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A Música das Esferas - Estudo sobre o Ainulindalë

Tentar trazer à tona todas as influências que contribuíram para criar o Ainulindalë é, pela complexidade e beleza sutil desse mito, uma tarefa fadada ao fracasso desde o começo. O que procurarei fazer aqui é abordar alguns dos temas e arquétipos míticos que ajudam a tornar essa narrativa tão fascinante, em especial os relacionados à influência que, na minha opinião, é a primordial: o mito da Criação judaico-cristã. </P>




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De cara, quase abruptamente, somos confrontados com Eru, o primeiro dos Seres e o senhor da Existência. O significado da palavra "Eru" em quenya esclarece muito da natureza desse ser: ele é "o Único", "Aquele que está Só". Essa última expressão se aproxima incrivelmente da profissão de fé judaica: "Ouve, ó Israel, o Senhor é nosso Deus, o Senhor é o Único". Tal fórmula consagrada, usada para exprimir a transcendência de Deus, tem um significado duplo: o Senhor é o único Deus de Israel, e é também o único de seu gênero; nenhum outro ser dentro da Existência compartilha da sua natureza, e portanto ele está realmente só em majestade, é o Único por excelência. Outro argumento que reforça essa visão é a natureza do verbo "to be" na língua inglesa, com seu duplo significado de "ser" e "estar"; assim, "He that is Alone" pode querer dizer também "Aquele que é, que existe por si Só", por ser a fonte primordial de tudo o que existe.</P>
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Isso fica ainda mais claro quando pensamos no epíteto "Ilúvatar": "O Pai de Todos". Eru é, portanto, Pai por excelência de toda a Criação. Sem ele nada pode existir: "Nenhum tema pode ser tocado que não tenha a sua fonte última em mim". </P>
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Do pensamento de Ilúvatar, dos múltiplos aspectos da sua mente criadora, é que nascem os Ainur, os Sagrados, que surgem "antes que tudo o mais fosse feito". Como Eru, os Ainur são puro espírito, e a associação com os anjos da mitologia judaico-cristã, mais uma vez, é inevitável. A palavra "anjo" [do grego "ânguelos", enviado] é usada, no Novo Testamento, para traduzir um termo hebraico que, originalmente, significava "manifestação", "aspecto". Os anjos são, dessa forma, os aspectos do Divino que lidam ativamente com a Criação, protegendo-a e guiando-a. Como emanações da mente de Eru, mas dotados de liberdade e vontade próprias, os Ainur se aproximam bastante dessa visão. Muitos dos Ainur acabam descendo a Eä e se tornando os Valar - os Poderes do Mundo, que em muitos ensaios Tolkien chamava explicitamente de "os Poderes Angélicos". O próprio termo "Poder" é outro sinal da analogia com os anjos judaico-cristãos - entre as muitas hierarquias angélicas cunhadas pelos primeiros teólogos cristãos, existe a das Podestades - do latim podestas, que significa exatamente "poder". As Podestades são, assim, as inteligências angélicas que auxiliam Deus no governo do mundo material - assim como os nossos Valar. </P>
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Chega o momento em que Ilúvatar decide declarar seu grande tema aos Ainur, e tem início a grande Canção, da qual todo o Universo surgirá. É importante notar que não se trata de uma simples música, mas principalmente de uma canção - "como incontáveis corais cantando com palavras", sublinha Tolkien. Em todas as mitologias, a palavra - em especial a "palavra de poder", pronunciada nos primórdios do Tempo ou pelas divindades - é capaz de trazer à Existência aquilo que ela nomeia; os verdadeiros nomes das coisas, quando pronunciados, equivalem à própria coisa, ativam os poderes inerentes a ela. Além disso, porém, a palavra cantada tem ainda outro poder: por se tratar da mescla entre palavra, ritmo e melodia, o canto privilegia não o sentido racional dos versos, mas o som, a evocação, o feitiço criado por eles. A palavra se torna encantamento, magia - e o seu poder criador se multiplica até o infinito. Por isso, em muitas culturas, o bardo ou menestrel era considerado capaz de, cantando, trazer as cenas de seu canto diante dos olhos do observador - como acontece com os bardos celtas ou com os poetas gregos que, como Homero, eram inspirados pelas Musas. </P>
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É interessante notar que os Ainur, longe de serem executores passivos de uma partitura previamente estabelecida, são co-criadores da grande Canção, adicionando sua imaginação e pensamento ao tema de Ilúvatar. Tal concepção talvez possa ser explicada pela própria visão que Tolkien tinha do ato criador: para ele, as criaturas são capazes de se tornar "sub-criadoras", companheiras do Criador no desenvolvimento e manutenção do Universo. Entretanto, e isso é bastante claro na narrativa, as criaturas não podem jamais perder de vista o propósito e desígnio profundo do Criador em tudo o que fazem, sob pena de incorrer na perversão malévola desses desígnios. </P>
