Melian
Período composto por insubordinação.
Há alguns meses, ganhei o livro A Mulher Submersa, de Mar Becker, de presente do Lufe. Ele sabia que eu gostaria do livro, mas acho que não sabia que eu gostaria tanto. Desde a leitura, eu fiquei impactada de um jeito, que: meu Deus! É o livro de estreia da Mar, e já foram vendidos 2.000 exemplares, o que já é um número muito expressivo, se considerarmos o quanto que os livros de Literatura Brasileira Contemporânea vendem (não tô falando dos best-sellers de fantasia, claro). Ao considerarmos que se trata de um livro de poesias, o feito se torna ainda mais relevante. Não é exagero dizer que o livro de Mar Becker foi o melhor de 2020. Para mim, ele já está na listinha das "melhores leituras de 2021".
Quando terminei de ler A Mulher Submersa, cheguei a escrever isto, no FB:
Embora possa parecer, num rápido passar de olhos, que a maioria dos poemas de A Mulher Submersa, de Mar Becker, seja sobre o fim, a verdade é que o livro está repleto de poemas sobre o que fica depois do fim. Poemas que, por isso, funcionam como prenúncios de recomeços.
Mar Becker escreve sobre o que existe/resiste no nada, sobre o que persiste: num cheiro, num lençol, num corpo, num não corpo. Escreve sobre o ser e o tempo do ser. Sobre o espaço de tempo entre o desprender da pétala da flor e seu resvalar no chão. Escreve sobre tudo o que deságua nos olhos vivos de Ofélia morta; sobre tudo o que cabe no instante capturado pelo último olhar de Ofélia.
Escreve sobre o tempo que se traduz em poesia. E toda poesia é tradução das ruínas submersas, e cheias de lodo, retidas nos estilhaços de um espelho. Espelho cujo reflexo é a agulha que sustenta a linha invisível que costura as mulheres umas nas outras, como a anunciar que a última de nós será uma colcha de retalhos, estes: a soma de todas nós; que somos costuradas à noite, para, como mortalha de Penélope invertida, sermos descosturadas quando o dia amanhecer.
E, digo mais:
Após a leitura de A Mulher Submersa, reverbera o eco do que não se pode dizer, porque vai além do limite da palavra, da linguagem, do limite da existência, propriamente dita. E isso pode ser tanto uma dádiva quanto uma maldição, porque evidencia que o grande mistério de ser mulher é, justamente, a impossibilidade de sê-lo. (Sim, eu sou apaixonada por Lacan).
A Mulher Submersa é, também, um livro sobre o luto e seus mistérios. O luto da mulher que perde os seus, o luto da mulher que se perde em busca de um paraíso que é, sempre, uma miragem. Ao fazer o luto dos mortos que persistem em continuar no mundo dos vivos, as mulheres vivem o próprio luto de suas não existências.
Fiquei absorta nos cadernos em que o livro se desdobra e nos lança no percurso da linhagem feminina e seus abismos; servindo-nos sabores e dissabores. Dando-nos e recusando o gozo que não se deixa capturar pelas tramas do sentido. E isso pode ser observado no fato de que, num primeiro momento, a gente pode pensar que o livro não passa de um estudo sobre a mulher e seu cotidiano, sua morada; a mulher como útero, reprodutora e protetora, a mulher-casa, psicanaliticamente falando.
Mas a virada de jogo se dá quando há a subversão da ideia de aconchego para a ideia de terror; da ideia de reprodução para a ideia de esterilidade, de fim de linhagem, de fim da linha com que se costura a humanidade. O ambiente familiar se torna hostil, e aterroriza a mulher que, por sua vez, aterroriza seus des(semelhantes) pela impossibilidade de ser lida na superfície.