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A saga do homem invisível

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Muot-Hart

Usuário
|"Fingi ser gari por 8 anos e vivi como um ser invisível"
|
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|PLÍNIO DELPHINO
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|Psicólogo varreu as ruas da USP para concluir sua tese de mest rado da
|"invisibilidade pública". Ele comprovou que, em geral , as pessoas
|enxergam apenas a função social do outro. Quem nã o está bem
|posicionado sob esse critério, vira mera sombra soc ial.
|
|O psicólogo social Fernando Braga da Costa vestiu uniforme e t rabalhou
|oito anos como gari, varrendo ruas da Universidade de São Paulo. Ali,
|constatou que, ao olhar da maioria, os trabal hadores braçais são
|"seres invisíveis, sem nome".
|
|Em sua tese de mestrado, pela USP, conseguiu comprovar a exist ência da
|"invisibilidade pública", ou seja, uma percepção huma na totalmente
|prejudicada e condicionada à divisão social do t rabalho, onde
|enxerga-se somente a função e não a pessoa.
|
|Braga trabalhava apenas meio período como gari, não recebia o salário
|de R$400 como os colegas de vassoura, mas garante que teve a maior
|lição de sua vida: "Descobri que um simples bom d ia, que nunca recebi
|como gari, pode significar um sopro de vi da, um sinal da própria
|existência", explica o pesquisador.
|
|O psicólogo sentiu na pele o que é ser tratado como um objeto e não
|como um ser humano. "Professores que me abraçavam nos co rredores da
|USP passavam por mim, não me reconheciam por causa do uniforme. Às
|vezes, esbarravam no meu ombro e, sem ao meno s pedir desculpas,
|seguiam me ignorando, como se tivessem encostado em um poste, ou em um
|orelhão", diz.
|
|Apesar do castigo do sol forte, do trabalho pesado e das humil hações
|diárias, segundo o psicólogo, são acolhedores com quem os enxerga. E
|encontram no silêncio a defesa contra quem os ig nora.
|
|DIÁRIO - Como é que você teve essa idéia?
|
|Fernando Braga da Costa -
| Meu orientador desde a graduação, o professor José Moura Gonç alves
|Filho, sugeriu aos alunos, como uma das provas de avalia ção, que a
|gente se engajasse numa tarefa proletária. Uma form a de atividade
|profissional que não exigisse qualificação técnica nem acadêmi
|ca. Então, basicamente, profissões das classes pobres.
|
|Com que objetivo?
|
|A função do meu mestrado era compreender e analisar a condição de
|trabalho deles (os garis), e a maneira como eles estão ins eridos na
|cena pública. Ou seja, estudar a condição moral e ps icológica a qual
|eles estão sujeitos dentro da sociedade. Outr o nível de investigação,
|que vai ser priorizado agora no douto rado, é analisar e verificar as
|barreiras e as aberturas que s e operam no encontro do psicólogo social
|com os garis. Que bar reiras são essas, que aberturas são essas, e como
|se dá a apro ximação?
|
|Quando você começou a trabalhar, os garis notaram que se trata va de um
|estudante fazendo pesquisa?
|
|Eu vesti um uniforme que era todo vermelho, boné, camisa e tal .
|Chegando lá eu tinha a expectativa de me apresentar como nov o
|funcionário, recém- contratado pela USP pra varrer rua com eles. Mas,
|os garis sac aram logo, entretanto nada me disseram. Existe uma coisa
|típic a dos garis: são pessoas vindas do Nordeste, negros ou mulatos
| em geral. Eu sou branquelo, mas isso talvez não seja o difere
|ncial, porque muitos garis ali são brancos também. Você tem um
|a série de fatores que são ainda mais determinantes, como a ma
|neira de falarmos, o modo de a gente olhar ou de posicionar o
|nosso corpo, a maneira como gesticulamos. Os garis conseguem d
|efinir essa diferenças com algumas frases que são simplesmente
| formidáveis.
|
|Dê um exemplo?
|
|Nós estávamos varrendo e, em determinado momento, comecei a pa pear com
|um dos garis. De repente, ele viu um sujeito de 35 ou 40 anos de
|idade, subindo a rua a pé, muito bem arrumado com uma pastinha de couro
|na mão. O sujeito passou pela gente e nã o nos cumprimentou, o que é
|comum nessas situações. O gari, se m se referir claramente ao homem que
|acabara de passar, virou- se pra mim e começou a falar: "É Fernando,
|quando o sujeito ve m andando você logo sabe se o cabra é do dinheiro
|ou não. Porq ue peão anda macio, quase não faz barulho. Já o pessoal da
|out ra classe você só ouve o toc-
