UM
– Venha cá, menino – ele me chamava de menino – o que é que você quer aqui, em?
– Vingança.
DOIS
Eu lembro, como se fosse hoje mesmo, de tudo que sofri nas mãos desse cara. Ele estava em todas as casas e eu chegava de cabeça baixa, já humilhado antes de começo de conversa, tentando me aproximar e era só isso. Nada mais. Eu ficava olhando, sem mais o que fazer, aprendendo as manhas da viola e vendo um a um os inimigos caírem diante desse negro matuto, que sabia mais que todo o mundo. Não tinha professor de colegial que conseguisse vencer Zé do Violão numa peleja, rima feita sempre na ponta da língua, soltava desde conhecimentos gerais sobre o mundo até desavenças e xingamentos de forma elegante apesar da dureza.
Foi num dia desses que resolvi entrar na roda, soltei um ou outro versinho decorado em casa, como não sabia tocar nada ele me fez o fundo musical, rebateu minha cola com puro improviso, coisa do momento, ainda me disse que quem canta de cor é o galo e que eu me mandasse dali pra viver antes de me bater de frente com ele. Ai que raiva que me deu. Sem piedade lhe roguei uma praga, disse que ia estudar pra voltar até ele e me vingar, e bem diante de toda aquela gente ele disse “Muito bem, mas só volte quando estiver pronto pra vencer, enquanto isso algo pra você pensar, o que acontece quando a gente quer tanto ser alguém, que esquece de quem a gente é?”.
Saí dali me sentindo um ninguém, que de fato eu estava perto de ser. Corri pelo mato tentando encontrar uma resposta para aquela pergunta banal. Corri tanto que esfolei os dedos do pé, quando passei numa moita maledita de erva cidreira. Cheguei em casa rubro de sangue, o pé pingando tanto que deixou um caminho da porta até o banheiro, onde fiquei largado com minha própria humilhação. Mãe gritando do lado de fora, pai já tentando arrombar a janela. “Eu vou me embora daqui, preciso aprender a ser alguém pra dar um pé na bunda desse Zé do Violão”.
No mesmo dia saí do banheiro, quando todo mundo já havia desistido, panhei minhas coisas e pulei para a noite, seguindo as placas que indicavam o caminho do conhecimento; “São Paulo”, diziam em letras garrafais. Os números do lado é que eram coisa do diabo: “1240 Km”. A pé, sozinho e sem comida nenhuma, a inexperiência na estrada por pouco não me arrebatou de uma vez e me vi chegando depois de três dias e muito sofrimento à movimentada cidade grande.
Chegando lá descobri a importância do dinheiro e tentei de todo jeito me sustentar; vendi bala, limpei vidro de carro, ajudante de pedreiro, jardineiro e finalmente frentista de posto de gasolina. Ali vi minha vida estabilizar. Liguei pra casa e disse que estava bem, só pro pai não se preocupar e a mãe não achar que eu tinha morrido.
Comprei um violão e sozinho aprendi a tocar. Ia pra escola aprender os “segredos” do mundo inteiro e me dedicava a não deixar passar nada, eu queria ter todo aquele conhecimento do negro violeiro da minha terra e um pouco mais. Não demorou para que eu começasse a compor minhas próprias músicas e logo me apresentar em bar. A grana entrou rápido e de frentista virei músico requisitado da noite paulistana. Durante as apresentações comecei a brincar, fazia repente com as pessoas que estava me assistindo e a popularidade não tardou a chegar.
Ah, meu violão e eu éramos infelizes, pois apesar de toda aquela gente não estava ali quem eu precisava atingir com o meu conhecimento e o meu jeito de tocar. Zé do Violão ia se ver comigo. Tão logo eu tivesse um tempo na minha ocupada agenda de shows eu voltaria pra minha terra pra me encontrar com o safado que uma vez havia me humilhado e o favor lhe seria retribuído.
TRÊS
Foi um dia ensolarado que me fez de novo pegar a estrada. Já era outra pessoa. Levei felicidade pra minha família, que estava embasbacada em como eu estava bem de vida e me tornado um exímio violonista. Tocava do popular ao clássico, e todo mundo lá em casa se espantava em como eu era bom, meu pai ligou uma ou duas vezes, não me lembro e logo a sala estava cheia de gente pra me ver tocar. A noite passou rápido e cada um dos presentes, antes de ir embora, vinha me dar os parabéns e já ansiavam por nova roda, todas as noites se dependesse deles.
– A festa amanhã é lá no Seu Genário. Negro Zé vai estar lá com a viola. Aparece lá que quero ver os dois tocar.
– Sei não – foi tudo que me veio na cabeça.
– Uma peleja.
– Faz tempo que não se vê nada assim por aqui, desde que todo mundo desistiu de enfrentar o Zé e ele agora toca só moda de viola pra divertir.
– Mas que disgrama, aparece por lá.
QUATRO
– Venha cá, menino – ele me chamava de menino – o que é que você quer aqui, em?
– Vingança.
– É bom te ver de novo, mas agora vamo tocar
Não demorou pra perceber o erro que eu havia cometido, mas não empacotei a viola e nem arredei o pé dali. Toquei com ele como parceiro de longa data e nenhuma peleja se deu essa noite, pra tristeza de toda aquela gente que queria ver a genialidade do improviso de Zé do Violão uma vez mais. Houve dança, bebida e muita festa.
– Ninguém. Esta é tua resposta.
Saí feliz dali e nada mais poderia me chatear. Voltei pros meus barzinhos e adotei o nome de “Menino”. Ele me chamava de menino.
