrer velha e solteira. – murmurava a senhora.
– E o que é que vamos fazer se ela se entregou antes do casamento, mulher? Deixe que fique solteira, então. Ou melhor, viúva.
– É por isso que ela é assim! Porque você aceita os caprichos dela! Antes não tivesse aceitado aquele pobre como noivo.
– Ah, o que eu podia fazer? Eles se amavam!
Indiferente ao que se passava ao redor, ela se ajoelhou diante da lápide e, com tinta preta, pintou no mármore:
“Aqui descansa o corpo do meu amado, mas ele estará sempre comigo. E nos amaremos até o fim dos dias.”
Esboçou um sorriso quase imperceptível, pois ele estava em sua frente e também sorria. Do cemitério, ela quis ir até a casa onde o rapaz morava, um casebre à beira da estrada vicinal. Tinha poucos pertences, não ganhava muito com seu trabalho na lavoura, mas era muito belo e honrado. Apaixonaram-se à primeira vista quando seus olhares se cruzaram na festa de Ano Novo, dois anos atrás. Dias depois, após vários encontros furtivos, ele foi até a casa dela e, a despeito da opinião da mãe, conseguiu autorização do pai para que namorassem. Noivaram no ano seguinte.
Na casa, ela recolheu tudo que pôde, roupas, lençóis, chapéus, o cordão com a pedra de jade que ele usava nos dias de festa, alguns poucos livros e uma caixinha com o dinheiro que ele juntava para o casamento. Com ajuda dos pais, levou os pertences do amado para casa.

***

Os dias passaram-se e os pais da moça estranhavam cada vez mais seu comportamento. Não parecia triste. Pelo contrário. Estava sempre alegre, parecia flutuar pela casa todos os dias, e cumprir suas tarefas domésticas com prazer.
Todas as tardes preparava o chá de que ele gostava e se sentava à mesa com o pote de biscoitos de cardamomo, os preferidos dele. Comia e bebia em silêncio, e de vez em quando, sem razão aparente, sorria.
Fazia questão de ir sozinha ao rio, lavar as próprias roupas, e voltava sempre feliz, cantarolando alguma velha canção de amor. A mãe passou a desconfiar que arranjara outro namorado, mas ela negou veementemente.
Anos depois, a rotina da moça continuava a mesma. Ela jamais se abatia, jamais parecia triste. Nada a abalava, nem quando as cabras destruíam seu canteiro de flores, nem quando soube que a casa onde ele morava tinha sido invadida.
– Ele não mora mais lá. – ela disse quando lhe deram a notícia. – Ele não precisa mais da casa. Ele mora aqui agora. Então, que ela sirva para outras pessoas.
– Está vendo que ela ficou louca? – a mãe sussurrou ao ouvido do pai.
– Se ficou, pelo menos parece mais feliz que nós. – o pai respondeu.
– Eu a segui até o rio e vi que falava sozinha, como se falasse com ele. E agora veio com essa história de que “ele mora aqui”!
– E daí, mulher?
– Você acha normal?
– Acho que ela não faz mal a ninguém.
– Pois eu acho que seria a hora de considerar o pedido de casamento feito pelo dono das terras vizinhas! Ele já veio aqui, disse que não se importa por ela não pura. É a nossa chance de fazer um bom casamento para nossa única filha, antes que ela fique completamente maluca.
– Ela jamais aceitaria. Anda com a aliança de casada, fala no noivo morto dizendo “meu marido”.
– Como se ele estivesse vivo!
– Vai ver que na cabeça dela, ele está.
– Acho que você também está ficando louco, marido.
– Com você me azucrinando é capaz de eu ficar.

