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A Infância do Leitor..., por Joca Reiners Terron

Zzeugma

Usuário
Tirei DAQUI.

[size=large]A infância do leitor um dia terá de voltar[/size]

Por
Joca Reiners Terron




1.
Quando se é criança pouco importa o autor do livro que se lê. Na maioria dos casos, uma criança ao ler nem mesmo sabe que o livro em suas mãos é resultado do trabalho de alguém. Para ela, o livro se escreveu sozinho e, quem sabe, seu texto surgiu na página somente naquele exato instante em que suas capas foram abertas e dois olhos bem arregalados caíram nele.

E o que aconteceria se a cada vez que abríssemos esse livro uma nova história surgisse estampada nas folhas em branco? É exatamente isso que uma criança pensa ao abrir um deles: é sempre o mesmo livro, só mudam as histórias.

E quem os teria escrito? Isto pouco importa. A única coisa que vale ao leitor são os personagens e seus dramas. Afinal, quem tem sangue nas veias (e às vezes fora delas, principalmente se houver tiros e explosões no enredo) é Taras Bulba, Huck Finn, Ahab, Dom Quixote e até a boneca Emília (que é de pano e em tese não deveria ter sangue — mas tem).

O autor?

Esse deve permanecer mais invisível que o Homem Invisível.

2.
Mas o autor existe, e seu sangue é caudaloso o suficiente para as diversas transfusões realizadas nos personagens criados por ele ao longo da existência. Arthur Conan Doyle, por exemplo, cansou-se a tal ponto da escravidão à qual Sherlock Holmes o submetia que acabou (para grande insatisfação do público, diga-se de passagem, que pouco se lixava para os dilemas do autor) assassinando seu personagem mais popular. Depois, cansado de tanta vaia, Conan Doyle ressuscitou Holmes e ficou o resto da vida quietinho em seu canto, escrevendo aquilo que seus leitores gostavam de ler.

Mas isso faz muito tempo. Hoje em dia o autor aparece mais que o personagem. Palestras, programas de televisão, revistas, jornais, festas literárias: em todos os lugares, lá está o autor. E o personagem, onde está? Babau, não existe mais. Morreu.

É uma época muito chata, esta em que vivemos. Por isto a infância atualmente anda tão curta. No tempo em que o personagem tinha mais importância que o autor é que era bom.

É necessário fazer alguma coisa para esse tempo voltar.

3.
Para começar, nada de nome de autor nas capas dos livros. Nada de foto na orelha. Nada de nota biográfica no final do livro. Nada de autor dar entrevista no lançamento. Ninguém quer saber se os livros são escritos por alguém.

O passo seguinte é deixar de pagar os milhões de dólares que são pagos a todo autor. Chega disso, quem merece todo cuidado e atenção é o personagem. A partir de agora usaremos essa dinheirama para construir prisões onde os autores ficarão presos e calados sem querer opinar sobre tudo quanto é assunto. A partir de agora nada de confete para eles: só pão e água.

Noutros tempos, quando comiam só pão e água, é que eles criavam grandes personagens. Dostoiévski, por exemplo: com essa dieta magra, criou Raskólnikov. E o teria criado de barriga cheia? Claro que não! O autor deve estar famélico como aquele jovem escritor criado por Knut Hamsun (que, aliás, não inventaria personagem tão memorável se não estivesse em idênticas condições) em seu romance Fome.

Nesse livro, um rapaz vagueia pela cidade norueguesa de Chistiania em busca do que comer. Na perambulação, tem ideias as mais mirabolantes que mal e mal podem ser ouvidas pelo leitor, pois ficam ocultas sob o ronco de sua pança vazia. No final da história o jovem escritor embarca num cargueiro e desaparece.

Do mesmo modo, é necessário sumir com o autor.

4.
Estão terminantemente proibidas as ficções de caráter autobiográfico. Nada de autores explorarem seu cotidiano mesquinho. Nada do ramerrame de casamentos, traições e separações. Nada disso!

Livros de memórias, nem pensar. Que o Carlos Heitor Cony pare já de remexer no passado. E quem lá quer saber da realidade? Ninguém, ninguém. Parece que Salman Rushdie vem aí com suas lembranças da fatwa. Alguém, por favor, o impeça. Não queremos saber o que lhe aconteceu quando se escondia de fundamentalistas assassinos num canto qualquer do planeta. Isso não é problema nosso. A vida dos autores não tem a menor graça ou importância. Nada de verdadeiramente perigoso lhes acontece.