– Venha cá, menino – ele me chamava de menino – o que é que você quer aqui, em?
– Vingança.
DOIS
Eu lembro, como se fosse hoje mesmo, de tudo que sofri nas mãos desse cara. Ele estava em todas as casas e eu chegava de cabeça baixa, já humilhado antes de começo de conversa, tentando me aproximar e era só isso. Nada mais. Eu ficava olhando, sem mais o que fazer, aprendendo as manhas da viola e vendo um a um os inimigos caírem diante desse negro matuto, que sabia mais que todo o mundo. Não tinha professor de colegial que conseguisse vencer Zé do Violão numa peleja, rima feita sempre na ponta da língua, soltava desde conhecimentos gerais sobre o mundo até desavenças e xingamentos de forma elegante apesar da dureza.
Foi num dia desses que resolvi entrar na roda, soltei um ou outro versinho decorado em casa, como não sabia tocar nada ele me fez o fundo musical, rebateu minha cola com puro improviso, coisa do momento, ainda me disse que quem canta de cor é o galo e que eu me mandasse dali pra viver antes de me bater de frente com ele. Ai que raiva que me deu. Sem piedade lhe roguei uma praga, disse que ia estudar pra voltar até ele e me vingar, e bem diante de toda aquela gente ele disse “Muito bem, mas só volte quando estiver pronto pra vencer, enquanto isso algo pra você pensar, o que acontece quando a gente quer tanto ser alguém, que esquece de quem a gente é?”.
Saí dali me sentindo um ninguém, que de fato eu estava perto de ser. Corri pelo mato tentando encontrar uma resposta para aquela pergunta banal. Corri tanto que esfolei os dedos do pé, quando passei numa moita maledita de erva cidreira. Cheguei em casa rubro de sangue, o pé pingando tanto que deixou um caminho da porta até o banheiro, onde fiquei largado com minha própria humilhação. Mãe gritando do lado de fora, pai já tentando arrombar a janela. “Eu vou me embora daqui, preciso aprender a ser alguém pra dar um pé na bunda desse Zé do Violão”.
No mesmo dia saí do banheiro, quando todo mundo já havia desistido, panhei minhas coisas e pulei para a noite, seguindo as placas que indicavam o caminho do conhecimento; “São Paulo”, diziam em letras garrafais. Os números do lado é que eram coisa do diabo: “1240 Km”. A pé, sozinho e sem comida nenhuma, a inexperiência na estrada por pouco não me arrebatou de uma vez e me vi chegando depois de três dias e muito sofrimento à movimentada cidade grande.
Chegando lá descobri a importância do dinheiro e tentei de todo jeito me sustentar; vendi bala, limpei vidro de carro, ajudante de pedreiro, jardineiro e finalmente frentista de posto de gasolina. Ali vi minha vida estabilizar. Liguei pra casa e disse que estava bem, só pro pai não se preocupar e a mãe não achar que eu tinha morrido.
Comprei um violão e sozinho aprendi a tocar. Ia pra escola aprender os “segredos” do mundo inteiro e me dedicava a não deixar passar nada, eu queria ter todo aquele conhecimento do negro violeiro da minha terra e um pouco mais. Não demorou para que eu começasse a compor minhas próprias músicas e logo me apresentar em bar. A grana entrou rápido e de frentista virei músico requisitado da noite paulistana. Durante as apresentações comecei a brincar, fazia repente com as pessoas que estava me assistindo e a popularidade não tardou a chegar.
Ah, meu violão e eu éramos infelizes, pois apesar de toda aquela gente não estava ali quem eu precisava atingir com o meu conhecimento e o meu jeito de tocar. Zé do Violão ia se ver comigo. Tão logo eu tivesse um tempo na minha ocupada agenda de shows eu voltaria pra minha terra pra me encontrar com o safado que uma vez havia me humilhado e o favor lhe seria retribuído.
TRÊS
Foi um dia ensolarado que me fez de novo pegar a estrada. Já era outra pessoa. Levei felicidade pra minha família, que estava embasbacada em como eu estava bem de vida e me tornado um exímio violonista. Tocava do popular ao clássico, e todo mundo lá em casa se espantava em como eu era bom, meu pai ligou uma ou duas vezes, não me lembro e logo a sala estava cheia de gente pra me ver tocar. A noite passou rápido e cada um dos presentes, antes de ir embora, vinha me dar os parabéns e já ansiavam por nova roda, todas as noites se dependesse deles.
– A festa amanhã é lá no Seu Genário. Negro Zé vai estar lá com a viola. Aparece lá que quero ver os dois tocar.
– Sei não – foi tudo que me veio na cabeça.
– Uma peleja.
– Faz tempo que não se vê nada assim por aqui, desde que todo mundo desistiu de enfrentar o Zé e ele agora toca só moda de viola pra divertir.
– Mas que disgrama, aparece por lá.
QUATRO
– Venha cá, menino – ele me chamava de menino – o que é que você quer aqui, em?
– Vingança.
– É bom te ver de novo, mas agora vamo tocar
Não demorou pra perceber o erro que eu havia cometido, mas não empacotei a viola e nem arredei o pé dali. Toquei com ele como parceiro de longa data e nenhuma peleja se deu essa noite, pra tristeza de toda aquela gente que queria ver a genialidade do improviso de Zé do Violão uma vez mais. Houve dança, bebida e muita festa.
– Ninguém. Esta é tua resposta.
Saí feliz dali e nada mais poderia me chatear. Voltei pros meus barzinhos e adotei o nome de “Menino”. Ele me chamava de menino.