(Antes de tudo, não consegui encontrar uma fonte que diz a quantidade de orcs que Saruman tinha. Meu livro está em casa. A Wikipédia dá apenas uma contagem no filme, não no livro!)
O Saruman me lembra muito os tecnófilos quando decidem criar um site:
— Ei, vamos criar um a comunidade?
— Claro! Sobre o que vai ser?
— Ah, vai ser sobre vassouras! Eu vou fazer em um servidor LAMP e utilizar o Drupal, por que as extensões dele...
E então o tecnófilo continua seu monólogo sobre todos os detalhes técnicos do site, sem em qualquer momento pensar quem serão os visitantes, como ele atrairá esses visitantes... Ou seja, pensou muito na infra-estrutura e manutenção, e não pensou no marketing, na administração e todas essas questões que lidam com
as pessoas, ao invés dos bytes.
Querem um exemplo vivo? Mark Zuckerberg, criador do Facebook. Ouvir ele falando de infra-estrutura é, dizem alguns, impressionante. Ouvir ele falando de comunidade é como tomar sonífero. Ano passado o site dele foi febre nos Estados Unidos. Este ano as pessoas começaram a deixar de acessá-lo por meses e meses (já imaginaram não acessar o Orkut por meses?!), por diversas razões. Uma delas é que a estrutura tecnológica está sufocando os usuários, de tantos aplicativos inúteis que são empurrados garganta abaixo das pessoas. Outra são os vazamentos de informações que revelam dados privados das pessoas inscritas. Outra é a incapacidade de, sabe, levar as informações da sua conta para outro serviço! Mais uma é que o Facebook está constantemente desligando contas de usuários legítimos e de boa fé por confiar em algoritmos anti-spam idiotas e não ter uma equipe preparada para ignorar o que a tecnologia diz e atender às necessidades da comunidade.
Ou seja, pensam na tecnologia por trás do site, não nas pessoas que estão o utilizando.
O que isso tem a ver com Saruman? Ele é a epítome do
power-user de tecnologia misturado com pitadas de Mengele (não, o Zuckerberg
não é Hitler na minha analogia). A idéia dele era melhorar os orcs: como fazê-los mais fortes, mais ágeis, mais duráveis, sem fraquezas, mais sagazes, mais tudo! Ele utilizou todo o conhecimento tecnológico que ele possuía (inato, e aprendido com Aulë), além de conduzir experimentos de cruza com humanos, para chegar ao resultado que ele queria, o
über-orc. Por um tempo, Orthanc era Auschwitz.
Mas para o quê conta um orc? Para nada. Por mais que um orc seja melhorado, ainda falta para ele a capacidade para agir além do instinto e alguma técnica básica. No ensaio Mitos Transformados, a melhor explicação que Tolkien conseguiu dar para a origem dos orcs foi a de que seriam bestas que Morgoth imbuiu, a custo de seu poder, com a capacidade de falar e de agir de forma
um tanto independente. Não fosse isso, seriam iguais aos anões quando foram criados por Aulë. Os orcs precisam de um líder, e o líder não pode ser um orc.
Portanto, na falta de alguém mais capaz, sobra Saruman como líder. E aí, na questão da guerra, é que eu acho possível comparar Morgoth, Sauron e Saruman. Sauron é claramente superior aos outros dois na questão da
organização e da estratégia, tanto que conseguiu acabar com Arnor e chegou muito perto de destruir Gondor. De fato, é dito várias vezes que Sauron apressou seus planos por conta da situação do Um Anel: caso contrário, ele teria esperado o momento correto para atacar. Morgoth, por sua vez, agia de forma um tanto stalinista, jogando hordas e hordas de orcs com pouca organização real, contra os povos da Terra-média (a famosa estratégia "tanto bate até que fura"). E Saruman me lembra os generais da Força Aérea dos Estados Unidos, que dos anos 60 até os anos 70 mataram vários jovens pilotos no Vietnã por insistirem que a solução para os problemas que enfrentavam com a performance ridícula de seus meio-caças/meio-bombardeiros era inventar um meio-caça/meio-bombardeiro mais aerodinâmico, mais rápido, com sistemas de radares maiores e melhores, com mais armamentos Ar-Ar e Ar-Terra, etc. Esses generais eram veteranos dos bombardeiros da Segunda Guerra, e por isso não conseguiam pensar em um caça que não pudesse levar bombas nucleares consigo: estavam presos a um paradigma puramente tecnológico.
Voltando à questão inicial então: acho que Saruman poderia sim ter dominado Rohan apenas com 10.000 orcs. Ele possuía 10.000 soldados de lealdade inqüestionável, maior poder de fogo, elemento surpresa (o próprio poder de fogo) e liberdade total de ação. Lembrem-se que Isengard poderia deslocar unidades para os dois lados do rio, forçando Théodred a dividir suas forças para cuidar da retaguarda. Utilizando os axiomas da guerra de terceira geração (já se fala na quinta), Saruman poderia ter deixado uma parte de seu exército lutando, enquanto a outra partiria para outros alvos de importância militar da região. Théodred nunca saberia dessa manobra e continuaria dividindo suas forças de forma fútil.
O problema é que Saruman não pensava nisso. Ele não servia para general, mas sim para consultor técnico do general. Ele não deveria ter liderado seu próprio exército. A sua incapacidade de colocar as diferenças pessoais acima das necessidades imediatas, junto com o seu desconhecimento de tática e estratégia, tornaria as suas chances de conqusita muito difíceis.
Parte da função de um general é calcular com cuidado as verdadeiras forças do adversário. Não contar com a superior organização de um povo bélico por natureza, com líderes respeitados pelo povo (Éomer) e líderes acostumados a lutas em desvantagem (Aragorn), junto com a mobilidade superior de mensageiros (Gandalf + Scadufax) capaz de reunir forças espalhadas (Erkenbrand e seus 1.000 soldados), junto com possíveis aliados (Ents) é tudo uma grande falha de cálculo feita por um general de primeira viagem.
Para outras situações onde uma força muito menor com menos tecnologia conseguiu ao menos parar ataques de forças bem mais poderosas, dêem uma olhada nos artigos da Wikipédia sobre a
Guerra de Inverno e a
Guerra da Continuação.