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Todo esse raciocínio nos conduz inevitavelmente ao antagonista desse grande drama: Melkor, o mais poderoso dos Ainur e o que mais dons recebeu da generosa mente de Eru ao ser criado. "Aquele que se levanta em Poder" é o significado de seu nome, e mais uma vez não se pode deixar de pensar na analogia com o mais poderoso dos anjos, Lúcifer - em latim "o portador da luz". O pecado de Melkor, como o de Lúcifer, é o da auto-suficiência e do orgulho. Melkor passa a achar que o tema de Ilúvatar pode ser ignorado e suplantado, procura "afogar o tema de Ilúvatar pela violência de sua voz" - sem perceber que sua própria existência, todas as suas dádivas de poder e conhecimento, provinham do próprio Eru. </P>
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Ao contrário do que acontece com Lúcifer, porém, Melkor não cai no momento em que se inicia sua rebelião. Sua transformação em Morgoth, "o Inimigo Sinistro" [outro eco do hebraico Satanás, "o Adversário"], só se dá quando ele desce a Eä com os demais Valar e procura submeter a Criação à sua vontade. Como Lúcifer, Melkor atrai também para si muitos de seus semelhantes, graças à sedução do poder. Mas, como o mais poderoso dos anjos, Melkor enfrenta a oposição dos Valar que permanecem fiéis à vontade e ao desígnio do Criador, e destes o principal é Manwë, o Ainu do ar e da região celeste. Mais um paralelo surge: Manwë desempenha um papel muito semelhante ao de Miguel, o segundo em poder dos anjos e o líder da resistência angélica em favor de Deus, que logra expulsar Satanás do Paraíso e derrotá-lo.</P>
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Outro conceito importantíssimo no Ainulindalë é o da Chama Imperecível, a força com a qual Ilúvatar inflamou os Ainur e que, no momento da Criação, foi enviada para o coração do Mundo. O fogo desempenha um papel mítico bastante claro em quase todas as culturas. Ele pode ser símbolo do entendimento do mundo e da razão iluminadora, como o fogo dado pelo titã Prometeu aos homens; em todas as casas dos antigos gregos, um lugar era reservado à lareira de Héstia, a personificação do fogo sagrado que ilumina e aquece, lembrando a presença perpétua dos deuses. Na antiga Pérsia, o deus do Bem Ahura Mazda era também simbolizado por uma Chama sempre acesa. No Novo Testamento, o fogo é sinal do Espírito Santo, a presença iluminadora do Divino nos seres humanos: "Haverá de vir outro mais poderoso que eu, que vos batizará com o Espírito Santo e com o fogo", diz João Batista sobre o Messias [Lc 3, 17]. Da mesma forma, antes de começar sua missão evangelizadora, os apóstolos recebem o Espírito Santo em forma de línguas de fogo que descem do céu. </P>
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Assim, a Chama Imperecível simboliza a inesgotável capacidade criadora de Eru, e a capacidade que todas as criaturas recebem dele de também participarem dessa criação. Enviada por Ilúvatar para dar vida ao mundo, a Chama é a fonte da qual todos extraem a Existência. E é por isso que Melkor é incapaz de encontrá-la: não estando mais em harmonia com a vontade de Eru, ele perde a capacidade de ser efetivamente um ser criador - o que se refletirá, no decorrer do mito, na esterilidade de Melkor, que se torna incapaz de criar qualquer coisa que tenha vida. </P>
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Como se pode ver, é a palavra de Eru - "Portanto eu digo Eä! Que estas coisas Sejam!" - que dá existência ao Mundo. Embora os Valar tenham contribuído para a concepção do Universo, só Ilúvatar possui a "palavra de poder" capaz de efetivamente trazer aquilo à Existência. E é quando os Valar adentram Eä que percebemos a função destes no plano da Criação - a de organizadores e mantenedores dos desígnios de Ilúvatar. O mundo que os Valar contemplam pela primeira vez é ainda o Caos primordial: informe, escuro, apenas um potencial adormecido. É uma visão que se aproxima bastante do Caos grego - que não corresponde, ao contrário do que se imagina, à confusão, mas sim à indefinição, à potencialidade. Noções semelhantes do mundo em seus começos podem ser encontradas em outras culturas do Oriente Próximo, como a egípcia - em que o Caos primordial é visto como uma ilhota de argila emergindo das águas do Oceano primitivo - e também na narrativa bíblica: "A terra estava informe e vazia; as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas" [Gn 1, 2]. Os Valar enfrentam, em seu trabalho de organização do Mundo, a oposição constante de Melkor, mas apesar dela, conseguem levar a bom termo sua missão e Arda, o Reino, é estabelecido "nas Profundezas do Tempo e em meio às inumeráveis estrelas". </P>
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