• Caro Visitante, por que não gastar alguns segundos e criar uma Conta no Fórum Valinor? Desta forma, além de não ver este aviso novamente, poderá participar de nossa comunidade, inserir suas opiniões e sugestões, fazendo parte deste que é um maiores Fóruns de Discussão do Brasil! Aproveite e cadastre-se já!

A Sibila (Agustina Bessa-Luís)

Mercúcio

Usuário
Adapto um comentário que escrevi, nas minhas redes sociais, sobre a leitura de "A Sibila", da escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís. Desde já, é um livro que recomendo vivamente. Gostei demais mesmo!

Livro: "A Sibila"
Autora: Agustina Bessa-Luís.
Edição da Folha de São Paulo, da Coleção Mulheres na Literatura - 272 páginas.


Recomendação do Lucas, do canal Diário de Leitura.

Nota: 5,0/5,0.

“Humano demais para ter sido um exemplo”. Tais palavras foram grafadas ao final do capítulo XIII de “A Sibila”, quando o narrador se detém ocasionalmente sobre um homem da Igreja – um abade – colhido pela morte em meio a uma comunidade rural que, mesmo conhecedora de suas fraquezas e de sua estrondorosa hipocrisia, o estimava. A frase parece desimportante no contexto em que é lançada, mas a meu ver ela carrega um substrato filosófico que atravessa todo o romance, qual seja a concepção segundo a qual a natureza humana é essencialmente corrompida. Por detrás das convenções sociais, dos modelos de conduta, de uma reverência socialmente compartilhada a uma virtude ideal, os homens e as mulheres são, com frequência, mesquinhos, torpes, egoístas, viciosos até mesmo em seus afetos, porque contraditórios, complexos, ambivalentes. Não é à toa que Joaquina Augusta - vulgo Quina - a grande protagonista deste Romance, a “Sibila” que dá nome ao livro, uma simples lavradora do Norte de Portugal, é descrita por sua sobrinha, Germana, como “a mais profunda e inegável expressão do humano”.

Os polos entre os quais Quina se move, diz-nos o narrador a certa altura, são a vaidade e certo misticismo. Em um plano mais geral, nutre certo desprezo pelas mulheres, rebela-se contra o seu tempo e contra o horizonte limitado que se lhe pretende impor, atrelado à “condição feminina”. Deseja muito mais que um bom casamento. Aliás, para que quereria um homem para atravancar-lhe a vida? Os exemplos em sua própria casa não eram nada animadores, a começar pelo próprio pai, o mulherengo e perdulário Francisco Teixeira, responsável por dilapidar o patrimônio da família, deixando-a em má situação quando de sua morte. Quina não quer, portanto, ser desejada pelos homens. Quer antes ser admirada por seu espírito, por sua inteligência e pelo seu excepcional tino para os negócios. Enriquecer e ser notável são seus grandes objetivos de vida. Logo, é Quina que se ocupará de reerguer o patrimônio da família, conquistando o respeito e a consideração de toda a comunidade local, constrangida pelos fatos a admitir-lhe os êxitos.

A narrativa de Bessa-Luís nos apresenta uma Quina que é virtualmente incapaz de uma atitude desinteressada, uma mulher que mesmo no plano afetivo age como quem transaciona. E isso, longe de torná-la uma figura desprezível, constitui parte do seu fascínio, empresta-lhe uma certa densidade humana, a despeito de suas excentricidades. Sua personalidade, diz-nos o narrador a certa altura, era “um misto incoerente de tendências ascéticas, desprendimento do mundo, e, ao mesmo tempo, um desejo incansável de notoriedade e de honras”. E acima de tudo, era dotada de um talento muito especial: uma maravilhosa capacidade de ler as pessoas, de compreendê-las em um plano que era muito mais intuitivo do que lógico-racional, o que lhe conferia uma notável capacidade de previsão e pré-conhecimento da vida, que o homem civilizado, embotado pelo artificialismo das convenções da sociedade burguesa, perde ou deixa de desenvolver por completo. É essa qualidade que lhe rende o apelido de "Sibila", como se ela fosse uma espécie de profetiza. Aliás, é impressionante como em “A Sibila”, os tipos burgueses e intelectuais são superficiais, em flagrante contraste com a profundidade e a complexidade de uma mulher inculta e sem instrução formal como o era Quina.

Por fim, trazendo a coisa para um plano mais pessoal, o que me encantou em Agustina Bessa-Luís – já tive ocasião de dizê-lo nesse espaço – foi o seu texto. Mais do que aquilo que ela narra, acho fascinante o como é narrado. Que texto maravilhoso! Como eu disse antes e reitero, isso é Grande Literatura. Recomendo muito, mas faço um alerta: o vocabulário agustiniano exige algumas idas ao dicionário, mas não deixe que isso te desanime. Vale muito à pena...