Quando o jovem escritor de Knut Hamsun deixa de remoer suas infelicidades e paranoias e embarca num cargueiro é que a aventura de verdade tem início. Mas aí o livro acaba.

É exatamente assim: o personagem começa onde o autor acaba.

Pois que venha logo o fim do autor.

5.
E como impedir, digamos, que Luís Fernando Veríssimo e Chico Buarque venham a público mostrar suas caras horríveis que ninguém mais quer ver?

Primeiro, é necessário criar a Milícia Antiautor. Essa milícia deverá ser devidamente treinada e armada com bazucas lançadoras de tomates. Estará a postos na primeira fila a cada aparição do inimigo e disparará fatalmente suas frutas podres. Cada ataque será acompanhado do grito de guerra berrado em uníssono

MORRA O AUTOR!

VIVA O PERSONAGEM!

Só assim cada leitor poderá retornar à infância. Cobertos de tomates, Veríssimo, Chico e quem mais ousar aparecer em qualquer festa literária ou bienal do livro (males que precisam ser urgentemente extintos), serão enviados incontinenti para a Sibéria dos autores.

Lá, com a bunda e as mãos congeladas, eles poderão escrever os livros que gostaríamos de ler.

6.
Paulo Coelho será o grande bode expiatório. Para que sirva de exemplo aos jovens autores que se espelham nele e que desde cedo almejam escrever livros apenas para ficar famosos, Coelho deverá ser crucificado no alto do Gólgota.

Entretanto, fica o aviso: tudo deve ser realizado com máximo cuidado para que ele não se torne um mártir da causa e acabe fazendo ainda mais sucesso e venda outros tantos bilhões de livros. Não queremos um Jesus Coelho.

A partir daí, com os autores trabalhando arduamente nas prisões nos quintos dos infernos, grandes personagens ressurgirão. E a infância do leitor certamente há de voltar.

Com isto, a Literatura vai renascer e voltaremos todos a ser crianças.

Mas não sejamos tão drásticos.

Não queremos ser acusados de radicais.

Mas não mesmo.

7.
Os autores poderão continuar ocupando seus papéis de protagonistas na ficção contemporânea se aceitarem a seguinte condição: em vez de prosseguirem com suas palestras sem sal em festas literárias por aí, terão de realizar ações dignas de grandes personagens.

Conduzir diligências em chamas perseguidas por apaches igualmente flamejantes, por exemplo. Ou então dar a volta ao mundo em 80 dias num balão. Tomar poções mágicas que os transformem em monstros. Assassinar velhinhas. Seguir o rastro de uma poeta desaparecida no deserto de Sonora. Comandar safáris na África em busca das minas do rei Salomão.

Coisas assim.

Neste mundo de livros sem autores, apenas Ernest Hemingway poderia permanecer como sempre foi: um personagem bom pra diacho.

A extinção do autor autobiográfico começa quando eles se tornam grandes personagens e o caubói Chico Kid Buarque chega ao vilarejo sulista de Gayport em busca do malvado pistoleiro Louie Veríssimo, cujo nome superlativo indica sua extrema velocidade ao sacar o revólver.

8.
Chico Kid é daqueles caubóis sedutores, com olhos azuis e o queixo furado. Também é menestrel, e deixa um rastro de lindas mocinhas de nariz quebrado pelos caminhos que trilha. Elas suspiram tanto que seus narizes acabam se quebrando. No lombo de seu alazão, ele canta: “Agora eu era o herói e o meu cavalo só falava inglês”. O sotaque chiado de Chico Kid é de galã chique de novela chata das seis.

Louie Veríssimo é um bandidão. Como todo bandidão, ele gosta de jazz. Louie até tentou ter uma banda, mas não deu certo. Toda vez que os músicos erravam uma nota, acabavam levando um tiro. O único instrumento que Louie toca hoje é o seu Colt 45. Como passatempo, ele publica tirinhas no jornal da cidade.

Chico Kid chegou ao vilarejo. No final da rua, aguarda- o Louie Veríssimo e o sol, como a temer o que está por vir, começa a dar tchau detrás das montanhas. É a hora do duelo final.

Neste instante começa a grande aventura.

THE END
 

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