[Roubado do tópico de um colega meu lá do Kornbrasil
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Revista VEJA
(Edição 1881, ano 37 - nº 47, 24 de novembro de 2004)
Música
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A SÍNDROME DA CARNE-DE VACA
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por Sérgio Martins
Nervoso porque sua banda predileta galgou as paradas de sucesso?
Você pode ser mais uma vítima desse distúrbio que aflige os roqueiros.
Em 24 anos de carreira, os irlandeses do U2 passaram de grupo punk de garagem ao posto de megabanda que lota estádios pelo planeta afora. Com essa trajetória, tornaram-se o exemplo máximo entre os grupos que alimentam a síndrome da carne-de-vaca, um distúrbio que acomete os fãs de rock. Trata-se daquela angústia sofrida pelo admirador de primeira hora quando o artista que ele cultua se torna popular. As vítimas desenvolvem uma relação de posso com seus ídolos obscuros e extraem prazer da idéia de estar entre os poucos que conhecem. Tendem a se reunir em confrarias de iniciados, e assim se diferenciam dos comuns mortais - os "por fora". No caso do U2 e outros artistas dos anos 80, é fácil identificá-los. São pessoas na faixa dos 35 anos aos 40 anos que descobriram os primeiros discos do conjunto numa época em que era preciso importá-los - e ainda no velho e bom vinil. Esses fãs se compraziam em entoar as letras engajadas da banda, ao mesmo tempo que ironizavam quem nunca ouvira falar "naquele tal de Bono Voz" (sic). Tudo mudou a partir do momento em que o U2 estorou nas paradas - ou seja, tornou-se carne-de-vaca. De uma hora para outra, os fãs renhidos passaram a desprezar o grupo. Uns acusaram-no de se tornar comecial; outros, preferiram uma atitude blasé e começaram a ignorá-lo solenemente. Todos têm horror em saber que o U2 já vendeu 100 milhões de discos e lucrou 62 milhões de dólares somente em sua última turnê. Nem mesmo o fato de os roqueiros irlandeses buscarem uma volta às raízes em seu novo CD, "How To Dismantle An Atomic Bomb", que chega às lojas nesta semana, diminui seu ressentimento. É tudo armação, dizem eles.
Há formas simples de detectar se um roqueiro foi acometido pela síndrome. Um dos primeiros sintomas é a incredulidade ao saber que sua banda predileta está tocando nas rádios e que seus clipes viraram sucesso na TV. Daí para a depressão ao perceber que aquela vizinha patricinha comprou o disco e sabe as letras de cor é um passo. Pior que isso, só mesmo se os ídolos se transformarem em símbolos sexuais da tal adolescente. Ou - pecado supremo - fizerem sucesso com uma balada na trilha sonora de uma novela da Rede Globo. Por perpetrarem tudo isso, os americanos do Red Hot Chili Peppers provocaram ataques de nervos em muitos fãs nos anos 90. Em estágios mais avançados, a síndrome desencadeia sintomas graves. É clássico, por exemplo, vociferar que suaex-banda predileta se "vendeu ao sistema". Foi o que aconteceu com o quinteto paulistano CPM22, que começou tocando nos circuitos do rock alternativo e, depois de ser contratado por uma grande gravadora, passou a ser hostilizado pelos admiradores de primeira hora. "Os caras fazem sinais obscenos para a gente", diz o baterista Ricardo Japinha. Num estágio terminal, a síndrome leva o roqueiro à alienação. Ele chega a vender os discos dos antigos ídolos - ouví-los como antes, nunca mais. Até que surge a próxima banda desconhecida para idolatrar.
Mesmo nos dias de hoje, quando a mera consulta a um site na internet permite que qualquer um tenha acesso às últimas novidades do rock alternativo, a síndrome da carne-de-vaca persiste. Entre os candidatos a próximas vítimas estão os fãs aguerridos da cantora inglesa PJ Harvey. Com suas letras lancinantese suas canções sombrias, a obra dela parecia um refúgio seguro para os nerds do rock. Recentemente, eles descobriram que não era bem assim. Durante um show no Tim Festival, em São Paulo, a própria PJ se assustou ao ver que o público batia palmas no rítimo das músicas e cantava suas letras de cor. Com essa súbita popularidade, já há quem a acuse de populista - ou, pior, algo como uma Marisa Monte do rock alternativo.
Um aspecto curioso da síndrome da carne-de-vaca é que muitas vezes o patrulhamento se soma à auto-censura por parte dos artistas - não raro, eles próprios tão xiitas quanto seus fãs mais exigentes. É o caso dos cariocas dos Los Hermanos. O sucesso do hit "Ana Júlia", que puxou a vendagem de 300 mil discos logo na estréia do grupo, deixou seus integrantes irritados. Eles, que cultivavam a imagem de banda cabeça, decidiram então rechear seu segundo CD de canções com mais de oito minutos de duração e sonoridade esquisita - tinha até solo de tuba. A idéia não vingou, já que o disco teve de ser remixado para se tornar mais palatável, por exigência da gravadora. Ao produzir seu novo disco, o U2 parece ter-se visto diante de uma crise de credibilidade semelhante. A banda gravou em sua Irlanda natal, com o mesmo produtor de seu início de carreira, e procurou recuperar a antiga sonoridade. O resultado pode até estar à altura do currículo do quarteto. Para os fãs renegados, nada importa. Uma vez carne-de-vaca, sempre carne-de-vaca.

