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Arnaldo Jabor - Jornal O GLOBO 01/07/2003
Uma das poucas vezes que eu recortei uma coluna do jornal.
Nelson: ‘Lula não é um bichinho de estimação’
Há muito tempo que o telefone preto não tocava. Alguns leitores não sabem que o Nelson Rodrigues me liga lá do Céu de papel crepom azul e de nuvens de algodão onde ele mora, cercado de anjinhos gordos e virgens pálidas. Corro para o velho telefone de ebonite que toca sua campainha rouca.
— Nelson, querido, há quanto tempo você não liga...
— Rapaz, você atende o próprio telefone como se fosse o contínuo de si mesmo...
— Sou pobre, Nelson; não tenho mordomo feito você aí no Céu... mordomo de camisola e lira..
— Que é isso, rapaz, até no Céu, sou meio marginal... O Chefe me trata bem, mas com uma certa desconfiança; tem uns anjos aqui que me acham pornográfico e só faltam me amarrar no pé da mesa, bebendo água numa cuia de queijo Palmira...
— No Céu também, Nelson?
— Rapaz, cretino existe no universo inteiro, toda galáxia tem seus idiotas, feito aí no Brasil.
— Aqui, Nelson, já começou a revolta dos imbecis...
— Os burros estão danados com o Lula, porque ele é inteligente... O sujeito que já vendeu cocada no cais do porto fica de uma lucidez profunda. O Lula não é besta; entrou no governo e viu que, se mexer na casa de marimbondos da economia, caímos no tão ansiado abismo que os intelectuais amam tanto...
— Como assim? — pergunto, como em diálogo de filme B dublado.
— A miséria é a alegria dos intelectuais brasileiros. Que seria deles se a miséria acabasse? Eles ficariam sem a “indignação”... E a indignação é tudo para o intelectual... Ele precisa dos desgraçados para erguer o queixo, fazendo pose de estátua. Quando o Lula surgiu no ABC, foi um carnaval na USP; as professoras faziam fila para beijar o “Operário”. Uma delas suspirou no ouvido dele: “Onde estão sua foice e seu martelo?” O Lula baixou os olhos, rubro de modéstia: “Sossega a periquita...” E a filósofa subiu pelas paredes feito uma lagartixa profissional.
Lula foi amado enquanto não existia, rapaz, era uma espécie de santinho que o intelectual levava no bolso; de vez em quando, o sujeito entrava no banheiro e dava uma olhadinha no Lula... dava sorte, feito amuleto. Queriam o Lula como um bichinho de estimação, tomando leite num pires: “Lula, venha cá, venha legitimar minha teoria!” O Lula servia de argumento para dirimir qualquer aporia...
— Que isso, Nelson, falando linguagem de filósofo?
— Tem grupo de estudo aqui no Céu... fazer o quê, por toda a eternidade? Jogar buraco? Estamos lendo Wittgenstein agora... O cara é bom; por ele, a gente vê que 90 por cento do que essa gente diz por aí não poderia nem ser pensado, quanto mais dito. O problema do intelectual brasileiro é a ideologia. O sujeito anda com uma idéia no bolso que o absolve de tudo. Os intelectuais só sabem reclamar, como reclamam de garçom no botequim, esperando o café: “Como é que é? Essa revolução saí ou não saí?” E o Lula responde: “Calma... tá caprichando!...” Isso, sem contar a burrice do “jornalista implacável”, um sujeito que saí de casa correndo, já de cara amarrada e a mulher vai atrás: “Não vai tomar nem um Nescauzinho, meu filho?”. “Não dá; estou atrasado para esculhambar o governo!”. O “jornalista implacável” tem de ostentar uma isenção magnifica, de fronte alta; nada o impressiona. Se o governo fizer chover leite e mel, ele berra: “É truque, truque!”. O “jornalista implacável” não gosta de ninguém. E quanto mais decente for o presidente, melhor. Esculhambar o bom governante lhe dá uma aura de perspicácia, como se só ele soubesse ver a impalpável canalhice, a sorrateira traição, a sutilíssima desonestidade... O “jornalista implacável” acha que todo mundo “traiu”; FH “traiu”, Lula está “traindo”. Aí, eu fico pensando: “Mas esses caras não amavam o Lula, até anteontem?” Agora, andam rosnando pelos cantos: “Esse operário anda fazendo umas metáforas ridículas...” Até o vice-presidente Alencar — já reparou? O Alencar é um patrão capitalista de filme soviético e tem Mercedes dourada com cascata artificial e filhote de jacaré. E o bom Alencar está indignado por ter de obedecer a um reles metalúrgico... Em casa, berra com os empregados: “Eu sou patrão, patrão! Eu tenho jatinhos de dez milhões de dólares! Esse Lula me tira do sério! Eu não admito, não admito!” Vocês vivem aí embaixo um momento de extraordinária burrice, rapaz. O Brasil pode decolar, se fizer as reformas. Mas o “cretino fundamental” não quer o progresso... O progresso humilha o fracassado. Com o progresso, o intelectual perde a chance de seus muxoxos desencantados... Que seria do intelectual sem o muxoxo? A maior delícia do filósofo é enfiar a cabeça entre as mãos e gemer: “Ai! O Brasil não tem jeito mesmo!” O governo fala: “Vamos baixar os juros, mas primeiro temos de fazer as reformas!.” Mas o intelectual tapa as orelhas para não ouvir. Como fizeram com o FH, a CUT, os bispos, o Judiciário, o MST, a USP só querem criar armadilhas para o Lula.
Aí, esses “cretinos fundamentais” sobem num caixotinho de querosene Jacaré e começam a berrar pedindo o caos. E não é só por interesse pessoal, não; é por um sarapatel de bobagens, de velhos cacoetes nacionalistas, fiapos de idéias marxistas, populismo burro, livros mal lidos... O brasileiro tem amor à sarjeta.
Qualquer governo com projetos que ameace sua tradição de vira-latas cai em desgraça... E já estão futucando a maior fraqueza de Lula: o medo de errar, o complexo de inferioridade, pois o tabuleiro de cocada deixa uma marca funda na alma.
E o Lula está caindo na provocação. Anda fazendo uns discursos malucos, querendo virar a metáfora que inventaram para ele...
— E que vai nos acontecer, Nelson? Você sabe, aí no Céu...
— O Chefe me proibiu de fazer profecias... Mas, em verdade, eu voz digo: se o Lula não ceder às pressões, tudo bem... Mas, se ele trair sua sagrada intuição de vendedor de cocadas, aí, vamos todos sentar no meio-fio e chorar lágrimas de esguicho...
— Pede uma colher de chá aí pra Deus, Nelson...
— Vou dar uma palavrinha com Ele...