Quanto ao mais, é uma lástima que o mercado editorial brasileiro dê tão pouca atenção a uma escritora dessa qualidade.​
 
Livraço! Tudo que se espera de um bom romance tá aí, mas me impressiona muito a capacidade dela em descrever as cenas. Li tem um tempão já, então não lembro muitos detalhes do enredo, mas esse foi um aspecto que chamou muito minha atenção
 
um comentário que fiz no bloguinho uma vez:


A autora é uma simpática velhinha portuguesa quase centenária e o romance é estupendo, um verdadeiro prodígio. Massaud Moisés uma vez fez um elogio enfático que até hoje, depois de tantos anos relendo a obra, ainda me impressiona: "Um universo ciclópico se arquiteta na conjugação de insuspeitadas realidades, como se de súbito todas as coisas, por mais desencontradas que fossem, começassem a dialogar e congraçar-se misteriosamente." Pra quem conhece um pouco que seja a crítica do Massaud, um adjetivo como "ciclópico" é a maior honraria a ser dada a um escritor. E de fato. O livro reúne absolutamente todas as características que esperamos de um ótimo prosador: linguagem elegante e fluente, capacidade descritiva, riqueza psicológica, visão de mundo, condução narrativa. É verdade sim que você vai precisar de um bom dicionário pra acompanhar a leitura, haja vista que o célebre detalhismo da escritora está a pleno vapor no livro: ou seja, Bessa-Luís não é do tipo de autora que se contenta em vestir a personagem com um mero "vestido rosa" quando ela pode colocar um "vestido de popeline cor-de-rosa, túnica panier listrada de branco". Mas, porque ler literatura não é exatamente saber-o-significado-de-todas-as-palavras, afinal de contas elas comumente significam apenas por se inserirem num determinado contexto, afora a beleza que irradiam quando em páginas literárias, então fique tranquilo: você não vai se aborrecer.

Um exemplo do poder descritivo da autora:

Chovia. A água repicava de encontro ao zinco que forrava até meio a porta que ficaria depois cheia de entalhaduras a canivete, marca e presságio da futura estatura de todas as crianças da família que ali se mediam aos dois anos, e cuja altura dobrada seria, diziam, a definitiva.

Agora um trecho do escrutínio psicológico:

E, naquele lar em que o chefe aparecia apenas para ser servido, para aceitar a escolha do melhor bocado e a servidão feliz de todos os que levavam afinal o fardo das monótonas canseiras, Quina recolhia com gratidão a deferência que o pai, tão admirável, tão estranho, tão difícil, lhe insinuava. O amor por ele tornou-se devoção. Ela cortejava-a profundamente, de resto, como usava com todas as mulheres sem excluir as filhas, incapaz de rispidez perante elas, domado por aquele sortilégio de saias, de vozes cantantes, de risos e meneios, de nervosismos lacrimosos e doces tiranias do instinto. Era Quina a primeira a aparecer-lhe no patamar da cozinha, quando o distinguia do declive do monte, de regresso das feiras que frequentava sempre com uma paixão de aventura. 'A bênção, meu pai' ― pedia, com uma exultação íntima, impaciente e quase feliz. Ele encarava-a com o olhar pícaro e fino, que não sabia tornar de todo paternal. 'Deus te abençoe...' ― dizia, devagar. E aquilo tinha o sabor duma cumplicidade, duma pequena folia trocista, contra o próprio Deus.

Absolutamente maravilhoso. Um trecho está numa página e o outro está literalmente na seguinte. Enquanto no primeiro temos uma descrição precisa, concreta e palpável da cena, evocando não somente o efeito sonoro da chuva ao bater no zinco (e por isso o zinco é importante) como o efeito sentimental daquela residência onde crianças eram medidas por entalhaduras numa porta, já no segundo temos não apenas a percepção brilhante da relação pai e filha, revelando nuances da alma de ambos que escritores ruins nem com uma tonelada de celulose lograriam alcançar, mas a beleza e a perícia de expressões tais como "sortilégio de saias" ou "doces tiranias do instinto".
 
um comentário que fiz no bloguinho uma vez:


A autora é uma simpática velhinha portuguesa quase centenária e o romance é estupendo, um verdadeiro prodígio. Massaud Moisés uma vez fez um elogio enfático que até hoje, depois de tantos anos relendo a obra, ainda me impressiona: "Um universo ciclópico se arquiteta na conjugação de insuspeitadas realidades, como se de súbito todas as coisas, por mais desencontradas que fossem, começassem a dialogar e congraçar-se misteriosamente." Pra quem conhece um pouco que seja a crítica do Massaud, um adjetivo como "ciclópico" é a maior honraria a ser dada a um escritor. E de fato. O livro reúne absolutamente todas as características que esperamos de um ótimo prosador: linguagem elegante e fluente, capacidade descritiva, riqueza psicológica, visão de mundo, condução narrativa. É verdade sim que você vai precisar de um bom dicionário pra acompanhar a leitura, haja vista que o célebre detalhismo da escritora está a pleno vapor no livro: ou seja, Bessa-Luís não é do tipo de autora que se contenta em vestir a personagem com um mero "vestido rosa" quando ela pode colocar um "vestido de popeline cor-de-rosa, túnica panier listrada de branco". Mas, porque ler literatura não é exatamente saber-o-significado-de-todas-as-palavras, afinal de contas elas comumente significam apenas por se inserirem num determinado contexto, afora a beleza que irradiam quando em páginas literárias, então fique tranquilo: você não vai se aborrecer.

Um exemplo do poder descritivo da autora:



Agora um trecho do escrutínio psicológico:



Absolutamente maravilhoso. Um trecho está numa página e o outro está literalmente na seguinte. Enquanto no primeiro temos uma descrição precisa, concreta e palpável da cena, evocando não somente o efeito sonoro da chuva ao bater no zinco (e por isso o zinco é importante) como o efeito sentimental daquela residência onde crianças eram medidas por entalhaduras numa porta, já no segundo temos não apenas a percepção brilhante da relação pai e filha, revelando nuances da alma de ambos que escritores ruins nem com uma tonelada de celulose lograriam alcançar, mas a beleza e a perícia de expressões tais como "sortilégio de saias" ou "doces tiranias do instinto".

Bom demais!! :clap:
O livro e o seu texto sobre ele, que eu já tinha lido, porque peguei naquele outro tópico sobre leituras programadas pro ano. :clap:

O texto dela é bonito demais mesmo. O meu livro tá inteiro cheio de fita adesiva e trechos grifados.

Vou destacar alguns trechos que postei também (porque tá mais fácil de resgatar :g: ):

"(...) o rapaz começou a chorar. Um homem de trinta anos que chora, ou é um imbecil ou é um poeta; a menos que uma dessas razões que desabam como uma avalanche sobre os temperamentos mais imutáveis venham convulsionar-lhe a alma, arrancando dela as comoções mais terríveis - mais terríveis ainda por serem isoladas e surgirem num campo sem essa prevenção constante, proporcionada pela experiência do pessimismo, que é escudo do infortúnio e que melhor conhecem as mulheres. Quina compreendeu que alguma coisa de única acontecera na vida daquele homem, e sentou-se defronte dele para o interrogar. O que soube deixou-a perplexa, tímida para julgar, e dorida por aquele lastimoso relato."

O contexto dessa passagem: um homem chora a morte de uma prostituta, com quem se envolvera. Tem infinitas formas de se descrever uma cena como essa, né? Mas até o ponto em que parei o recorte, o leitor, assim como Quina, não sabe o que se passou. Gostei demais desse trecho e de como ele prepara o que é narrado em seguida.

E outro:

"[...] E ali estava aquela jovem mulher, cujas feições contraídas, porém frias se desenhavam na esverdeada luz da madrugada; não confiava uma emoção à turba que a rodeava, que ia e vinha, num afadigado fervor de auxílio, que se aproximava na timidez daquela dor que não sabia como avaliar, e se afastava sem ter proferido senão palavras bruscas e banais, vexada pela própria impotência, desejando apenas distrair-se da desgraça que não podia vencer."

Nesse contexto, uma mulher olha para a sua casa enquanto esta é consumida pelo fogo. Os vizinhos tentam dar algum conforto, mas não tinha muito o que fazer...
 
De todo modo, nunca li nenhum outro romance dela. Vou ver depois se encontro algum.

Abri meu exemplar numa página aleatória e achei: "O Inverno era duro, muito chuvoso, e viam-se na eira passar os criados abrigados pelas croças." (cap. 4)

Sei que tem muito leitor que acha um saco ter que ficar abrindo o dicionário, mas olha que coisa mais foda essa palavra: croça! O Houaiss diz: "capa de palha que se usa no campo para se abrigar da chuva". Incrível. É a palavra exata nesse contexto. A maioria dos outros romancistas diria apenas uma capa, ou então que eles estavam abrigados da chuva; mas a Bessa-Luís vai e pimba: croça. Bom demais da conta.
 
Última edição:

Valinor 2023

Total arrecadado
R$2.404,79
Termina em:
Back
Topo