Em diversas ocasiões a mãe tentou convencê-la a aceitar o casamento com o vizinho. Recusou este e mais os outros três noivos que lhe arranjaram, sempre dizendo claramente que já era casada e mostrando a aliança no dedo. Ganhou a alcunha de “viuvinha louca”, mas não se importava. Com o tempo, também a mãe parou de se preocupar. Até o dia em que notou o ventre saliente da moça. Ao ser questionada sobre isso, ela respondeu sorrindo:
– É que estou grávida!
A mãe afastou-se sem nada dizer. À noite, quando o pai chegou do trabalho, despejou:
– O que fazemos com ela? Agora diz que está grávida!!
– Deixe ela pensar que está. – ele respondeu-se, sentando-se na cama e tirando as botas.
– Mas e se estiver mesmo? Será que não andou por aí com algum homem? Precisamos saber, porque se for assim, ela vai se casar, nem que eu tenha que obrigá-la.
– Acalme-se, mulher. Eu vou falar com ela, mesmo achando que isso tudo não passa de um delírio dela.
Ele entrou no quarto da filha e se sentou na cama, onde ela estava deitada, com as mãos sobre o ventre. Escolheu as palavras com cuidado, e começou a falar.
– Querida, sua mãe me contou que você acha que está grávida…
– Eu estou. – ela respondeu com convicção.
– Precisamos saber quem é o pai para que ele possa ajudar a criar o bebê, entende?
– O pai é o meu marido, claro. Quem haveria de ser?
– Seu noivo, digo, seu marido morreu há mais de três anos, na guerra, você lembra?
– Eu vou lhe contar um segredo. – ela anunciou, e expôs sua condição: – Se prometer não contar a mamãe, claro.
Sem alternativa, o pai aceitou.
– Eu prometo.
– Ele morreu, sim. Eu lembro. Mas ele não foi embora. Ele está comigo o tempo todo. Está aqui no quarto agora. E nós somos felizes. Ele vai me ajudar a criar nosso filho. Não se preocupe. Não vai faltar nada.
Agora que tinha certeza da loucura da filha, o pai não conseguiu conter as lágrimas. Entretanto, não ousou desfazer o doce devaneio da moça.
– Certo, querida, certo. Se acha que está tudo bem, estão está.
Ela então lhe mostrou as roupinhas que tricotava em segredo, durante a madrugada ou quando estava sozinha em casa. Mostrou também as mantas que bordava, inclusive uma que, segundo ela, tinha sido um presente do marido. O pai saiu do quarto desolado.
– E então? – a mãe perguntou ao vê-lo sair. – Ela contou quem é o pai?
– Não é ninguém. Ela enlouqueceu mesmo. – cabisbaixo, ele admitiu. – Mas deixe-a em paz, deixe-a viver a loucura dela. Deixe que ela seja feliz do jeito dela.
– Se não há o que fazer…
Com a concordância dos pais, a moça pôde tricotar e bordar as roupinhas na sala, ou onde quisesse. Vez ou outra aparecia com algum objeto novo e dizia sempre que tinha sido presente do marido. A família já não se importava e as poucas visitas que apareciam na casa sentiam pena, ou simplesmente achavam engraçada a viuvinha louca e seus bordados para o bebê imaginário.
Entretanto, a barriga crescia mais e mais a cada dia, e numa noite fria de inverno, quando todos dormiam, ouviram um grito oriundo do quarto dela. Correram até lá rápido o suficiente para ver sair de dentro dela um bebê rechonchudo, que chorou com força quando respirou pela primeira vez, mas logo se calou quando ela o pegou no colo, e colocou-o no peito. Todos olharam maravilhados para a criaturinha que acabara de nascer. A mãe se aproximou para ajudá-la a concluir o parto e expelir a placenta, enquanto o pai cortou o cordão umbilical e agora segurava o recém-nascido. O menino abriu os olhinhos escuros e, curioso, fitou o avô. Admirado, o homem constatou que o bebê tinha uma marca que circundava todo o pescoço.

Concluído em agosto de 2009
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Que legal! :sim:
Só achei o final meio repentino, mas mesmo assim adorei a história!
 
Oi!
Obrigada!
Então, eu ando com vontade de reescrever esse texto para dar mais destaque à relação do casal antes e depois da morte dele... vamos ver se rola!
Valeu!!!
 
É... faça isso, Alidifarfalla.
Não que eu tenha achado que não ficou bom, pois ficou ótimo, mas se você achar que pode melhorar, por que não? Não é?
No entanto eu penso que, às vezes, esmiuçar muito tira um pouco da liberdade de o leitor ficar imaginando..._ se era assim, se assado... e se isso... e se aquilo..._ e assim até um pouco da graça.
Tipo, um exemplo no seu próprio texto... me peguei pensando enquanto lia, em como a moça recebia os presentes ou, ainda, se os recebia mesmo, afinal, como era possivel? Um pequeno enigma para a lógica de cada um resolver.
Mas você nos deu a resposta no final, mas deixou várias outras perguntas mais complicadas.
Mas é claro... sou só mais um curioso.

Gostei...
 
Pois é, Vail, sempre dá para melhorar alguma coisa. Também tem esse aspecto que você ressaltou: deixar o leitor pensar o que ele quiser. Mas acho que dá para melhorar sem mexer muito nisso.
Obrigada pelo comentário!
XD
Aproveitando, eu queria uma opinião sobre o título. Estava conversando com uma amiga e ela acha que o nome dá a impressão de que o texto será cômico, o que ele definitivamente não é. O que acham?
 
"A viuvinha louca" parece que parte do princípio de que a protagonista é doida mesmo.
Então aquele aspecto de que o Alisson falou, de deixar o leitor pensar o que quiser em relação à moça, fica meio prejudicado.
Mas eu não pensei em um texto cômico não, no começo pensei mais em uma coisa meio Nelson Rodrigues, " a vida como ela é": " A viuvinha looouca!" :rofl:
 
Bom... ai você pegou no meu ponto fraco... Sou muito ruim pra nomes...minha familia toda é... haja vista o meu próprio nome. Nas minhas histórias o titulo quase sempre fica sendo o nome do personagen principal. Mas não acho tão jegue isso, afinal Shakespeare ( o que? distante demais?) fazia muito isso, haja vista Otelo, Hammelet, Romeu e Julieta, etc, etc e mais etc...
Mas o legal disso tudo é que titulos de histórias hoje eu sei que não precisam ser imutáveis, como os nomes de pessoas, você pode mudar, se achar algum mais conveniente. Afinal, o titulo também serve para vender o produto.
 
Valeu pelas opiniões, pessoal! Ainda estou pensando se mudo o nome ou não. Também tenho problemas com nomes, Vail. É bem complicado achar algo decente. O título original dessa história era "Chá e Biscoitos", mas achei meio nada a ver...
 

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