Resumidamente, fala sobre como os fãs idolatram suas bandas, até então desconhecidas, e quando a banda se torna "popular", os "fãs" deixam de admirá-las.
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Revista VEJA
(Edição 1881, ano 37 - nº 47, 24 de novembro de 2004)
Música
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A SÍNDROME DA CARNE-DE VACA
____________________________
por Sérgio Martins
Nervoso porque sua banda predileta galgou as paradas de sucesso?
Você pode ser mais uma vítima desse distúrbio que aflige os roqueiros.
Em 24 anos de carreira, os irlandeses do U2 passaram de grupo punk de garagem ao posto de megabanda que lota estádios pelo planeta afora. Com essa trajetória, tornaram-se o exemplo máximo entre os grupos que alimentam a síndrome da carne-de-vaca, um distúrbio que acomete os fãs de rock. Trata-se daquela angústia sofrida pelo admirador de primeira hora quando o artista que ele cultua se torna popular. As vítimas desenvolvem uma relação de posso com seus ídolos obscuros e extraem prazer da idéia de estar entre os poucos que conhecem. Tendem a se reunir em confrarias de iniciados, e assim se diferenciam dos comuns mortais - os "por fora". No caso do U2 e outros artistas dos anos 80, é fácil identificá-los. São pessoas na faixa dos 35 anos aos 40 anos que descobriram os primeiros discos do conjunto numa época em que era preciso importá-los - e ainda no velho e bom vinil. Esses fãs se compraziam em entoar as letras engajadas da banda, ao mesmo tempo que ironizavam quem nunca ouvira falar "naquele tal de Bono Voz" (sic). Tudo mudou a partir do momento em que o U2 estorou nas paradas - ou seja, tornou-se carne-de-vaca. De uma hora para outra, os fãs renhidos passaram a desprezar o grupo. Uns acusaram-no de se tornar comecial; outros, preferiram uma atitude blasé e começaram a ignorá-lo solenemente. Todos têm horror em saber que o U2 já vendeu 100 milhões de discos e lucrou 62 milhões de dólares somente em sua última turnê. Nem mesmo o fato de os roqueiros irlandeses buscarem uma volta às raízes em seu novo CD, "How To Dismantle An Atomic Bomb", que chega às lojas nesta semana, diminui seu ressentimento. É tudo armação, dizem eles.
Há formas simples de detectar se um roqueiro foi acometido pela síndrome. Um dos primeiros sintomas é a incredulidade ao saber que sua banda predileta está tocando nas rádios e que seus clipes viraram sucesso na TV. Daí para a depressão ao perceber que aquela vizinha patricinha comprou o disco e sabe as letras de cor é um passo. Pior que isso, só mesmo se os ídolos se transformarem em símbolos sexuais da tal adolescente. Ou - pecado supremo - fizerem sucesso com uma balada na trilha sonora de uma novela da Rede Globo. Por perpetrarem tudo isso, os americanos do Red Hot Chili Peppers provocaram ataques de nervos em muitos fãs nos anos 90. Em estágios mais avançados, a síndrome desencadeia sintomas graves. É clássico, por exemplo, vociferar que suaex-banda predileta se "vendeu ao sistema". Foi o que aconteceu com o quinteto paulistano CPM22, que começou tocando nos circuitos do rock alternativo e, depois de ser contratado por uma grande gravadora, passou a ser hostilizado pelos admiradores de primeira hora. "Os caras fazem sinais obscenos para a gente", diz o baterista Ricardo Japinha. Num estágio terminal, a síndrome leva o roqueiro à alienação. Ele chega a vender os discos dos antigos ídolos - ouví-los como antes, nunca mais. Até que surge a próxima banda desconhecida para idolatrar.
Mesmo nos dias de hoje, quando a mera consulta a um site na internet permite que qualquer um tenha acesso às últimas novidades do rock alternativo, a síndrome da carne-de-vaca persiste. Entre os candidatos a próximas vítimas estão os fãs aguerridos da cantora inglesa PJ Harvey. Com suas letras lancinantese suas canções sombrias, a obra dela parecia um refúgio seguro para os nerds do rock. Recentemente, eles descobriram que não era bem assim. Durante um show no Tim Festival, em São Paulo, a própria PJ se assustou ao ver que o público batia palmas no rítimo das músicas e cantava suas letras de cor. Com essa súbita popularidade, já há quem a acuse de populista - ou, pior, algo como uma Marisa Monte do rock alternativo.
Um aspecto curioso da síndrome da carne-de-vaca é que muitas vezes o patrulhamento se soma à auto-censura por parte dos artistas - não raro, eles próprios tão xiitas quanto seus fãs mais exigentes. É o caso dos cariocas dos Los Hermanos. O sucesso do hit "Ana Júlia", que puxou a vendagem de 300 mil discos logo na estréia do grupo, deixou seus integrantes irritados. Eles, que cultivavam a imagem de banda cabeça, decidiram então rechear seu segundo CD de canções com mais de oito minutos de duração e sonoridade esquisita - tinha até solo de tuba. A idéia não vingou, já que o disco teve de ser remixado para se tornar mais palatável, por exigência da gravadora. Ao produzir seu novo disco, o U2 parece ter-se visto diante de uma crise de credibilidade semelhante. A banda gravou em sua Irlanda natal, com o mesmo produtor de seu início de carreira, e procurou recuperar a antiga sonoridade. O resultado pode até estar à altura do currículo do quarteto. Para os fãs renegados, nada importa. Uma vez carne-de-vaca, sempre carne-de-vaca.