O que vou escrever aqui deve ser lido apenas para quem viu o filme, senão não vai entender. E pode ter spolers também, naturalmente.
Strider disse:
Eu primeiro vou concordar com o tal Luiz Carlos Mertem: com certeza o filme começa muito bem, excelente, mas de repente - quando começam algumas revelações - ele escorrega, e se perde um pouco entre harmonizar as histórias distintas e manter o que tinha feito no início até a metade.
Para mim, ele não escorrega. Na verdade, ele chega a ver o chão molhado, mas decide andar com cuidado e atravessa com sucesso. (metáfora tosca essa, hein?)
O perigo de ter usado a mesma jogada de "Ararat" (onde os personagens também estão filmando um filme), como eu citei no post acima, é que as coisas poderiam ter se tornado muito sem graça. O fato de nós sabermos que algumas coisas não passam de uma linguagem metalingüística, isto é, um filme dentro de um filme, poderia enfraquecer o envolvimento, uma vez que ficaria claro que tais coisas não estavam acontecendo com os personagens de fato. Soariam artificiais e, principalmente, nós não conseguiríamos nos preocupar com o que aconteceria em seguida.
A saída mais sensata, nesse caso, seria focalizar nos personagens reais e não no filme que eles estão filmando; ou melhor ainda, enfatizar como a produção do longa está interferindo na vida dos protagonistas e/ou fazendo com que revejam seus conceitos e atos. É uma pena que "Ararat" não tenha feito isso, mas "Má Educação" não comete esse erro.
Pelo contrário, o mais inteligente foi o roteiro fazer com que nós não saibamos que o que estamos vendo na verdade não é real! Com exceção de toda aquela passagem em que Ignacio/Zahara "rencontra" Enrique (durante o show, daí paga boquete pra ele, etc), que nós sabemos que
não está acontecendo (pois antes é dito que a história "A Viagem" retrata uma parte
fictícia da vida dos dois protagonistas, que é quando eles estão adultos - o que nos leva à conclusão que a tal passagem não aconteceu de verdade, e se trata na verdade de uma 'visualização' de "A Viagem"), todas aquelas cenas mostrando a infância deles soa para a gente como
flashbacks. Nós pensamos que são reais, por isso convencem.
Ah, e ainda que tenha a tal parte que nós sabemos que não está acontecendo, esta funciona porque ela é carismática em si. Não está ali burocraticamente, apenas para mostrar o que o Padre está lendo ou para explicar melhor as coisas. Não, ela também é engraçada; tem diálogos que poderiam ser facilmente descartados, mas estão lá, porque fazem a gente se envolver mais com a história.
Mais tarde nós ficamos sabendo que o que estávamos vendo era, na verdade, um filme que está sendo rodado por Enrique. E isso poderia ter acabado com "Má Educação", deixando a gente com a mesma impressão que sentiríamos se assistíssimos um filme com a resolução 'era-tudo-um-sonho'; mas isso não acontece porque: a) o 'filme dentro do filme' tem uma corrêspondência com a vida real dos personagens e, portanto, serviu para enriquecê-los, além de afetá-los (a cena de Juan chorando após o diretor gritar 'Corta!' é inesquecível) e acarretar a outros acontecimentos (o verdadeiro padre dá as caras por causa da produção do longa); b) porque o foco deixa de ser o 'filme dentro do filme' e passa a se preocupar mais ainda com o mundo real: Padre Manolo começa a contar a verdadeira história e, sim, nós estamos vendo flashbacks, finalmente.
Uma vez que tudo isso funciona, as revelações funcionam também. Você não se surpreendeu quando Enrique descobre que Ignacio está morto, e que o cara que se diz ser Ignacio é o irmão dele? Que o Padre Manolo é um ator interpretando o verdadeiro, que dá as caras mais tarde? Que a morte de Ignacio foi planejada por Juan e pelo Padre?
Nossa, e o final foi tão foda. Meu coração deu um pulo quando Enrique abre a carta e se depara com as palavras confusas.
Ah, outra coisa que chamou minha atenção foi a caráter atribuido ao Padre. Sim, corrupção de menores daquele jeito nunca será algo decente; mas ele não é retratado apenas como uma pessoa fdp. Acima de tudo, ele tem sentimentos. Ele realmente se apaixona pelo garoto. Fiquei com um nó na garganta na cena que Ignacio, criança, canta a nova canção e deixa Manolo com os olhos molhados.
Sem contar com alguns diálogos fodônicos:
"Não há testemunhas."
"Deus."
"Sim, mas Deus está do nosso lado."
Uma conversa engraça e triste ao mesmo tempo. Aliás, essas características paradoxais presentes ao longo do filme parecem fazer mais sentido a cada momento que eu paro para pensar. Realmente brilhante.