Cheguei a este texto por acaso e julguei que era interessante para, talvez, suscitar algum debate.
O foco, claro, está nas citações transcritas — de Jorge Amado e de Flaubert.
Especialmente nestes tempos em que o chororô das adaptações para a TV anda em alta num certo fandom...
Num dos textos do volume, Amado enfrenta a questão que muitas vezes tenta e não raro atormenta os ficcionistas: como responder ao desafio das adaptações. Ou seja: como se posiciona o escritor relativamente à “reescrita”, por processo de transmediação, do seu texto para outro suporte e para outra linguagem (cinema, televisão, rádio, banda desenhada, etc.), sendo sabidas duas coisas. Uma: que o meio de chegada pode acolher géneros narrativos próprios (folhetim radiofónico, série televisiva, telenovela). Outra: que aquele processo de transmediação tem na personagem um elemento diegético que levanta interrogações e requer soluções específicas.

Diz Amado: “Leitores me interrogam, por carta ou de viva voz, querendo saber o que penso das adaptações de romances de minha autoria para o cinema, o rádio, o teatro, a televisão”. E a isto acrescenta duas afirmações significativas. Primeira: “A adaptação de um romance para qualquer outro meio de comunicação é sempre uma violência contra o autor”. Segunda: “Ao escrever um romance realizo trabalho artesanal, sou um artesão tentando alcançar a arte literária”, sendo certo que, pelo seu lado, “cinema, rádio, televisão são o oposto do artesanato, são indústria e comércio” (Navegação de Cabotagem. 3ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1994, pp. 256-257). [Nota do Béla: sobre isso, leiam-se os trechos de Vargas Llosa sobre a civilização do espetáculo que transcrevi para o fórum]
Perdendo controlo sobre a violência que lhe fazem, o escritor (que, todavia e para que conste, autoriza a adaptação) perde, ao mesmo tempo, capacidade para condicionar as personagens. São os interesses combinados do espe[c]tador e da lógica da produção que passam a comandar a personagem: “um simples figurante se cai no gosto do público pode passar à personagem principal, as tramas se desdobram em função da audiência” (p. 257). Acontece assim também porque a personagem, pela sua natureza e pelo seu modo de figuração, consente e mesmo estimula “desvios” como aquele.

Jennifer Jones em Madame Bovary, de Vicente Minnelli (de 1949)
Flaubert, que consabidamente viveu com algumas das suas personagens relações tensas e que muito trabalhou para dominar todos os aspetos da representação ficcional, não pôde autorizar ou desautorizar adaptação cinematográficas ou televisivas. Mas recusou adaptações teatrais de Madame Bovary; e recusou também ilustrações (muito apelativas, para a indústria do livro de então), com palavras que traduzem a consciência dos problemas levantadas, no que toca à personagem, pelo processo da transmediação: “Jamais me ilustrarão as obras enquanto eu for vivo, porque a mais bela descrição literária é devorada pelo mais pobre desenho. A partir do momento em que um tipo é fixado pelo lápis, ele perde esse caráter de generalidade, essa concordância com mil objetos conhecidos que fazem dizer ao leitor: ‘Eu vi isso’ ou ‘Isso deve ser’”. E continua: “Uma mulher desenhada assemelha-se a um mulher, eis tudo. A ideia fica então fechada, completa, e todas as frases são inúteis, enquanto uma mulher escrita leva a pensar em mil mulheres” (carta a Ernest Duplan, 12 de junho de 1862).
Carlos Reis.
Fonte: Figuras da Ficção.
O foco, claro, está nas citações transcritas — de Jorge Amado e de Flaubert.
Especialmente nestes tempos em que o chororô das adaptações para a TV anda em alta num certo fandom...

A personagem revista
Em Navegação de Cabotagem: apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei (1992), Jorge Amado compôs um grosso volume de memórias elaboradas de forma singular, com avanços e recuos temporais, sem outra aparente ordenação que não sejam as evocações que vão chegando à cabeça do escritor. O subtítulo da obra é, deste ponto de vista, esclarecedor.Num dos textos do volume, Amado enfrenta a questão que muitas vezes tenta e não raro atormenta os ficcionistas: como responder ao desafio das adaptações. Ou seja: como se posiciona o escritor relativamente à “reescrita”, por processo de transmediação, do seu texto para outro suporte e para outra linguagem (cinema, televisão, rádio, banda desenhada, etc.), sendo sabidas duas coisas. Uma: que o meio de chegada pode acolher géneros narrativos próprios (folhetim radiofónico, série televisiva, telenovela). Outra: que aquele processo de transmediação tem na personagem um elemento diegético que levanta interrogações e requer soluções específicas.

Diz Amado: “Leitores me interrogam, por carta ou de viva voz, querendo saber o que penso das adaptações de romances de minha autoria para o cinema, o rádio, o teatro, a televisão”. E a isto acrescenta duas afirmações significativas. Primeira: “A adaptação de um romance para qualquer outro meio de comunicação é sempre uma violência contra o autor”. Segunda: “Ao escrever um romance realizo trabalho artesanal, sou um artesão tentando alcançar a arte literária”, sendo certo que, pelo seu lado, “cinema, rádio, televisão são o oposto do artesanato, são indústria e comércio” (Navegação de Cabotagem. 3ª ed., Rio de Janeiro: Record, 1994, pp. 256-257). [Nota do Béla: sobre isso, leiam-se os trechos de Vargas Llosa sobre a civilização do espetáculo que transcrevi para o fórum]
Perdendo controlo sobre a violência que lhe fazem, o escritor (que, todavia e para que conste, autoriza a adaptação) perde, ao mesmo tempo, capacidade para condicionar as personagens. São os interesses combinados do espe[c]tador e da lógica da produção que passam a comandar a personagem: “um simples figurante se cai no gosto do público pode passar à personagem principal, as tramas se desdobram em função da audiência” (p. 257). Acontece assim também porque a personagem, pela sua natureza e pelo seu modo de figuração, consente e mesmo estimula “desvios” como aquele.

Jennifer Jones em Madame Bovary, de Vicente Minnelli (de 1949)
Flaubert, que consabidamente viveu com algumas das suas personagens relações tensas e que muito trabalhou para dominar todos os aspetos da representação ficcional, não pôde autorizar ou desautorizar adaptação cinematográficas ou televisivas. Mas recusou adaptações teatrais de Madame Bovary; e recusou também ilustrações (muito apelativas, para a indústria do livro de então), com palavras que traduzem a consciência dos problemas levantadas, no que toca à personagem, pelo processo da transmediação: “Jamais me ilustrarão as obras enquanto eu for vivo, porque a mais bela descrição literária é devorada pelo mais pobre desenho. A partir do momento em que um tipo é fixado pelo lápis, ele perde esse caráter de generalidade, essa concordância com mil objetos conhecidos que fazem dizer ao leitor: ‘Eu vi isso’ ou ‘Isso deve ser’”. E continua: “Uma mulher desenhada assemelha-se a um mulher, eis tudo. A ideia fica então fechada, completa, e todas as frases são inúteis, enquanto uma mulher escrita leva a pensar em mil mulheres” (carta a Ernest Duplan, 12 de junho de 1862).
Carlos Reis.
Fonte: Figuras da Ficção.