|toc dos passos. E quando a gente está esperando o trem logo pe
|rcebe também: o peão fica todo encolhidinho olhando pra baixo.
| Eles não. Ficam com olhar só por cima de toda a peãozada, seg
|urando a pastinha na mão."
|
|Quanto tempo depois eles falaram sobre essa percepção de que v ocê era
|diferente?
|
|Isso não precisou nem ser comentado, porque os fatos no primei ro dia
|de trabalho já deixaram muito claro que eles sabiam que eu não era um
|gari. Fui tratado de uma forma completamente di ferente. Os garis são
|carregados na caçamba da caminhonete jun to com as ferramentas. É como
|se eles fossem ferramentas també m. Eles não deixaram eu viajar na
|caçamba, quiseram que eu fos se na cabine. Tive de insistir muito para
|poder viajar com ele s na caçamba. Chegando no lugar de trabalho,
|continuaram me tr atando diferente. As vassouras eram todas muito
|velhas. A únic a vassoura nova já estava reservada para mim. Não me
|deixaram usar a pá e a enxada, porque era um serviço mais pesado. Eles
|fizeram questão de que eu trabalhasse só com a vassoura e, mes
|mo assim, num lugar mais limpinho, e isso tudo foi dando a dim
|ensão de que os garis sabiam que eu não tinha a mesma origem s
|ocioeconômica deles.
|
|Quer dizer que eles se diminuíram com a sua presença?
|
|Não foi uma questão de se menosprezar, mas sim de me proteger.
|
|Eles testaram você?
|
|No primeiro dia de trabalho paramos pro café. Eles colocaram u ma
|garrafa térmica sobre uma plataforma de concreto. Só que nã o tinha
|caneca. Havia um clima estranho no ar, eu era um sujei to vindo de
|outra classe, varrendo rua com eles. Os garis mal conversavam comigo,
|alguns se aproximavam para ensinar o servi ço. Um deles foi até o latão
|de lixo pegou duas latinhas de re frigerante cortou as latinhas pela
|metade e serviu o café ali, na latinha suja e grudenta. E como a gente
|estava num grupo g rande, esperei que eles se servissem primeiro. Eu
|nunca apreci ei o sabor do café. Mas, intuitivamente, senti que deveria
|tom
|á-
|lo, e claro, não livre de sensações ruins. Afinal, o cara tiro u as
|latinhas de refrigerante de dentro de uma lixeira, que te m sujeira,
|tem formiga, tem barata, tem de tudo. No momento em que empunhei a
|caneca improvisada, parece que todo mundo paro u para assistir à cena,
|como se perguntasse: 'E aí, o jovem ri co vai se sujeitar a beber nessa
|caneca?' E eu bebi. Imediatam ente a ansiedade parece que evaporou.
|Eles passaram a conversa r comigo, a contar piada, brincar. "Essa
|experiência me deixou curado da minha doença burguesa"
|
|O que você sentiu na pele, trabalhando como gari?
|
|Uma vez, um dos garis me convidou pra almoçar no bandejão cent ral. Aí
|eu entrei no Instituto de Psicologia para pegar dinhei ro, passei pelo
|andar térreo, subi escada, passei pelo segundo andar, passei na
|biblioteca, desci a escada, passei em frente ao centro acadêmico,
|passei em fren te a lanchonete, tinha muita gente conhecida. Eu fiz
|todo esse trajeto e ninguém em absoluto me viu. Eu tive uma sensação
|mu ito ruim. O meu corpo tremia como se eu não o dominasse, uma a
|ngustia, e a tampa da cabeça era como se ardesse, como se eu t
|ivesse sido sugado. Fui almoçar não senti o gosto da comida vo
|ltei para o trabalho atordoado.
|
|E depois de oito anos trabalhando como gari? Isso mudou?
|
|Fui me habituando a isso, assim como eles vão se habituando ta mbém a
|situações pouco saudáveis. Então, quando eu via um prof essor se
|aproximando - professor meu - até parava de varrer, porque ele ia
|passar por mim, podia tro car uma idéia, mas o pessoal passava como se
|tivesse passando por um poste, uma árvore, um orelhão.
|
|E quando você volta para casa, para seu mundo real?
|
|Eu choro. É muito triste, porque, a partir do instante em que você está
|inserido nessa condição psicossocial, não se esquece jamais. Acredito
|que essa experiência me deixou curado da min ha doença burguesa. Esses homens hoje são meus amigos. Conheço a família deles, freqüento a casa deles nas periferias. Mudei . Nunca deixo de cumprimentar um
|trabalhador. Faço questão de o trabalhador saber que eu sei que ele
|existe. Eles são tratados pior do que um animal doméstico, que sempre
|é chamado pelo nome. São tratados como se fossem uma coisa.
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|PLÍNIO DELPHINO
 
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